Antologias
Por Eugénio Lisboa
"As antologias de poemas datam de, pelo menos,
o ano 60 A.C. e a primeira grande antologia de versos passa por ser a chamada Antologia
Grega, compilada em 925 por Constantinus Cephalas. Depois, vieram outras
por aí fora e, em 2003, Michel Chandeigne fabricou e publicou uma Anthologie
de la poésie portugaise contemporaine (1935-2000), da qual só agora
tomei conhecimento: não se pode ler tudo, no momento certo. Seria pouco sincero
se dissesse que achei tratar-se de uma boa antologia. Oscar Wilde, quando um
dia lhe mostraram as cataratas do Niagara, observou, sem pestanejar, que
ficaria mais impressionado se a água se precipitasse de baixo para cima. Eu
ficaria realmente impressionado se alguma vez concordasse com uma antologia que
se me oferecesse apreciar. O escritor americano Saul Bellow dizia, com alguma
justiceira crueldade, que as alternativas, sobretudo as alternativas desejáveis
só crescem em árvores imaginárias. Eu creio que não há de facto alternativa
para a antologia que fosse eu a fazer. Aceito porém, até certo ponto,
desvios dessa antologia ideal que seria a minha. O problema é haver desvios e desvios.
A antologia de Chandeigne tem o defeito que têm as escolhas feitas por
estrangeiros que não conhecem nem a nossa língua nem a nossa literatura a não
ser de fora, sendo, não poucas vezes, influenciados por ventos que
sopram de sectores pouco objectivos da nossa praça literária. Acho, por
exemplo, extraordinário que, da presença, se suprima Régio e se publique
apenas Miguel Torga e Vitorino Nemésio que, este, só até certo ponto, teve que
ver com a revista, e aquele a deixou ao fim de três anos. Régio é, ainda
hoje, uma das maiores figuras literárias de toda a nossa história
literária, nos campos da poesia, do conto, da novela, do teatro e do ensaio
literário. Na poesia, bastariam poemas como “Sarça Ardente” ou os sonetos de Biografia
para o elevarem ao cume da poesia portuguesa. Que alguns o não apreciem por
causa das suas apetências místicas e outros se não revejam no que há de ambíguo
em tais apetências – eis que nada tem que ver com a sua grandeza literária.
Sempre achei extraordinário que se admirem
sem reservas obras que se deixam impregnar pela mitologia grega ou romana (ou
egípcia) e se façam boquinhas a obras que se alimentam da mitologia cristã.
Irene Lisboa dizia que “título, qualquer serve”, eu acrescentaria que “mito,
qualquer serve”. Sou agnóstico mas nada me impede de admirar o quadro de
Leonardo “A Virgem, Santa Ana e o Menino”, que considero o mais belo do mundo,
ou a “Missa Solene” de Beethoven ou o L’Annonce Faite à Marie, de
Claudel. (Além disso, reduzir a imensa obra de Régio à sua componente
“religiosa” é um sinal de prodigiosa desatenção!) A fé de Régio – ou o
sofrimento que lhe causava a falta dela – diz-me pouco. Mas diz-me muito o que
ele faz dela em termos de tratamento artístico que lhe dá na sua obra. E diz-me
também muito o que nela nada tem a ver com misticismo e ismos adjacentes.
