terça-feira, 21 de setembro de 2021

Bom dia

“ Entre o céu e a terra passam “
 
Entre o céu e a terra passam.
Quem passa? Nós?
Quem nós? Quem?
 
Passam terra e céu entre –
- O quê? Nós?
- O nós? O ?
                      11.06.61

Jorge de Sena, Visão Perpétua, INCM, p.66


Mais um dia. Diz-se que ser velho é perder a noção do tempo. Ele passa voraz e sem corpo. Talvez seja essa a grande vantagem da tal "geração grisalha". O tempo não tem peso nos dias porque já se corporizou em nós. O traço, que tínhamos, perdeu o vigor primeiro e alastra-se na fugacidade de traços que se esvaem em réplicas informes. As rugas, o corpo vivido dão-nos a dimensão dessa voracidade do tempo, em nós. Mas , se o corpo o sente, o espírito continua a afirmar que é hoje o presente e o futuro é só amanhã. E o vigor do pensamento liberta-se da proximidade desse futuro que sabemos carregar um fim. Sonhamos, cantamos, rimos, choramos e somos nós como sempre o fomos.
Registo um excerto de Carta ao Futuro de Vergílio Ferreira:

«O que há a redimir é a adequação deste milagre brutal de nos sabermos uma evidência iluminada, de nos sentirmos este ser que é vivo, se reconhece único no corpo que é ele, na lúcida realidade que o preenche, o identifica nas mãos que prendem, na boca que mastiga, nos pés que firmam, de nos descobrirmos como uma entidade plena, indispensável, porque ela é de si mesma um mundo único, porque tudo existe através dela e é impossível que esse tudo deixe de existir, porque ela irrompe de nós como a pura manifestação de ser, e o «ser» é a única realidade pensável — o que há a redimir é a adequação desta fantástica evidência que nos cega e a certeza de que ela está prometida à morte, de que o seu destino é a impossível e absoluta certeza do não-ser, da pura ausência, da totalidade nula, da pura irrealidade. »


Um tanto tortuoso este caminho vergiliano, mas a evidência é a certeza de que há uma finitude estabelecida à vida, desde a sua nascença.  Adequar ou conectar  o milagre da vida à verdade da morte é o maior desafio humano.
Neste ano de tanta ameaça, de tanta morte inesperada é ainda mais difícil esse desafio. A emergência  do perigo fez-nos ainda mais irrelevantes, mais precários, mais frágeis. O futuro nem sempre é o amanhã, embora o pensemos diferente daquilo que o projectáramos. Porém continuamos. Permanecemos . Estamos vivos e , se a vida é a negação da morte , celebremos, pois, o dia que começa.
Bom dia!

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