"Há um testemunho de Kant que diz bem da sua grandeza de filósofo e de homem.
Poucos dias antes de morrer - 12 de Fevereiro de 1804 -, confiou a amigos:
"Senhores, eu não temo a morte, eu saberei morrer. Asseguro-vos perante Deus
que, se sentisse que esta noite iria morrer, levantaria as mãos juntas e diria:
Deus seja louvado! Mas, se um demónio mau se colocasse diante de mim e me
insinuasse ao ouvido: Tu tornaste um homem infeliz, ah! então seria outra
coisa."Afinal, o que é mais importante e decisivo não é a dignidade de todos e a
sua felicidade? Não é devido ao seu combate ímpar pela liberdade e dignificação
de todos que o mundo se inclina unânime, com respeito, perante a memória de
Mandela?Este é também o segredo do Papa Francisco: renovar a Igreja,
evangelizá-la, para ela poder, por palavras e obras, evangelizar o mundo: levar
a todos a notícia boa e felicitante do Deus de Jesus Cristo. O seu programa de
pontificado, na exortação "A Alegria do Evangelho", de que aqui já dei conta, é
simplesmente este: o Evangelho. Para isso, há um método, um caminho, uma luz:
ler o mundo a partir de baixo, dos pobres, dos excluídos, e agir em
consequência, isto é, colocando-se no seu lugar e, a partir desse lugar, que é o
lugar de Deus, cumprir a sua missão. Para que todos possam realizar a dignidade
de homens e mulheres e alcançar a alegria e a felicidade, para lá do consumismo
e materialismo reinantes: "Deus quer a felicidade dos Seus filhos também nesta
Terra, embora estejam chamados à plenitude eterna", escreve Francisco.
Normalmente, a História é lida a partir dos vencedores, mas a missão da Igreja é
lê-la e ensinar a lê-la a partir das vítimas, dos perdedores. Uma revolução das
consciências, que, em termos cristãos, se chama conversão, metanóia, mudança de
mentalidade e de horizonte.Então, o centro não é a Igreja nem os dogmas nem as
leis, mas Cristo, o Evangelho e as pessoas. "Quando a vida interior se fecha nos
próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não se ouve a voz
de Deus, já não se goza da doce alegria do Seu amor, nem fervilha o entusiasmo
de fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que correm também os
crentes". "Uma fé autêntica - que nunca é cómoda nem individualista - comporta
sempre um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar a terra
um pouco melhor depois da nossa passagem por ela."A Igreja tem de avançar sem
medo. Francisco repete: "Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por
ter saído pelas estradas fora a uma Igreja doente pelo fechamento e a comodidade
de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o
centro e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Mais do
que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas
estruturas que nos dão uma falsa protecção, nas normas que nos transformam em
juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora
há uma multidão faminta", "sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um
horizonte de sentido e de vida".Afinal, os preceitos dados por Cristo "são
pouquíssimos". E Francisco tem um sonho: "Sonho com uma opção missionária capaz
de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem
e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à
evangelização do mundo actual do que à sua autopreservação." Para isso,
Francisco convoca todos para uma reforma, a começar pelo papado: "Uma corajosa
reforma, que toque tanto o espírito como as estruturas."Se se não quiser ficar
só com uma parte minúscula da História - a História dos triunfadores -, é
preciso recuperá-la e reconstruí-la na sua maioria: os escravos, os colonizados,
as mulheres, os velhos, as crianças, os mortos, os drogados, os humilhados,
todas as periferias. Isso: o reverso da História, a História recuperada no seu
reverso. Para haver Natal de e da humanidade, como anunciaram os anjos aos
pastores pela noite dentro: "Não temais, anuncio-vos uma grande alegria, que
será a de todo o povo: nasceu-vos um Salvador". Natal feliz!" Anselmo Borges, em Crónica publicada no DN, 21/12/2013
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