Eugénio
Lisboa completa hoje 83 anos. Na Abertura de "Acta Est
Fabula ( 1930-1947)", primeiro volume publicado dos cinco
volumes de Memórias projectados, escreve: "Não há razão nenhuma para que , no dia 25 de
Maio de 1930, “ eu “ tenha nascido num canto improvável da África Austral."
Quem o
conhece sabe que são muitas as razões que se agregaram para que,
nesse dia ,Lourenço Marques o recebesse. Eugénio Lisboa estava
predestinado ao universo dos homens que marcam o seu tempo, quer como homem
empenhado num mundo melhor e mais justo, quer como escritor de uma profícua e
variada obra literária.
Ler o
primeiro volume deste registo memorialista é um exercício fascinante
porque se acompanha o crescimento de uma mente brilhante que se
descobre , que activa o conhecimento através de uma curiosidade constante
e de um fascínio pelo saber e pela leitura. Eugénio Lisboa transporta-nos
para o seu canto improvável da
África Austral e permite que verifiquemos por que razões é
um dos mais ilustres intelectuais de sempre, um nome que faz parte da plêiade dos homens maiores das Letras.
Neste 25 de
Maio de 2013, transcrevemos as páginas que constam da Abertura de "Acta Est Fabula " , acreditando que, brevemente, teremos um novo volume que nos fará sentir
ainda mais privilegiados por conhecer o seu autor, Eugénio Lisboa.
Ao ensaísta,
ao crítico literário, ao poeta, ao escritor, ao diplomata, ao professor , ao
amigo, os PARABÉNS.
ABERTURA
UM MUNDO PARA
MIM
“ Chegado
ao ocaso da vida, vem-me o desejo irresistível de voltar atrás, recordando os
momentos que mais me tocaram e, também , as oportunidades que perdi: as
atenções, mas também as desatenções, as devoções, mas também os desapegos, as
exaltações, mas também os fastios. O meu passado é só meu e só eu sou capaz de
o sondar em toda a sua profundidade. Dizia Sartre que o passado é um luxo de
proprietário. Do meu, sinto-me extremamente proprietário e não sei se
proprietário de mais alguma coisa.Vou,
neste livro, falar da minha infância e da minha juventude e só, se ainda me
restar tempo e vigor, da minha vida adulta, da minha maturidade e da minha
velhice. Temo, com a idade que tenho, ter esquecido muita coisa. Mas sei que não esqueci os momentos de maior
intensidade, que não são, necessariamente, os de maior felicidade. Diz um
personagem de O Barbeiro de
Sevilha, de Beaumarchais, que “ A juventude é infeliz porque tem que
enfrentar esta escolha terrível: o amor sem paz ou a paz sem amor. “ Quantas
vezes, para se salvar a paz de espírito, se consente em assassinar um
amor que ensaia nascer! E quantas vezes outras, por amor do amor, se sacrifica
uma paz portadora, talvez, de fecundos frutos! Vamos assim fazendo um percurso
em que abundam as decisões que nos deixam para sempre inseguros sobre o valor
que pudessem ter.
Lourenço Marques |
Como todos os
que vieram a este mundo, eu vim e logo adquiri uma espécie de profunda
convicção: a de que o mundo começava
comigo. Muitas vezes, depois, tentei “ intuir ” o que era “ estar morto”
ou “ ainda não ter nascido”, isto é, “ não ser “ – e procurava encontrar
respostas mais ou menos deste género: “ era o que se passava , digamos, no
tempo de D. Afonso Henriques – nessa altura, muita coisa acontecia e tu não estavas lá!” Mas isto são
apenas congeminações da razão, que o nosso ser profundo não compreende , não
sente ou não intui. No fundo, o que vemos
é isto: o mundo começou quando nós começámos e terminará quando nós
terminarmos. A nossa aventura – resultado do nosso nascimento arbitrário e
incompreensível – vive-se com emoções contraditórias, com deslumbramentos e
decepções, com alegrias e angústias, com
descobertas que nos enriquecem e outras
que nos dissecam, mas sempre acompanhadas pelo enorme assombro de estarmos
vivos.
Sobem, do
passado, até mim, aparecendo-me,
prodigiosamente, momentos que não esqueço. Tantos momentos, que aqui não
refiro, porque hão-de aparecer, espero eu, no decurso deste livro que me proponho escrever, com alguma leviandade:
ainda terei tempo? Talvez, afinal, o gozo que me dará escrevê-lo ajude a
prolongar a minha vida o suficiente para tornar viável o atrevido projecto.
A nossa vida,
mesmo rica, mesmo variada, é uma corrida que dura pouco. Olho para trás e as
minhas descidas por terrenos baldios, desde a casa na Mendonça Barreto até à
baixa do Scala e das livrarias, aconteceram ainda ontem… Mas como dizia
Disraeli, a vida é demasiado curta para poder ser pequena. Recordando momentos,
encontros, descobertas, deslumbramentos e até tragédias , não consigo pensar
que a minha vida tenha sido pequena.
Estar vivo não é insignificante.
Nenhum milagre é coisa de somenos. Vou, pois, tentar arquivar aqui, com
palavras incompetentes, milagres que ultrapassaram a minha capacidade de os
exprimir. A Lourenço Marques da minha infância e adolescência, com a praia ali
ao lado e o mato muito perto, foi um desses milagres. Foi lá que nasci e foi lá
que o mundo começou: o sol descomunal, a chuva grande, as trovoadas de
estarrecer, o mar , a noite, o amor, a leitura, o futuro a haver – começaram lá.
Vou falar-vos de Lourenço Marques, isto é, vou falar-vos da vida. Falando dela,
irei viver algum tempo mais. Só ela, a capital da memória, é capaz de me dar
este modesto suplemento de vida. “ Eugénio Lisboa, in "Acta Est Fabula, Memórias I,Lourenço Marques ( 1930-1947)", Editora Opera Omnia, 2012
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