Deste profundo abismo, senhor
António Lobo
Antunes
"Os livros que
escrevi trazem o meu nome mas tenho dificuldade em encontrar os seus autores.
Só aquele que estou a escrever é feito por mim, os restantes parece-me sempre
terem sido outros homens que os compuseram. Posso reconhecer-me no que sou hoje
em algumas expressões, alguns desenhos de frase, alguns parágrafos talvez,
gosto deles mas afiguram-se-me passos já dados, e que não desejo repetir, na
direcção do meu trabalho de agora, que, de certo modo, os engloba a todos.
Julgo que compõem um único texto, ou que são afluentes de um único texto ainda
não completo, e que, por mil anos que viva, ficará irremediavelmente truncado.
Queria deixar uma catedral de palavras e dou-me conta que a catedral não tem fim.
Queria arredondar o edifício, fechá-lo, e dou-me conta, desolado, da
impossibilidade desse fecho, dada a inevitável limitação da vida. Não morrerei
satisfeito, morrerei com a dor de não ter tido tempo.
Construirei uma obra mais duradoira
que o bronze,
afirmava Horácio: isso julgo que consigo. Ou Ovídio: hei-de sobreviver ao tempo, ao ferro e ao fogo: isso acho que
também consigo. Porém desejava mais do que isso: uma música sem fim, uma
sinfonia total. Decerto o que digo é a frustração de todo o artista e o
inevitável destino da condição humana. Goethe consolava-se declarando ser o
facto de não chegar ao termo a nossa única grandeza. E não conheço, em tantos
autores que li, um só para quem este problema não constitua o drama da sua
existência. Não se alcança a praia por mais que se nade, não há fita de chegada
para esta maratona angustiosa e exaltante.
Quando a
doença me filou pelo pescoço, essa ansiedade envenenou-me as horas. E, quando a
mão me soltou, a marca dos seus dedos imprimiu-se-me na pele. Um dia, o
conjunto de átomos que me compõem desintegrar-se-á sem remédio, e eu a meio da
página de que não redigirei a última linha. Tenho o maior respeito pelos
criadores visto que acabam sempre por perder e não mereciam perder. E tenho
pena de mim porque triunfarei na derrota: um tiro bem acertado deitar-me-á ao
chão a meio do voo, e serei uma perdiz esfarrapada numa moita, que um cachorro
abocanhará para a entregar ao dono, o mesmo dono que traz, pendurados do cinto,
aqueles que me precederam e enganchará no mesmo cinto os que vierem depois, com
idêntica indiferença. Lembro-me das terríveis anotações de Mozart nas margens
do seu Requiem, não tenho tempo, não tenho tempo, idênticas às de Gallois, que
levou toda a noite a escrever antes do duelo que, de manhã, o matou, tentando
condensar em poucos momentos as assombrosas descobertas dos seus dezanove anos
de vida. É isto justo? E a resposta vem sinistra: é. Quem escolhe, ou foi
escolhido, para este tipo de destino, finda, inevitavelmente, assim. É muito
rara a correspondência de pintores, ou escritores, ou compositores em que a
tragédia de que falo não esteja constantemente presente, como uma chaga viva.
Piedade para
nós que trabalhamos nas fronteiras do ilimitado e do futuro, suplicou
Apollinaire e, de facto, somos dignos de piedade. Há uns verões, num mosteiro
da Roménia, o bispo cantou, com os padres e os seminaristas, uma oração pelas
almas eternas dos escritores falecidos. Era uma igreja belíssima, no alto de
uma encosta batida pelo vento e pelos grandes bandos de corvos chegados da
Ucrânia, cujos campos de trigo se viam muito ao longe, e o canto, de dezenas e
dezenas de vozes, alargava-se pelas nogueiras à volta da igreja, profundo, comovente, cheio, em simultâneo, de tristeza e de esperança, enquanto eu pensava
em Gogol, o grande génio da Ucrânia, que nos retratos se assemelhava a um
corvo, botando no fogo, a soluçar, toda a segunda parte das suas
extraordinárias "Almas Mortas" e, em seguida, deitando-se na cama,
recusando comer, até à agonia poucos dias depois: a literatura também tem os
seus mártires, e nunca esquecerei a comoção que senti nessa igreja e a certeza
que Gogol voava também, com os restantes corvos, em torno da colina, sobre as
nogueiras em flor. Apollinaire, ainda: abram-me esta porta à qual bato a
chorar, num verso que poderia ter sido composto por qualquer criador e que está
sempre presente em mim diante de todas as obras de Arte. Abram-me esta porta à
qual bato a chorar, é o que oiço, desde os poemas babilónicos, de há doze mil
anos, até à mínima palavra de hoje. E quando Maiakovski explicou
(desculpem tanta referência)
comigo a Anatomia enlouqueceu: sou todo coração, estava a falar por nós.
(desculpem tanta referência)
comigo a Anatomia enlouqueceu: sou todo coração, estava a falar por nós.
Conheci
homens políticos importantes, desportistas excepcionais, criaturas de extrema
bondade, santos anónimos de alminhas puras mas jamais me emocionei tanto como
perante os criadores, não pela sua capacidade de nos oferecerem a beleza na
palma da mão estendida, juntamente com a dignificação do Homem, mas pelo enorme
padecimento inerente a esta capacidade, e a certeza pavorosa do seu trabalho
estar destinado a ficar incompleto.
Vem-me à
cabeça Tolstoi moribundo, numa estação de caminho de ferro, percorrendo o
cobertor com os dedos no gesto de escrever. É dessa maneira que gostaria de me
ir embora: a escrever, com os dedos incertos, numa dobra de lençol, na
tentativa falhada de completar o meu De Profundis necessariamente fragmentário.
Oxalá, numa igreja da Roménia, cercada de corvos e nogueiras, um único
seminarista, porque um único seminarista me chega, reze cantando pela alma
eterna de mais um pobre escritor falecido."António Lobo Antunes, in revista Visão, Quinta feira, 14 de Abril de 2011
A profundidade da escrita de António Lobo Antunes é notável em qualquer género literário. As crónicas são contudo um dos exemplos em que através de textos curtos o autor se revela um artífice.Qualquer crónica de António Lobo Antunes é sempre uma descoberta maravilhosa.Esta fala-nos da perenidade da obra e da inquietude constante do escritor. Magistral.
ResponderEliminarConfessionalismo, incerteza e enigmas na alma de um artista, numa das horas máximas da vida, neste caso de um grande escritor, António Lobo Antunes!... Revemo-lo na alma dos grandes escritores russos,nos séculos XIX e XX... Escrita com um sentido, afinal o inviolável sentido da Escrita!
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