Robert Bréchon, que prefacia a antologia,
fala, enigmaticamente, no “declínio” da presença e Chandeigne justifica
a rejeição de Régio por “constatar que a sua retórica neo-clássica e a sua
temática do eu dilacerado entre o bem e o mal, entre Deus e o diabo,
envelheceram e o seu autor já hoje não é lido.” Raramente tenho achado tão opaco,
digamos mesmo: tão pouco inteligente, um conceito como é o do “envelhecimento”
de uma obra, o ela “estar datada” ou “fora de moda”. Dizer, de um tema de
sempre – o ser dilacerado entre o bem e
o mal, ou, metaforicamente, entre Deus e o Diabo – que é um tema “datado” é
mandar pela borda fora todo o grande teatro clássico, uma boa parte das grandes
epopeias e da grande poesia lírica: nem Camões, nem Dante, nem Blake, nem Eliot
se safam, se filtrados por um critério tão obtuso. É, em suma, deitar no lixo não
pouco da melhor produção artística de hoje e de todos os tempos. Quanto ao
“declínio” da presença e as suas devastadoras consequências para a
glória de Régio ou de Edmundo de Bettencourt, temos conversado: o “declínio” do
simbolismo não impediu que Ibsen ande por aí, forte e perturbante, do mesmo
modo que o “declínio” do realismo não obsta a que Eça se agite por aí, num
desassossego imparável. Os modernaços franceses cuspiam no cadáver de Anatole
France quase ao mesmo tempo em que a vigorosa perspicácia de Proust o
imortalizava na inesquecível figura de Bergotte. Os modernaços preocupavam-se
com “datação”, mas um verdadeiro e profundo escritor deixava-se fascinar por
vida, elegância e beleza, que são de sempre. No seu belíssimo livro Défense
de la littérature, Claude Roy diz isto mesmo, em palavras poucas mas
decisivas: “A literatura, ela, é o testemunho de tudo o que se passou no
coração dos homens. De aí resulta que é apenas necessário conhecer as
circunstâncias das grandes obras-primas (mesmo que sejam de circunstância) para
sermos por elas emocionados, tocados e nelas encontrarmos proveito. De aí
resulta também que os livros muito grandes são absolutamente sem data”
Suprimir, de uma antologia publicada pela
prestigiada Gallimard/NRF, um poeta cuja grandeza fica folgadamente acima de
85% dos poetas nela incluídos, a pretexto de os seus temas estarem “datados”,
eis que passa todas as marcas do decentemente aceitável. Com critérios destes,
o Rei Lear, Macbeth, Hamlet ou a Phèdre – ia tudo pelo dreno abaixo. E a
retórica de elevados decibéis do maior poeta francês, Victor Hugo (Gide dixit)
seria incriminada e punida pelo antologista francês da poesia portuguesa. É
também certo que os maus artesãos nunca perdoam a grande oficina poética dos
bardos como Régio ou Hugo. Saber fazer incomoda – sempre incomodou. Porque se
ignora que “retórica” quer apenas dizer: “arte de usar a linguagem falada ou
escrita para melhor persuadir e emocionar.” Dante, Camões, Eliot, Hugo,
Claudel, Robert Frost, Ezra Pound – estão cheiinhos de boa retórica: que não
envelhece; que não fica “datada”.
Só para concluir: Chandeigne diz que Régio
deixou de ser lido. Está mal informado: Poemas de Deus e do Diabo teve,
até hoje, 11 edições, a última, de 2001;
Biografia, teve 7; Mas Deus É Grande, cinco; A Chaga do Lado,
cinco, etc. De quantos poetas incluídos na sua antologia se poderá dizer o mesmo? E não é só o público
que o continua a ler: a universidade tem-no “usado” várias vezes em teses de
doutoramento e existe um Centro de Estudos Regianos, que publica uma boa
revista onde se podem ler as mais variadas e estimulantes sondagens à obra do
autor de Cântico Suspenso. Não é ele que deixou de ser lido: é o
antologista que está mal informado: a bibliografia activa e passiva, de Régio,
não tem feito senão crescer. (Por causa das coisas: há muito que não dirijo a
revista do Centro de Estudos Regianos – ela tem sabido resistir sem mim).
P.S. – Eugénio de Andrade que, durante muito tempo,
torceu (ou fez que torcia) o nariz à poesia de Régio, acabou por me escrever um
dia, aplaudindo-me pelo que eu andava a fazer pelo poeta de Vila do Conde
(chamou mesmo à minha acção, salvo erro, “uma coisa bonita”). E fez “amende honorable”
quando, na sua Antologia Pessoal da poesia portuguesa de todos os tempos, incluíu
sete poemas de Régio (Antero teve direito a oito, Cesário Verde, a sete,
Sá-Carneiro a oito, Nemésio a oito e Torga também a sete). Os bons exemplos
devem ser seguidos e, como a antologia de Eugénio precede de um ano a de
Chandeigne, faz aqui sentido lamentar que este a não tenha consultado.
Ter-lhe-ia feito cair alguma caspa de preconceitos. E passaria a pensar mais
pela sua cabeça e menos pela de outros que se pautam por agendas peculiares"
Eugénio Lisboa, em Crónica publicada no Jornal de Letras
Sem comentários:
Enviar um comentário