"Aquilo a que,
normalmente, chamam «o trabalho» é, do mesmo modo, uma palavra equívoca que
contém, simultaneamente, coisas preciosas e degradantes. Os bem pensantes da
direita e da esquerda, e muitos outros especialistas na arte de degradar, à
mínima atrapalhação atiram com o trabalho para a frente como palavra-mito, sem
distinguir, por conveniência ou incapacidade, as coisas boas e más que ela
interiormente contém.
O facto é que
uma geral pedagogia aceite e apregoada por todos, nomeadamente pelos que nada fazem,
insiste no trabalho como o grande e nobilitante motivo que redime e justifica o
pedaço da nossa existência. Qualquer manualzinho de ética escolar dizia, à
primeira oportunidade, que o trabalho «é força, é saúde, é vigor». A minha
selecta de francês, pródiga em textos fàceizinhos de ler, consagrava ao
trabalho pesada cópia de poesia e prosa e, daquela, uma terminava assim:
«une seule avarice bonne, c'est l'avarice de son
temps».
Por outro
lado, há que constatar, sem parcialidade, que o próprio adagiário popular
dedica ao trabalho muito mais conselhos do que os que refere ao capital:
«Semeia e
fia, terás alegria».
«Não deixes
para amanhã o que podes fazer hoje».
«A ociosidade
é a mãe de todos os vícios».
Quero desde
já prevenir que este problema para mim não é simples. Preocupa-me o tempo
perdido e o gaspillage quotidiano da
energia do homem, mas tenho que reconhecer que a humanidade tem sido vítima de
«trabalhadores incansáveis», da praga incontida dos «escravos do dever» e que,
por outro lado, passagens serenas de ociosos boémios suavizaram o mundo do peso
da sua geral servidão.
Entre as
muitas feias acusações com que se tem difamado a sociedade capitalista está a
de que «nela, uma minoria ociosa usufrui do trabalho duma maioria oprimida»,
necessariamente trabalhadora. Marx escreveu até sobre esse assunto um livro tão
grande que os trabalhadores nunca o puderam ler. As considerações aí feitas
foram muito proveitosas para a dinamização do processo histórico mas não
ajudaram grande coisa no aspecto que agora me preocupa. Outrossim fui levado a
verificar:
1.° Quanto à sociedade capitalista:
— Na minoria
privilegiada há elementos extraordinariamente «trabalhadores» que, com essa
«qualidade», asseguram normalmente o processo de exploração da maioria.
— Na maioria explorada há elementos extraordinariamente «ociosos» que, com esse
«vício», conseguem, alguns, atenuar a exploração que os oprime.
— Os casos raros de passagem da classe explorada à classe privilegiada vêm
exactamente daqueles elementos cuja vida foi «um exemplo constante de
acrisolado amor ao trabalho» e que, pela sua ascensão, comprovam a sua crença e
a sua devoção ao sistema, razão pela qual, na sua velhice, recebem dos altos
poderes altas comendas, do Comércio, da Indústria ou da Agricultura.
2.° Quanto à sociedade socialista:
— Na minoria privilegiada há elementos extraordinariamente «trabalhadores» que, com essa «qualidade», asseguram normalmente o processo de opressão da maioria.
— Na maioria oprimida há elementos extraordinariamente «ociosos» que, com esse «vício», conseguem atenuar a opressão que os explora.
— Os casos raros de passagem da classe oprimida à classe privilegiada vêm exactamente daqueles elementos que, ademais da sua crença devotada ao sistema, tiveram uma vida que foi «um exemplo de trabalho e dedicação», razão pela qual, na sua velhice, lhes são dadas comendas cujo nome me não lembra.”
António Alçada Baptista,in “Peregrinação Interior I - Reflexões sobre Deus”, Moraes editores, 1971
Sem comentários:
Enviar um comentário