Either man will abolish war,or war will abolish man.Bertrand Russell
"A primeira guerra mundial (1914 – 1918) foi uma
medonha carnificina, com a qual todos perderam, vinte milhões morreram, entre
militares e civis, imensos ficaram mutilados, física e mentalmente, e alguns de
boa vontade acharam que este açougue iria servir de vacina contra futuros
holocaustos, porventura mais mortíferos. Outros, até, que tinham experimentado
o odor fétido da podridão dos cadáveres, nesses esgotos, que eram as
trincheiras, infectadas por ratos e piolhos (Barbusse, Vercel, Dorgelès,
Remarque, Duhamel, este, como médico), escreveram assinaláveis e inesquecíveis
livros, com o objectivo de imprimirem, com vigor, nos imaginários atormentados dos
sobreviventes, a recordação do horror que convinha, para todo o sempre, evitar.
Jean Giono, grande romancista francês, enorme prosador e destemido ser humano
incapaz de matar, andou, contra toda a probabilidade, quatro anos daquela
guerra, persistentemente vivo e de espingarda ao ombro, recusando-se a disparar
um tiro fosse contra quem fosse. Da sua companhia, sobreviveu ele e o capitão
da mesma. Dos seus admiráveis Écrits Pacifistes, extraio esta curta e
impressiva passagem: “Eu não consigo esquecer a guerra. Gostaria de a esquecer.
Passo, por vezes, dois dias ou três sem pensar nisso e, bruscamente, revejo-a,
sinto-a, oiço-a, sofro-a mais uma vez. E tenho medo. Esta noite é o fim de um belo dia de Julho. A planície, lá em
baixo, tornou-se completamente arruivada. Vamos cortar o trigo. O ar, o céu, a
terra estão imóveis e calmos. Passaram-se vinte anos. E, vinte anos depois,
apesar da vida, das dores e dos momentos de felicidade, não me sinto lavado da
guerra. O horror desses quatro anos está sempre comigo. Trago comigo a marca
deles. Todos os sobreviventes carregam essa marca.” A marca foi de tal fundura,
que Giono jurou nunca mais participar em guerra nenhuma e cumpriu-o. E pagaria
a factura pesada por ter recusado fazê-lo, por ocasião da segunda guerra
mundial, não tendo esquecido os horrores da primeira: REFUS D’OBÉISSANCE!
Roger Martin du Gard que acabara de ter um
respeitável mas modesto triunfo com a publicação do seu romance JEAN BAROIS, no
ano anterior, e viria a celebrizar-se com a sua admirável saga familiar, LES
THIBAULT, fez a guerra no serviço de ambulâncias, isto é, recolhendo os
feridos, estropiados e moribundos, sinistro corolário do pior que a aventura
humana tem a oferecer: a guerra, como pífia e mortífera forma de solucionar
conflitos de interesses. O contacto quotidiano com essa paisagem de um absurdo
goyesco e sangrento, fá-lo-ia, como a Giono, considerar que a guerra era o mal
absoluto, não a aceitando, em situação nenhuma, como solução de
desentendimentos. E manteve esta resolução, mesmo durante os primeiros tempos
da guerra contra Hitler. E só, quando informações fidedignas lhe chegaram ao
conhecimento, sobre o que o nazismo significava, decidiu que este talvez viesse
a provar ser um mal ainda superior à guerra.
Duhamel, médico e escritor e amigo de Martin du
Gard, de asa também ferida, ao contacto com os mutilados e moribundos do
conflito, escreveria páginas alucinantes sobre aquele horrível sorvedouro de
sangue. A Europa terá, ali, perdido milhares de promissores talentos, pondo fim
à sua supremacia no mundo. E terá perdido, até, alguns homens de génio, ainda
em embrião. É que a guerra tem só uma virtude: é democrática, mata, por igual,
imbecis e homens de valor. A guerra não é EXCLUSIVA, pelo contrário, é
assombrosamente INCLUSIVA.
Seja como for, um punhado de homens, um pouco por
toda a parte, tentaram dar ardente testemunho de todos aqueles horrores, para
tentar que aquela guerra fosse a última das guerras. Porém, vinte anos depois,
a humanidade estava envolvida noutra ainda mais mortífera. Será que o inferno
não ensina a evitá-lo? Vivemos actualmente, com um sinistro magarefe aqui à
porta, que a pretexto de históricos sonhos imperialistas e saudoso do tempo de
um império assassino e cheio de boa consciência, encetou uma violação do
direito internacional, invadindo um vizinho que o incomodava e dava jeito
incorporar no seu seio ansioso por maior volume. Há quem, no Ocidente, use de
uma filologia enviesada e assaz masoquista, para justificar todas as agressões,
violações e genocídios de um agressor que é alegadamente “pessoa de bem”. Talvez
valesse a pena reeditar e mantê-las no mercado, bem à vista, as obras de
autores que souberam dar veemente notícia dos horrores da guerra."
Eugénio Lisboa, 08.10.2023
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