quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Um grande repórter


Um grande repórter: Fernando Magalhães
Por Eugénio Lisboa
"Fernando Magalhães, ontem (1.2.2013) falecido, aqui, em Lisboa, após alguns meses de sofrimento, foi um grande e singular jornalista.
Privei com ele, de perto, em Moçambique, nos anos sessenta e setenta e, depois, em Lisboa, a partir da segunda metade dos anos noventa. Tínhamos uma tertúlia mensal, aqui no concelho de Cascais, de que faziam parte, sempre, o Fernando Magalhães, o Carlos Adrião Rodrigues, o João Afonso dos Santos e eu próprio, e, ocasionalmente, outros elementos ( o Salvador Amaro, a Joana Pereira Leite, etc).
Em Moçambique, a tertúlia era aos sábados, em casa do Adrião Rodrigues, e aí conspirávamos os nossos textos e disparos para A Voz de Moçambique e, durante algum tempo, para A Tribuna. O Fernando Magalhães pecara, literariamente falando, apenas uma vez, com uma magra ficção que não teve seguimento. O seu temperamento era, sobretudo, de jornalista e, nesse pelouro, ele era único. Lembro-me de um concurso literário (que incluía a sub-espécie do jornalismo), em que tivemos, por uma razão qualquer, de congeminar um Prémio Hors Concours, para não ficar por assinalar uma fabulosa reportagem do Fernando Magalhães.
Entre nós, ele recortava o perfil de um personagem peculiar: objectivo, friamente analista, raramente dava escape aos ventos da indignação: mais depressa se inclinava a um desprezo distante do que a uma fúria incontida. Escondia o tumulto das emoções no exercício de uma ironia que se alcandorava, por vezes, até ao nível do humor negro.
A sua prosa era secamente acutilante, às vezes, subtilmente perversa, nunca romântica. Recentemente, ofereceu-me, num gesto de amiga homenagem, uma reportagem saborosamente mortífera acerca de uma viagem à Coreia do Norte, quando Samora Machel era ainda vivo e Presidente.  O texto é de uma maldade saudável e ferina, digna dos melhores momentos do Swift de “A Modest Proposal”.
O Fernando escondia, com pudor, os seus afectos e só em raros momentos – e sempre “defendendo-se” com o apetrecho da ironia – deixava escapar um sinal de maior entrega. Mas era um ser raro e a sua morte deixa, na nossa tertúlia, um feio buraco negro. Não há muito, partira de nós o Adrião Rodrigues: duas presenças insubstituíveis.
Seria interessante – e recomendável – que, num qualquer departamento universitário, alguém se dispusesse a fazer ou mandar fazer um inventário exaustivo dos trabalhos de reportagem de Fernando Magalhães com vista à publicação de um livro onde elas se acolhessem. Ver-se-ia assim melhor o que foi o trabalho de investigação e análise, na prosa enxuta e desafiadora de um dos nossos grandes jornalistas ( e, neste “nosso”, incluo Portugal e Moçambique)."
Eugénio Lisboa, in Jornal Savana nº 996, 8/02/2013

O PAÍS DOS CINCO CORTES DE CABELO
Por Fernando Magalhães                               
"Em meados da longínqua década de 60, vivíamos nós na então Lourenço Marques, o Eugénio Lisboa presidiu a um júri nomeado pelo Município que me atribuiu um primeiro prémio de reportagem. Tratava-se da minha descoberta da Bolsa de Joanesburgo, na Hollard Street, uma ruazinha de uns 200 metros onde se concentrava mais dinheiro e se fazia mais negócio do que em toda a África. Decidi pois homenageá-lo agora à minha maneira: oferecer-lhe a reportagem que na altura não tive a coragem de escrever, porque ainda não era claro para mim que um jornalista não pode deixar de denunciar o totalitarismo quando o descobre no exercício da sua função.

Estávamos em Março de 1975 e eu, jornalista experiente, preparava-me para mudar de paradigma, como é moda dizer agora. Ia ser finalmente um verdadeiro jornalista moçambicano, livre da odiosa censura colonial e “engajado” (como se dizia então), na missão de informar, defender, educar e ser educado pelo meu povo, libertado pela Frelimo. Era o meu velho sonho tornado realidade.
