Uma Ponte no
Coração da Europa *
"Durante meio século, uma Europa sem sono, dividida entre dois mundos, trocou no
meio de uma das suas pontes, os homens da sombra que entre si partilhavam os
mistérios da guerra e da paz. Hoje, essa ponte é apenas lembrança de cinema,
com a elegante silhueta de Henry Fonda ao fundo. Passamos agora essas pontes
vigiadas como turistas distraídos. Poucos europeus se lembram que, não há
muito, só se atravessavam, com cautelas infinitas, como a personagem do “Passo
suspenso da cegonha”.
Quer dizer, sabendo que uma ponte é sempre um milagre suspenso, não apenas
entre duas margens mas entre duas histórias. E às vezes, no interior da
História. O que une, pode separar. Cortar as pontes entre povos é sinal de
guerra.
Desde Roma que o retalhado espaço europeu se cobriu de pontes. O diagrama das
mil pontes da Europa é o espelho das suas vitórias e das suas derrotas
interiores, sonhos de proximidade duradoira e de suspeita nunca desarmada.
Proposição sempre diferida, hoje mais próxima, para rasurar, de uma vez por
todas, as cisões e as cisuras que a História, mais do que a Natureza, criaram
entre gente que vive, no mesmo espaço, lado a lado, há tantos séculos.
Como História, a Europa é uma longa, misteriosa, mas não menos realíssima
guerra civil. A sua memória está cheia de cicatrizes. Seria vão e aberrante,
além de perigoso, esquecê-lo. Mas mais aberrante ainda esperar que a paz que
nos devemos, a Europa que a tanto custo estamos construindo, nos sejam
oferecidas de mão beijada por quem não partilha a nossa memória, as nossas
cicatrizes e que só nós mesmos podemos compreender por dentro e sarar por fora.
A memória europeia comporta inumeráveis sulcos. O que se cavou entre a Alemanha
e a França nem é o mais antigo nem o mais profundo. Em sentido próprio, sabendo
que cicatriz pisamos, podemos atravessá-lo a pé. Em sentido simbólico
convertê-lo em ponte onde o passo de todas as cegonhas da Europa vá e venha sem
medo das suas sombras. Entre Kehl e Strasbourg, por exemplo. Onde a dor da
Europa mais doeu é bom imaginar que dum simples olhar podemos anular as mortais
distâncias de que só a ignorância, ou o medo do outro, nosso vizinho, fizeram
uma vertigem, hoje sem sentido. Se não passar por essa ponte que para conjurar
o destino já chamamos ponte da Europa, o nosso futuro de europeus não irá para
parte alguma que mereça ser sonhada."Eduardo Lourenço,Vence, 1 de Outubro de 1998,
* Texto escrito a pedido de Sorina Capp, do Instituto Europeu dos Itinerários
Culturais (Luxembourg) para figurar, juntamente com outros textos de quarenta
individualidades da cultura europeia, no que Michel Krieger (Strasbourg) chamou
a Ponte da Europa entre Kehl e Strasbourg : «[…] construída nos anos 50, entre
a França e a Alemanha […] para fortalecer o simbolismo da ponte e animar a
longa travessia de uma margem para a outra, de um jardim para o outro, de um
país para outro, quarenta e dois pequenos textos literários de individualidades
da Comunidade Europeia, marcarão, em intervalos regulares, as guardas da ponte
de um lado e do outro. […] Estas placas da sensibilidade europeia, impressas
pela literatura, abrirão os campos de uma Europa em construção, mesmo no centro
do Jardin des Deux Rives» [JNA].
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