Lama
" O que faz um fotógrafo de nuvens e de estrelas , neste dia de chuva, de temporal desfeito, quase deitado no chão, fotografias espalhadas em volta, no meio da lama? Há quem se aproxime para o ajudar , quem apanhe as imagens mais sujas e lhas devolva limpando-as com a ponta do casaco. Mas, uma a uma, ele volta a colocá-las onde estavam, tão meticulosamente como se as dispusesse num desses tabuleiros que usa para a revelação dos negativos. E, esfregando-as contra as pedras da rua, desenha mais sulcos no papel fotográfico - riscos , manchas negras. " As belas fotografias ", digo-lhe desolada , enquanto procuro salvar ainda as menos atingidas. " Manchadas, estragadas. Porquê tudo isto? Eram tão leves as tuas nuvens, foram tão demoradas de fotografar na exacta medida de luz e de sombra". Molhado até aos ossos, o fotógrafo celeste parece estranhamente feliz com a sua obra. " Agora estão certas ", diz. " Continuam tão belas quanto eram , mas têm também aquela margem de lixo e de desordem sem a qual nada pode ser verdadeiramente deste mundo". Rosa Maria Martelo, in "A porta de Duchamp", Lisboa, Averno
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