Bento XVI resigna. E depois?
por ANSELMO BORGES
"Julgo que não
se consegue imaginar o peso que cai em cima de quem aceita ser Papa. Torna-se o
responsável primeiro pela Igreja Católica, com 1200 milhões de fiéis. Uma
Igreja vergada sob a rigidez da tradição e talvez a única instituição
verdadeiramente global, portanto, confrontada com múltiplas sensibilidades,
problemas e aspirações: as questões dos europeus não são as dos
norte-americanos, dos sul-americanos, dos africanos, dos asiáticos, dos
australianos. É uma figura de relevo mundial, com imensa influência política no
mundo, mas sujeito aos seus jogos, manhas e ardis. Mesmo viajando pelo mundo
inteiro, fica a viver num pequeno território, com os seus rituais seculares e
rígidos. Num mundo de homens. Só, onde, quando e como contacta com a família e
com os amigos? E os olhos de todos estão sobre ele. Quase sem vida privada. Monarca
absoluto, mas com todos os passos vigiados. Qual é o seu poder real? O Papa
João XXIII, interrogado por um estudante num Colégio universitário pontifício:
"Santidade, como é sentir-se o primeiro?", terá respondido:
"Está enganado. Pus-me a contá-los e eu, lá no Vaticano, devo ser o quarto
ou quinto."
Bento XVI não
foi sempre conservador. Ainda só professor, escreveu em 1968: "Acima do
Papa encontra-se a própria consciência, à qual é preciso obedecer em primeiro
lugar; se for necessário, até contra o que disser a autoridade eclesiástica. O
que faz falta na Igreja não são panegiristas da ordem estabelecida, mas homens
que amem a Igreja mais do que a comodidade da sua própria carreira."
Também escreveu que era necessário repensar a descentralização da Igreja,
abrindo um debate sobre o primado papal. Opondo-se à teologia da
"satisfação" que situava a Cruz "no interior de um mecanismo de
direito lesado e restabelecido", rejeitou a noção de um Deus "cuja
justiça inexorável teria exigido um sacrifício humano, o sacrifício do seu
próprio Filho. Esta imagem, apesar de tão espalhada, não deixa de ser
falsa". Defendeu, com outros grandes teólogos, a necessidade de debater a
questão do celibato obrigatório.
Quando, jovem
professor de Teologia, chegou ao Concílio Vaticano II como assessor do cardeal
J. Frings, de Colónia, foi crítico de cinco dos sete esquemas preparatórios e
foi provocador, criticando duramente a Cúria e a sua "atitude
antimoderna": "A fé tem de enfrentar-se com uma nova linguagem, uma
nova abertura."
Em 1968,
frente à revolução de estudantes ateus de Teologia, teve medo, encontrando-se
aí o ponto decisivo para a sua orientação conservadora; abandonou então a
Universidade de Tubinga e o colega e amigo Hans Küng, para ir para Ratisbona.
Depois, foi feito arcebispo de Munique e, mais tarde, como Prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé, condenou dezenas de teólogos.
Aceitou o
papado como "humilde servidor da vinha do Senhor". Deixa uma marca
num tema que lhe é caro: a exigência do diálogo entre a fé e a razão; acabou
por ser duro e inequívoco contra a pedofilia na Igreja; prosseguiu, embora
timidamente, o diálogo com as confissões cristãs e as diferentes religiões, em
ordem à paz; condenou sistematicamente a ditadura financeira sem regulação.
Percebeu que
não controlava a Cúria, mergulhada em escândalos de corrupção e intrigas, até
ao Vatileaks. Foi admoestando cardeais para "renunciarem ao estilo mundano
de poder e glória", e dizendo que lhe coubera viver o pontificado de
"um pastor rodeado de lobos". Queixava-se: "Os javalis entraram
na vinha do Senhor." O cardeal W. Kasper foi advertindo que Bento XVI
andava "muito triste" com o péssimo clima no Vaticano.
Fragilizado,
sentindo-se sem forças no corpo e no espírito, anunciou que resigna no próximo
dia 28, às 20.00 (19.00 em Lisboa e Funchal). Um gesto de inteligência,
honestidade e humildade, que fica para a História, pois quebra um tabu e mostra
que o Papa é tão-só um servidor da Igreja e do mundo, continuando humano,
também com as suas debilidades. Depois, retira-se para um convento, para rezar,
meditar, tocar e ouvir música, escrever, mantendo o apagamento. Os cardeais
elegerão um novo Papa. Talvez europeu ou latino-americano.” Anselmo Borges, em
Artigo de Opinião publicado no DN de 16/02/2013
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