DESCANSAR AS
ANGÚSTIAS NA LETRA REDONDA
Por Eugénio Lisboa
"Miguel Torga, de quem se celebra este ano o
centenário do nascimento, ficará, na história literária de Portugal, como um
dos mais eminentes representantes da brevidade e da concisão: a
narrativa curta, o poema relativamente curto, o poema curto ou o muito curto,
ou as “entradas” no já célebre Diário, quase sempre breves, acutilantes
e certeiras. Nos Contos da Montanha, nos Novos Contos da Montanha,
na Rua ou em Pedras Lavradas, do mesmo modo que na poesia (seja a
inserida no Diário, seja a publicada em livros assumidamente só de
poesia), Torga investe de sentido profundo a ousada e discutível proposta de
Claude Roy, quando este afirma que “toda a mestria tende a condensar-se.” Isto
só em parte é verdade: eu diria antes, sendo mais cauteloso, que alguma mestria
tende a condensar-se, como de resto o reconhece o próprio Claude Roy, quando
observa: “Nada é mais admirável que as obras de grandes dimensões que não são grandes
máquinas. A não ser, talvez, as obras muito curtas, cuja brevidade nunca dá
a impressão de secura, cuja concisão se repercute lentamente, longamente, que
se prolongam em harmónicas.” E acrescenta estas palavras que parecem assentar
como uma luva no avaro protocolo torguiano: “Exprimir muito em poucas páginas é
uma grande delicadeza. A delicadeza e a obra de arte têm de comum o serem uma e
outra uma economia. As verdadeiras boas maneiras e o verdadeiro bom
estilo poupam-nos tempo e forças.” Eis como o agreste e rude contista da montanha
se transfigura no delicado propiciador de condensados a rebentar de conteúdo
pelas costuras, só porque subtilmente atento à economia da nossa
disponibilidade.
Médico, interventor cívico intemerato, “vocação
contrariada de vagabundo”, auscultador atento e não batoteiro das virtudes,
manhas e vícios do povo português, com o qual mantém uma relação de curiosidade
fraterna mas não adocicada, Torga vaza, com vigor e, não raro, com fulgor,
dentro dos moldes apertados e exigentes da criação breve, o muito que tanto a
vagabundagem como a vida sedentária lhe foram ensinando.
O homem Torga, carregando consigo todo um teor de
anedotas, mitos, lendas e, provavelmente, invenções malévolas, não convidava
muito ao convívio. Quantas vezes, estudante de engenharia, em Lisboa, não
fantasiei ir passar uma semana ou duas a Coimbra, com o fito de cocar, de
longe, de muito longe, enquanto fingisse ler um livro de Unamuno, o vulto do
homem que esculpira o Alma-Negra ou a Mariana. Mas sempre temi o confronto
entre “o homem que fez a obra e o homem que a obra faz supor”. O mítico autor
do Diário, que eu devorava nos escassos ócios que me deixava um exigente
curso de engenharia, era por certo alguém que melhor fora deixar a vaguear,
caçador solitário, na montanha que, para nós, bichos da cidade, desenhara com
minúcias amorosas de campeador agreste e convencido. “O Torga” foi-me, durante
muitos anos, uma tentação. Mas recusei sempre e, se calhar fiz mal, ceder ao
chamamento. Parece que, afinal, o caçador implacável e manhoso era um tipo
abordável e até cordial. E que teria gostado de conhecer. Desencontros que a
vida tece, quando o receio de uma decepção em nós mina a possibilidade de um
entendimento. De modo que o Torga de que aqui vos vou falar, com a brevidade
que ele tanto amava e tão eminentemente cultivava, é aquele que transparece dos
seus livros de criação pura e dos outros que, mesmo não parecendo de criação
pura, o são afinal também, porque de todo o barro que vem às mãos de um bom
escultor sai sempre obra asseada e perene: o Diário, o Portugal
ou o Traço de União exibem tanto a marca do criador como qualquer bom
conto da montanha ou qualquer ode das melhores que nos deixou.
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Como todos os grandes escritores, Miguel Torga
acolheu e acarinhou, dentro de si, um mundo de contradições. Lega-nos uma vasta
obra feita de palavras apetecidamente trabalhadas, ao mesmo tempo que nota,
poucos anos antes de morrer, que “sempre a experiência [lhe] ensinou que os momentos mais significativos da nossa
condição, por embargo ou pudor, são mudos”. Dito de outro modo, o cultivo
continuado e apaixonado do verbo levou-o à descoberta do valor insigne do
silêncio. Por outro lado, tendo passado toda uma vida a comunicar com o leitor,
em prosa e em verso, conclui, numa anotação do seu último volume do Diário
(com data de 10.9.1991), que: “Ninguém sabe nada de ninguém. Morremos inéditos.
