A moral de desobedecer
Por Baptista Bastos
“Salazar afastou-nos da política. Alegava que
percebíamos pouco ou nada dos enredos que determinavam o processo histórico.
Para cumprir o projecto serviu-se do sarrafo e do cantochão: da violência e do
servilismo cúmplice da Igreja católica. Calafetou-nos com a censura, a polícia,
uma escola com esquadrias implacáveis, o temor religioso que nos imbecilizava,
a criação de uma clique paralisante e ignara; e a colocação, nos postos de
comando e de poder, de serventuários inescrupulosos. Leitor de Maurras, de
Sorel e de Gobineau, cujo Les Plêiades absorvera, entusiasmadíssimo, na
juventude, conhecia muito bem o que desejava. "Sei o que quero e para aonde
vou", dissera, num tom ameaçador que passou despercebido, mesmo aos homens
da Seara Nova.
A arteirice do seu comportamento
possuía qualquer coisa de irónico. Quando Alfredo da Silva, o grande
industrial, fundador da CUF, se lhe foi queixar da mediocridade do ministro da
Economia, Salazar respondeu: "Olhe que o outro será pior." Promovia a
ascensão dos ambiciosos, sobretudo dos que abjuravam dos ideais, e a história
dos seus governos está repleta dessa gente. Alguns, mantinham uma relativa
ética republicana, de onde procediam, e do ideário maçónico, do qual se não tinham
completamente dissociado.
Esta caracterização tem semelhanças,
nada abusivas, com o político actualmente no poder. É apenas uma verificação
histórica. Acontece um porém: Salazar era culto e bom manejador da língua.
Frequentador, com mão diurna e mão nocturna, dos padres António Vieira e Manuel
Bernardes, consumia pelo menos 36 horas a redigir os discursos mais
importantes. O que nos calhou agora é aquilo que tem provado à exaustão. Mas a
consciência antidemocrática é comum aos dois. Por muito que este encha a boca
com a palavra "democracia", ele e sua prática são quase um
sacrilégio, enquanto o outro só a proferia raramente e, claro!, para a
escarmentar.
Somos responsáveis por um e por outro.
Muito respeitadores por quem nos desrespeita, nos violenta e nos agride com
mentiras e omissões, os nossos protestos quedam-se na obediência à estrutura
"orgânica", por natureza cumpridora e legalista. Cito Cornelius
Castoriadis (ao qual voltarei, em breve, porque estou a relê-lo): "...a
honestidade, o serviço de Estado, a transmissão do saber, a obra feita (...)
vivemos em sociedades nas quais estes valores se tornaram, com pública
notoriedade, irrisórios e em que apenas importa a quantidade de dinheiro que se
mete no bolso, de qualquer maneira, ou o número de vezes que se aparece na
televisão."
Os episódios ocorridos na escadaria do
Parlamento, e na "invasão" de quatro ministérios, representam
veementes censuras ao recalcamento que este Governo nos aplica. O direito à
desobediência impõe-se, quando o poder cria formas e estimula métodos
contrários aos princípios das próprias noções de convivência social.” Baptistas
Bastos, em Artigo de Opinião,publicado no Diário de Notícias de 4/12/13
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