Este trabalho, melhor, esta missão, de cobrir a visita do presidente (ainda só da Frelimo) Samora Machel, aos “países amigos e irmãos” da República Popular da China e da República Popular Democrática da Coreia, enchia-me de orgulho. Além do mais fora-me confiada a responsabilidade de chefiar a delegação de jornalistas moçambicanos.
O Boeing da CAAC (Linhas Aéreas da RPC) deslizava suavemente sobre as nuvens aproximando-se de Pyongyang quando um “camarada dirigente altamente responsável” se veio sentar ao meu lado e me disse com convicto: – Agora vais conhecer um país socialista verdadeiramente organizado, talvez mais organizado que a China ou a RDA (antiga República Democrática Alemã). Toma atenção que vais aprender muito.
Devo referir que este então “camarada dirigente altamente responsável” – ainda hoje meu amigo, acho eu, era dos poucos a tratar-me por tu. Para os outros, como estava estabelecido e mesmo que fossemos velhos conhecidos, eu era o “camarada Magalhães”. Claro que havia outra excepção, mas Samora Machel tratava todos por tu, do guerrilheiro analfabeto, ao embaixador da URSS ou dos EUA. Adiante.
Aterrámos pois em Pyongyang com o aeroporto cheio de coreografias, danças, canções e bandeirinhas e eu de olhos e ouvidos bem abertos, desejoso de aprender. Sabia apenas que a cidade tinha sido completamente arrasada por bombardeamentos aéreos americanos durante a guerra da Coreia e que, sobre as ruínas, Kim Il-sung erguera uma urbe que pretendia socialista, moderna e exemplar.
À entrada da cidade, o guia coreano apontou-nos um enorme cartaz com a efígie de Kim e explicou-nos em mau castelhano: Ali está escrito, bem-vindo a Pyongyang a cidade onde já foi instalado o verdadeiro comunismo. Alguém lá de trás da carrinha, acho que o Miguéis Lopes ou o Albino Magaia, rosnou: o comunismo não foi instalado em lugar nenhum do mundo, camarada, ainda estamos na fase da edificação do socialismo. E o guia solícito a replicar que não, não, não, no nosso país o querido e glorioso líder e marechal de aço Kim Il- sung já construiu o verdadeiro comunismo! A réplica veio noutro rosnanço do género, este camarada é parvo ou quê? Mas do que víamos, lá que a cidade era bonita, isso era.
Chegámos ao belo hotel e sobre a entrada, bem em grande, muito grande, sorria-nos a imagem de Kim Il-sung. Solícito, o pessoal não nos deixou levar as malas. Eles de fato à Mao, com um bem grandinho “pin” do querido líder no peito. Elas, de longo vestido tradicional, em cetim com florinhas, com o mesmo “pin”, de olhos sempre no chão e muitas reverências, lembrando gueixas.
Na recepção, lá estava, em grande, o rosto sorridente de Kim, e também, fardado ou à civil, a meio corpo ou corpo inteiro, em todas as paredes. Nos longos corredores a caminho dos quartos, de três em três metros, multiplicavam-se as imagens do querido líder e à entrada de todos os quartos havia uns quadrinhos com um miúdo a perorar a outros miúdos e a graúdos que o ouviam entre espantados e veneradores. Alguém dos nossos perguntou o que é isto camarada? e a resposta veio rápida: ilustram a história do nosso querido líder e marechal de aço, ainda criança mas já divulgando a linha política correcta.
Chegado finalmente ao meu belo aposento, lá estava ele, fitando-me de frente, de trás e de lado, umas vezes como querido líder, outras como marechal de aço. Sorridente, olhava-me também da primeira página do jornal nacional, à minha espera na secretária. Ao lado, uma avantajada resma de 10 ou 11 calhamaços (em português) com o seu nome e efígie explicando a sua filosofia “juche” (da auto-suficiência).
Desesperado e ansioso por descansar os olhos, escancarei a janela do quarto. Caía a noite e sobre a cidade pairava um silêncio estranho, inédito numa capital. Lá em cima, dominando Pyongyang, qual Cristo do Corcovado, resplandecia envolvida em focos luminosos a estátua do querido líder. O que vale é que o jantar, como todos os outros, foi óptimo e muito bem brindado.
No dia seguinte lá fomos, muito de manhãzinha em peregrinação ao monumento de 20 metros de altura, todo de bronze dourado, estrategicamente colocado em frente à Biblioteca Nacional e Museu da Revolução.
