Jantar com Foucault
Por Affonso Romano de Sant’Anna,
“Há quarenta anos, exatamente no mês de maio, Michel Foucault veio ao Rio a
convite do Departamento de Letras e Artes da PUC-RJ, que eu dirigia. Naquele
tempo, eu não tinha esse “Quase-diário”, que começou em 1980 narrando a morte
de Vinicius de Moraes. Enfim, lembremos.
Quarenta
anos! Muita gente se perguntava por que um Departamento de Letras, e não outro,
tomava aquela iniciativa. A melhor resposta está em fatos que viraram história:
uma série de encontros, congressos e eventos desencadeados por aquele setor da
universidade e que interferiram diretamente na vida cultural do país. Neste
sentido, a vinda de Foucault foi um desafio à ditadura. Um filósofo ligado aos
movimentos de 1968 na França vinha falar num difícil momento da vida nacional.
Tanto que, até a última hora, não sabíamos se ia ser possível o curso que ele
daria, ao longo de uma semana, sobre A
verdade e as formas jurídicas.
A passagem de
Foucault pelo Rio foi um furacão. Jornais e revistas alardearem sua presença
através de amplas entrevistas. O auditório da PUC não podia comportar tanto
público. E, alegando que não tinham dinheiro para pagar o ingresso (que
custeava o hotel e o cachê), estudantes pediram que o filósofo lhes falasse ao
ar livre, depois da conferência. Ele concordou. Só que os pobres estudantes o
levaram para uma rica cobertura na Zona Sul. Ele foi. Mas me confessou,
constrangido, que havia caído numa armadilha de revolucionários ricos.
Foucault fez
questão de chegar anônimo ao Rio. Nem me revelou onde ficara antes de ir para o
Hotel Sol Ipanema. (Disseram-me que ficou com um amigo na Lapa.) Ele queria se
dar alguns prazeres e liberdade. Foi à praia, em Copacabana, com sua tradutora,
usando uma tanga, muito antes de o Gabeira exibir esse traje.
Já narrei em
outras oportunidades alguns casos ocorridos. Aquela coisa surrealista e
tropicalista, por exemplo: ele já estava instalado em sua cama no hotel quando
da portaria lhe informaram que havia um casal ansioso querendo falar com ele.
Foucault atendeu e acabou descendo para ver o que parecia ser algo urgente. Até
pensou que poderia ser alguém perseguido pela ditadura, ou que quisessem mandar
um recado secreto para alguém em Paris. Aqueles eram tempos muito complicados.
Pois o casal
misterioso levou-o para um carro para conversar mais à vontade. E, fechando as
portas, quando Foucault lhes perguntou o que queriam, finalmente o rapaz falou:
“Monsieur, mais qu’est-ce que c’est le structuralisme?”.
As
conferências de Foucault foram a base de seu futuro livro Vigiar e punir, e entre nós foram publicadas resumidamente sob o
nome de A verdade e as formas jurídicas.
Foucault cedeu graciosamente os direitos autorais para a publicação do livro.
No respectivo volume que a PUC-RJ republica há anos (e existe também em
espanhol), há um debate singular entre o filósofo e um grupo fechado: Hélio
Pellegrino, Chaim Katz, Luiz Costa Lima, Milton José Pinto, Maria Teresa
Amaral, Roberto Machado, Roberto Oswaldo Cruz, Rose Muraro e eu mesmo. Esse
debate foi e é muito importante para se entender os acertos e equívocos de
Foucault.
Nos dias 7 e
8 de maio deste 2013, a PUC-RJ comemora os quarenta anos daquele evento,
reunindo pessoas de vários departamentos. Seria interessante ver criticamente
também o que ficou do pensamento foucaultiano. Os tempos são outros, e Jean
Baudrillard chegou até a publicar um ousado Esquecer
Foucault.
Lembrar e
esquecer. Assim se faz a história.
Lembrando-me,
no entanto, dos fatos, não poderia deixar de contar aqui o famoso jantar para
Foucault em minha casa. Minha filha Alessandra até botou isto na sua super
premiada peça e filme A bailarina de
vermelho. Acontece que dezenas de pessoas queriam vir para esse jantar lá
em casa. Havia tanta gente interessada que fiquei em pânico. A comida seria
feita por minha mulher — Marina Colasanti. Algo artesanal.
Ocorreu,
então, que na última hora as pessoas começaram a ligar se desculpando de não
poderem comparecer. Mas a comida estava feita para dezenas de pessoas, e
próprio Foucault havia visto a pilha de pratos sobre a mesa. As pessoas
telefonando e se desculpando. Eu perplexo com a irresponsabilidade tropical.
Enfim, o
famoso jantar para Foucault quase não ocorreu. Dele participaram, além do casal
anfitrião e do filósofo, mais dois convidados. Um deles foi Alexandre Eulálio,
que passou a noite contando a vida erótica da nobreza brasileira para Foucault,
que se divertia, se divertia muito.
Foi quase um
anti-jantar. Um papo íntimo. Inesquecível.” Affonso Romano de Sant’Anna, em Crónica publicada na Gazeta do Povo, Rascunho, o
Jornal de Literatura do Brasil, 14.04.2013
Affonso Romano de Sant’Anna,
É poeta, cronista e ensaísta. Autor de
Que país é este?, entre outros. Vive no Rio de Janeiro (RJ).
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