Tanto que tenho dito de mim, por palavras e obras, e pasmo diariamente diante
da incompreensão dos mais íntimos. Foi inútil e inglório todo o meu esforço
para ser transparente aos olhos do mundo. (...) Fiquei a ser, não o poeta que
realmente sou, mas o monstro que me inventaram.” Ou ainda, e de forma mais
sucinta e acutilante: “Vamos para a sepultura secretos como viemos. E sempre a
fazer, laica ou religiosamente, sinceras confissões.” Inutilidade de toda a
escrita? Futilidade de toda a intervenção? Conclusão final – pessimista – de um
escritor que arriscou a liberdade na luta pelo ideal de uma pátria a viver em
democracia? É verdade que, no mesmo Diário,
e em data muito próxima, Torga regista isto: “Afirmei recentemente que o meu
verdadeiro rosto, presente ou futuro, está nos livros que escrevi.” Mas que
“verdadeiro rosto” s é, como ele próprio insinua, mais do que provável que o
irão desfigurar? Esta obsessão relativa ao indecifrado segredo que todos nós –
e em especial, ele, Torga – levamos para o túmulo irriga-lhe, de resto, as
páginas do último volume do Diário. Noutro ponto, volta à carga, com
ênfase reveladora: “E cada novo livro que publico”, sublinha ele, “é apenas
mais um S.O.S. que, por descargo de consciência, lanço engarrafado ao mar das
montras. Se o embrulho for encontrado em qualquer praia por alguém, e a
mensagem lida e entendida, óptimo. Se não for, paciência. Nunca as nossas
inquietações e angústias podem ser inteiramente partilhadas. Ao fim e ao cabo,
todos vivemos e morremos em segredo. O mais profundo e significativo de nós em
nenhuma circunstância vem à luz do solo. Principalmente ao bico da pena dos que
mais se explicam e confessam mascarados de penitentes, e são quase sempre
mestres consumados do disfarce. Santos Agostinhos há poucos.” A inculcação do
número reduzido de Santos Agostinhos, isto é, de confessados dilacerantemente
sinceros, aliados à verificação assumida de que “o mais profundo de nós em
nenhuma circunstância vem à luz do sol” [sublinhado nosso], leva à
conclusão não demasiado abusiva de que o autor de Bichos se não inclui
entre os pares do autor de A Cidade de Deus.
Permitam-me juntar a este acervo de proclamações de
um cepticismo radical quanto à possibilidade de uma efectiva comunicação – não
desfigurada – entre autor e leitores,
permitam-me juntar, dizia, esta acutilante passagem lançada no mesmo Diário,
por ocasião dos seus 84 anos: “Todos sabemos [reparem: “Todos sabemos”], clara
ou brumosamente, que nascemos sós, vivemos sós e morremos sós. E que, até nas
horas menos infelizes, no mais fundo do nosso inconsciente, lateja, cruciante,
a dor incurável dessa condenação. Mas sabemos também que a Bíblia, o livro dos
livros, nos ensina que não há homem sem homem, e que o próprio Cristo teve, a
caminho do Calvário, a fortuna de um Cireneu para o aliviar do peso da cruz. O
que, trocado por miúdos, significa que a solidão radical de cada existência –
que, nos poetas, a cegueira de Homero ilustra premonitora e paradigmaticamente
– é mitigada por uma força que, se não vence os destino, inconformadamente
desde sempre o desafia.”
Neste texto fundamental, o autor de O outro Livro
de Job, faz – ou retoma – três afirmações fundamentais: 1) Toda a existência
humana é afligida por uma “solidão radical”; 2) essa “solidão radical” pode, às
vezes, ser “aliviada” por terceiros (como o Cireneu que “aliviou” Cristo a
caminho do Calvário), mas não pode ser definitivamente “curada”; 3) a força
promotora de tal alívio pode “desafiar” a incurabilidade do destino solitário
do homem, mas não pode vencê-la ou resolvê-la. A rebeldia de Orfeu é, em suma,
um “panache” que lhe dá aura e dignidade mas não lhe resolve nenhum problema
essencial da existência. Torga é, nisto, muito claro, saturninamente explícito,
repetidamente afirmativo.
Eduardo Lourenço apontou, há muito, um dedo
certeiro, àquilo a que chamou “desespero humanista” em Miguel Torga, com o que
quis significar a desconfiança do autor de Poemas Ibéricos." Eugénio Lisboa
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