Perguntámos ao guia quantos livros havia na biblioteca. Disse-nos que mais de um milhão. De que tipo? Todos escritos pelo querido líder ou sobre o querido líder e com muitas traduções. Julgámos ouvir mal. Um milhão e só sobre Kim Il-sung? O guia confirmou, feliz. E então não há nada de Marx, Lenine, Mao? Que não, não eram necessários. Estavam ultrapassados pela filosofia “juche”do querido líder.
Mais resmungos “pouco próprios da linguagem do nosso partido” e lá fomos, numa longa coluna automóvel a velocidade desenfreada por largas avenidas vazias, visitar a cidade “onde já fora edificado o verdadeiro comunismo”. Era a hora das crianças irem para as creches ou escolas, todas muito organizadas, de mãozinha dada, lencinho vermelho de “pioneiras” ao pescoço, em intermináveis filas, professores à frente (lindo!) e cantando (informou-nos o guia) odes ao querido líder. Visitámos uma das creches. Danças e mais canções (já não perguntámos nada) e depois, para todas, uma sessão de tiro com espingardinhas de pressão, tendo como alvos o “cachorro presidente imperialista americano” (lá estava ele caricaturado) e o navio espião americano “USS Pueblo” que anos antes tinha sido capturado pela marinha norte-coreana.
Adiante e passemos à nossa muito ambicionada visita ao complexo industrial desse “modelar país amigo”. Tínhamos sido informados de que nos seriam mostradas moderníssimas fábricas, muitas quais, pelo seu valor estratégico e a sempre presente ameaça do imperialismo ianque, funcionavam dentro de galerias enormes, escavadas em montanhas.
Aí já ia também parte da delegação política e não apenas nós, pobres jornalistas. O meu amigo “camarada dirigente altamente responsável”, depois de me ouvir alguns reparos sobre aquela estranha forma de socialismo, tranquilizou-me: “Culto da personalidade, especificidades do socialismo asiático; já discutimos isso entre nós. Agora é que a visita vai começar. Abre os olhos”.
Estávamos preparados para uma longa visita ao campo mas acabámos num imponente edifício no centro de Pyongyang. Lá dentro apresentaram-nos “algumas das gigantescas fábricas”. Estavam de facto escondidas em montanhas de papelão dentro de grandes vitrines. Um camarada carregava num botão e a montanha abria-se. Mais um toque revelava-nos zonas com máquinazinhas a trabalhar e bonequinhos cumprindo a sua função de operários. A visita acabou com a reconstituição de algumas das grandes batalhas vencidas pelo querido e glorioso líder e marechal de aço contra o imperialismo. Lembro-me de muitas luzinhas a apagar e a acender e, acho eu, canhões, carros de combate e soldados em miniatura. Não havia qualquer referência aos aliados chineses (morreram mais de 300 mil na guerra da Coreia) e perguntámos porquê. Aliados chineses? Estávamos enganados… a guerra tinha sido integralmente feita e vencida pelo povo coreano dirigido pelo querido líder e marechal de aço. Lembro-me de incontidos sorrisos em alguns camaradas dirigentes. Eu, mais do que frustrado estava sobretudo preocupado. É que os meus companheiros jornalistas começavam a revelar “comportamentos pouco próprios da nossa disciplina”. Sussurravam entre si como conspiradores, ouviam-se risinhos e o mesmo já se passava com alguns representantes das nossas organizações populares. Adiante.
A visita estava a acabar mas faltava o grande final, a festa do encontro com o querido líder.
Era ao fim da tarde mas foram-nos buscar muitas horas antes, “a preparação”. Reuniram toda a delegação, com excepção de Samora Machel, numa ampla sala de hospital. Mandaram-nos despir. Depois urinámos para um tubinho. Em fila (camaradas dirigentes à frente) com o tubinho erguido na mão direita e todos em pêlo avançámos para uma enfermaria onde um camarada coreano (julgo que médico ou enfermeiro) nos auscultava, outro via-nos os olhos e um outro tirava-nos uma amostra de sangue. Aqui já se ouviam reclamações algo coléricas, não só de alguns dos meus jornalistas como também de camaradas “altamente responsáveis”, nomeadamente de um famoso comandante da guerrilha (ainda não havia generais da Frelimo e ainda se acreditava que no “nosso exército popular” não seriam necessárias patentes) exigindo explicações. Tudo para o nosso bem, explicavam os guias intérpretes, já que vínhamos da guerra no mato e poderíamos ser portadores de doenças que assim seriam detectadas e tratadas. Adiante. A fila lá seguiu nuazinha (éramos só homens, julgo que as poucas camaradas estavam, algures, a ter tratamento igual) por um corredor onde subitamente se desencadeou um chuveiro infernal de água com desinfectante. Alguns berros e alguma desorganização, como acontece com as vacas quando tomam o primeiro banho carracicida. Depois toalha felpuda, secagem e devolução das nossas roupas, ainda quentes, impecavelmente engomadas. Lembrei-me das palavras do meu “amigo camarada altamente responsável” sobre a exemplar organização norte-coreana. Ali estava ela.
