Fernando
António Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa há 124 anos , no dia 13 de Junho de
1888, filho de Maria Madalena Pinheiro Nogueira e de Joaquim de Seabra Pessoa.
Muito se tem escrito e muito há ainda por escrever sobre este grande vulto da
poesia portuguesa. Para nós, apenas as suas palavras podem preencher a XIV edição de “ Sobre a Poesia”.
“Eu era um
poeta impulsionado pela filosofia, não um filósofo dotado de faculdades poéticas.
Adorava admirar a beleza das coisas, descortinar no imperceptível, através do
que é diminuto, a alma poética do universo.
A poesia da
terra nunca morre. É possível dizermos que as eras transactas foram mais
poéticas, mas podemos dizer (...)
Há poesia em
tudo — na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. Há-a também na
cidade — não o neguemos — facto evidente para mim enquanto aqui estou sentado:
há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos
carros nas ruas em cada movimento ínfimo, vulgar, ridículo, de um operário que,
do outro lado da rua, pinta a tabuleta de um talho.
O meu sentido
interior de tal modo predomina sobre os meus cinco sentidos que — estou
convencido — vejo as coisas desta vida de modo diferente do dos outros homens.
Existe para mim — existia — um tesouro de significado numa coisa tão ridícula
como uma chave, um prego na parede, os bigodes de um gato. Encontro toda uma
plenitude de sugestão espiritual no espectáculo de uma ave doméstica com os seus
pintainhos que, com ar pimpão, atravessam a rua. Encontro um significado mais
profundo do que os terrores humanos no aroma do sândalo, nas latas velhas
jazendo numa montureira, numa caixa de fósforos caída na valeta, em dois papéis
sujos que, num dia ventoso, rolam e se perseguem rua abaixo. E que poesia é
espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus em plena consciência da sua
queda, atónito com as coisas. Como de alguém que conhecesse a alma das coisas e
se esforçasse por rememorar esse conhecimento, lembrando-se de que não era
assim que as conhecia, não com estas formas e nestas condições, mas de nada
mais se recordando." Fernando Pessoa, in “Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação,” (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966
Sobre os heterónimos
“Dividiu
Aristóteles a poesia em lírica, elegíaca, épica e dramática. Como todas as
classificações bem pensadas, é esta útil e clara; como todas as classificações,
é falsa. Os géneros não se separam com tanta facilidade íntima, e, se
analisarmos bem aquilo de que se compõem, verificaremos que da poesia lírica à
dramática há uma gradação contínua. Com efeito, e indo às mesmas origens da
poesia dramática — Esquilo por exemplo — será mais certo dizer que encontramos
poesia lírica posta na boca de diversas personagens.
O primeiro
grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, concentrado no seu sentimento,
exprime esse sentimento. Se ele, porém, for uma criatura de sentimentos
variáveis e vários, exprimirá como que uma multiplicidade de personagens,
unificadas somente pelo temperamento e o estilo. Um passo mais, na escala
poética, e temos o poeta que é uma criatura de sentimentos vários e fictícios,
mais imaginativo do que sentimental, e vivendo cada estado de alma antes pela
inteligência que pela emoção. Este poeta exprimir-se-á como uma multiplicidade
de personagens, unificadas, não já pelo temperamento e o estilo, pois que o
temperamento está substituído pela imaginação, e o sentimento pela
inteligência, mas tão somente pelo simples estilo. Outro passo, na mesma escala
de despersonalização, ou seja de imaginação, e temos o poeta que em cada um dos
seus estados mentais vários se integra de tal modo nele que de todo se
despersonaliza, de sorte que, vivendo analiticamente esse estado de alma, faz
dele como que a expressão de um outro personagem, e, sendo assim, o mesmo
estilo tende a variar. Dê-se o passo final, e teremos um poeta que seja vários
poetas, um poeta dramático escrevendo em poesia lírica. Cada grupo de estados
de alma mais aproximados insensivelmente se tornará uma personagem, com estilo
próprio, com sentimentos porventura diferentes, até opostos, aos típicos do
poeta na sua pessoa viva. E assim se terá levado a poesia lírica — ou qualquer
forma literária análoga em sua substância à poesia lírica — até à poesia
dramática, sem, todavia, se lhe dar a forma do drama, nem explícita nem
implicitamente.
Suponhamos
que um supremo despersonalizado como Shakespeare, em vez de criar o personagem
de Hamlet como parte de um drama, o criava como simples personagem,
sem drama. Teria escrito, por assim dizer. um drama de uma só personagem, um
monólogo prolongado e analítico. Não seria legítimo ir buscar a essa personagem
uma definição dos sentimentos e dos pensamentos de Shakespeare, a não ser que a personagem fosse falhada, porque o mau dramaturgo é o que se revela.
Por qualquer
motivo temperamental que me não proponho analisar, nem importa que analise,
construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim,
personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus
sentimentos e ideias, os escreveria.
Assim têm
estes poemas de Caeiro, os de Ricardo Reis e os de Álvaro de Campos que ser
considerados Não há que buscar em quaisquer deles ideias ou sentimentos meus,
pois muitos deles exprimem ideias que não aceito, sentimentos que nunca tive.
Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se deve ler.
