Soneto
Amor desta tarde que arrefeceu
amor exacto, vivo, desenhado
a fogo, onde eu próprio me queimei;
amor que me destrói e destruiu
a fria arquitectura desta tarde
- só a ti canto, que nem eu já sei
outra forma de ser e de encontrar-me.
Só a ti canto, que não há razão
para que o frio que me queima os olhos
me trespasse e me suba ao coração;
só a ti canto, que não há desastre
donde não possa ainda erguer-me
para encontrar de novo a tua face.
Eugénio de Andrade, in "Antologia (1940-1961)", Ed. Delfos
Sombra dos mortos, maldição dos vivos.
Também nós…Também nós…E o sol recua.
Apenas o teu rosto continua
A sorrir como dantes,
Liberdade!
Liberdade do homem sobre a terra
Ou debaixo da terra.
Liberdade!
O não inconformado que se diz
A Deus, à tirania, à eternidade.
Sepultos insepultos,
Vivos amortalhados,
Passados e presentes cidadãos:
Temos nas nossas mãos
O terrível poder de recusar!
E é essa flor que nunca desespera
No jardim da perpétua primavera.
Miguel Torga, in “Orpheu Rebelde “, 1958, Poesia completa, Círculo de Leitores
A Escrita
a escrita é a
minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada
esta paixão
pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos
espalhávamos
sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar
outros corpos
de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo
Al Berto, in “O Medo“ (Prémio Pen Clube), Editor Contexto,
1987
Com Eugénio de Andrade, Miguel Torga e Al Berto, um bom momento de poesia...
ResponderEliminarJuntemo-nos a eles, com eles elevemos o nosso canto...
...Nascemos nas manhãs orvalhadas / por elas também o nosso canto na humidade do que não possuíamos / e santa seria a oralidade se impávidos / com as mãos em concha molhadas / não violássemos os sepulcros audíveis em todas as partituras / não fosse a música a absolvição de pecados incríveis / e os sons rompendo rasgando escrituras / e mesmo assim subíamos bebendo cantando / sob o olhar de loucura que escorria pelos degraus do trono de um deus / em busca daquela doçura que sobrou / dos sonhos de vidro que nos podem galgar o sono / desse vidro que foi outrora lúcido e transparente e límpido / e já aqui não mora já aqui nos mente / e não nos serve pois já de chorar todo um oceano se entornou...
Não o sabia assim tão poeta, senhor V. P.!...
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