E chegou o grande momento. No enorme salão de festas do palácio da Assembleia Popular esperavam-nos muitas centenas de altas entidades, claro que todas com o seu “pin” do grande líder. Como em qualquer reunião burguesa falava-se (aqui sussurrava-se) e bebia-se um aperitivo. Numa extremidade havia uma espécie de salão caixa de vidro e lá dentro, muito só, sorriso permanente nos lábios, estava Kim Il-sung, mais velho e mais gordo do que nas fotografias. De vez em quando um grupo de convidados aproximava-se da parede de vidro, fazia uma reverência e brindava. O querido líder, do outro lado do vidro, acenava com a mão esquerda, sorria e levantava a sua taça. Depois o grupo brindante recuava, olhos no chão, para dar oportunidade a outros.
Pressuroso, um guia-intérprete introduziu-nos no salão caixa de vidro (muito florido, com muitas sedas, brocados e aveludados) para conhecermos o grande líder em carne e osso. Tivemos até oportunidade de descobrir que na zona posterior do pescoço se notava um tumor bem grande (maior que uma bola de ténis ou de bilhar) que os milhões de imagens do querido líder, mostradas ao seu povo e ao mundo, não revelavam. Soube mais tarde, muito em segredo, por um camarada jornalista chinês que se tratava de um depósito de cálcio não removível por se situar numa zona demasiadamente próxima da espinal-medula e do cérebro.
Kim foi muito afável. Cumprimentou-nos, disse umas palavras e até abraçou os agraciados com a Ordem dos Combatentes Anti-Imperialistas. Minutos depois, com excepção de Samora Machel, que permaneceu a conversar com Kim, fomos devolvidos ao salão de festas para o convívio possível.
O último banquete foi opíparo e muito brindado, tanto por nós como por eles. De tal forma que o nosso guia-intérprete acabou por se deixar enredar num debate sobre a necessidade de democracia no socialismo. Será que isso acontecia no “juche”? De toda a argumentação do camarada guia-intérprete a provar que a RDPD era um verdadeiro estado democrático, lembro-me bem de um exemplo decisivo: no país de Kim Il-sung, qualquer camarada podia escolher entre cinco cortes de cabelo! Confirmei mais tarde que era verdade.
Quanto à reportagem, nunca a consegui escrever. O mesmo aconteceu com a maioria dos outros jornalistas. Ficaram-se pelas fotos, com umas legendazinhas de circunstância. Não tenho dúvidas que aquela viagem foi extremamente pedagógica para todos, que foi o que eu disse ao meu amigo, então camarada altamente responsável.
Lisboa, Dezembro de 2010 "
Fernando Magalhães,in " Eugénio Lisboa: Vário,Intrépido e Fecundo - Uma  homenagem", organização de Otília Pires Martins e Onésimo Teotónio Almeida, Editora Opera Omnia 

Nota: Curiosamente, volvidos 38 anos após esta visita à Coreia do Norte, registou-se alguma evolução na oferta e permissão de cortes de cabelo, nesse país, conforme noticia  a Revista Visão em artigo  publicado, ontem, 26 de Fevereiro.
“ Coreia do Norte só autoriza 28 cortes de cabelo
Cabelos curtos para as mulheres casadas e um pouco mais compridos para as solteiras. Para os homens também há uma lista de cortes permitidos... que, curiosamente, não inclui o do líder Kim Jong Un .”in Revista Visão
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1 comentário:

  1. Quando morre um jornalista, é um tempo de luto. Morre sempre um pouco da nossa voz, principalmente dos que não têm voz!...

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