Um exemplo:
escrevi com sobressalto e repugnância o poema oitavo do Guardador de Rebanhos com
a sua blasfémia infantil e o seu anti-espiritualismo absoluto. Na minha pessoa
própria, e aparentemente real, com que vivo social e objectivamente, nem uso da
blasfémia, nem sou anti-espiritualista. Alberto Caeiro porém, como eu o
concebi, é assim: assim tem pois ele que escrever, quer eu queira quer não,
quer eu pense como ele ou não. Negar-me o direito de fazer isto seria o mesmo
que negar a Shakespeare o direito de dar expressão à alma de Lady Macbeth, com
o fundamento de que ele, poeta, nem era mulher, nem, que se saiba,
histero-epiléptico, ou de lhe atribuir uma tendência alucinatória e uma ambição
que não recua perante o crime. Se assim é das personagens fictícias de um
drama, é igualmente lícito das personagens fictícias sem drama, pois que é
lícito porque elas são fictícias e não porque estão num drama.
Parece
escusado explicar uma coisa de si tão simples e intuitivamente compreensível.
Sucede, porém, que a estupidez humana é grande, e a bondade humana não é
notável.”
Fernando
Pessoa, in “ Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação”. (Textos estabelecidos e
prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática,
1966.
A miséria do meu ser
A miséria do
meu ser,
Do ser que
tenho a viver,
Tornou-se uma
coisa vista.
Sou nesta
vida um qualquer
Que roda fora
da pista.
Ninguém
conhece quem sou
Nem eu mesmo
me conheço
E, se me
conheço, esqueço,
Porque não
vivo onde estou.
Rodo, e o meu
rodar apresso.
É uma
carreira invisível,
Salvo onde
caio e sou visto,
Porque cair é
sensível
Pelo ruído
imprevisto...
Sou assim.
Mas isto é crível?
19-9-1933
Fernando
Pessoa in “Novas Poesias Inéditas”, (Direcção, recolha e notas de Maria do
Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973
(4ª ed. 1993).
Aqui na orla da praia, mudo e contente
do mar,
Aqui na orla
da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já
que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um
sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei
agonia, pois dormirei de seguida.
A vida é como
uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um
passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um
sono que chega para o pouco ser que se é;
A glória
concede e nega; não tem verdades a fé.
Por isso na
orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma
feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem
quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a
morrer muito antes de ter vivido.
Dêem-me, onde
aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero
nada do acaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um
vago amor de quanto nunca terei,
Não quero
gozo nem dor, não quero vida nem lei.
Só, no
silêncio cercado pelo som brusco do mar,
Quero dormir
sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir
na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar
sem fragrância da brisa de qualquer céu.
10-8-1929
Poesias. Fernando
Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa:
Ática, 1942 (15ª ed. 1995).
A espantosa realidade das coisas
A espantosa
realidade das coisas
É a minha
descoberta de todos os dias.
Cada coisa é
o que é,
E é difícil
explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso
me basta.
Basta existir
para se ser completo.
Tenho escrito
bastantes poemas.
Hei-de
escrever muitos mais, naturalmente.
Cada poema
meu diz isto,
E todos os
meus poemas são diferentes,
Porque cada
coisa que há é uma maneira de dizer isto.
Às vezes
ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho
a pensar se ela sente.
Não me perco
a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto
dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela
porque ela não sente nada,
Gosto dela
porque ela não tem parentesco nenhum comigo.
Outras vezes
oiço passar o vento,
E acho que só
para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.
Eu não sei o
que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que
isto deve estar bem porque o penso sem esforço,
Nem ideia de
outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o
penso sem pensamentos,
Porque o digo
como as minhas palavras o dizem.
Uma vez
chamaram-me poeta materialista,
E eu
admirei-me, porque não julgava
Que se me
pudesse chamar qualquer coisa.
Eu nem sequer
sou poeta: vejo.
Se o que
escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está
ali, nos meus versos.
Tudo isso é
absolutamente independente da minha vontade.
7-11-1915
“Poemas
Inconjuntos”, Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e
notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946
Eu cantarei,
Quando a
manhã abrir as portas do meu esforço,
Eu cantarei,
Quando o
alto-dia me fizer fechar os olhos,
Eu cantarei,
Quando o
crepúsculo limar as arestas,
Eu cantarei,
Quando a
noite entrar como a Imperatriz vencida
Eu cantarei a
Tua Glória e o meu desígnio.
Eu cantarei
E nas
estradas ladeadas por abetos,
Nas áleas dos
jardins emaranhados,
Nas esquinas
das ruas, nos pátios
Das
casas-de-guarda,
A Tua Vitória
entrará como um som de clarim
E o meu
Desígnio espera-la-á sem segundo pensamento.
II
Perto da
minha porta
Onde brincam
as crianças dos outros,
Rompe um
canto infantil, disciplinado e cómodo,
E eu sou a
quinta criança ali, se houver só quatro,
E ninguém me
abandonar embora eu não esteja lá
Canto também,
dormindo transparente e calado.
Álvaro de
Campos, in “ Livro de Versos. Fernando Pessoa”, (Edição crítica. Introdução,
transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.
Fernando Pessoa , o grande poeta do Sec. XX, é sempre uma descoberta infindável. Todos estes escritos são pouco divulgados e constituem um extraordináro acervo. O mundo pessoano é um apelo constante e o reflexo da genialidade o que se comprova pelos textos e poemas aqui apresentados.
ResponderEliminar...Existiram e existem muitas mais pessoas com o substracto intelectual que provocou a genialidade de Fernando Pessoa exposta em toda a sua obra literária, mas nunca tiveram oportunidade e acessibilidade para demonstrarem a riqueza do seu pensamento e da tradução desse pensamento numa obra escrita ou sequer ditada. muitos deles nunca aprenderam a ler... E porquê?... Porquê?... Deixamos à reflexão dos leitores aspossíveis resposta a esta questão, sem diminuir em nada a obra máxima de Pessoa e as insofismáveis capacidades multifacetadas deste grande poeta e escritor, que passados que são 124 anos homenageamos. Antes pelo contrário...
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