Tabacaria
(...)
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe "Adeus ó Esteves!" , e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
15-1-1928
Só quem conhece bem a poesia pessoana é capaz de tecer este magnífico poema. Eugénio Lisboa fê-lo, com mestria e humor.
Confessemos, com melancolia, que o Álvaro de Campos,
às vezes, exagerava! Abusava, mesmo,
da nossa boa fé!
Como é que um homem, que nunca tinha encontrado
ninguém que tivesse levado porrada, como ele,
que passara a vida a levá-la e a aguentá-la,
sem responder, por a coragem não ser o seu forte,
queria que acreditássemos que pode haver homens,
como o Esteves, sem metafísica!
O Esteves frequentava, diariamente, a tabacaria,
que tinha um dono dela e ficava mesmo em frente
do sítio em que o Álvaro vivia e se entediava.
O dono da tabacaria passava o santo dia,
fechado na sua loja, a vender cigarros,
mas, a maior parte do tempo, a olhar para o ontem,
fartando-se, portanto, de fazer metafísica,
que é o que mais fazem os homens que olham para o ontem.
Vejamos: um homem, ali, consigo próprio, a não fazer nada,
não vendo propósito nenhum em ali estar,
e vendendo ou não vendendo cigarros, conforme,
não é natural que faça metafísica? A metafísica
foi feita de propósito para os que se enfastiam
e, em consequência, fazem perguntas muito básicas
e têm sonhos malucos como o Álvaro confessava ter.
Mais metafísica não podia haver do que aquela
que tinha o dono da tabacaria,
que fazia tanto mais metafísica, quanto mais se chateava.
Ele era metafísica por todos os lados
e, na tabacaria, chegava a haver mais metafísica do que tabaco!
Ora, entrando o Esteves, todos os dias, naquela loja,
saturada de metafísica, e falando assiduamente,
com um homem ansioso por ter respostas àquelas perguntas
que, desde as calendas gregas, em vão, atormentam
os filósofos, não é natural que se tenha impregnado de metafísica,
que, é sabido, se propaga como sarampo?
A verdade é que o Campos talvez fosse um grande engenheiro
de máquinas, dou isso de barato. Mas, de metafísica,
nem cheiro. Ele confundia neura e megalomania
com metafísica. Acontece a muitos e acontecia ao Álvaro.
Porque se o engenheiro Campos tivesse metafísica,
pouca que fosse,
teria logo visto que o Esteves, alegadamente sem metafísica,
era do melhor e mais genuíno que a metafísica tinha
produzido!
Não há nada como passar-se a vida a não fazer nenhum,
para que a metafísica nos ataque, vigorosamente,
como a gripe ou a varíola. Só que estas passam
e a metafísica vem para ficar.
Suspeito, com bons fundamentos, que, na vida,
o Esteves fazia tão pouco como o dono da tabacaria,
pelo que se encontrava vulnerável à metafísica. Digamos
que estava fadadinho para a metafísica!
Já o Álvaro de Campos, que se esfalfava a trabalhar
com máquinas, gostava de máquinas e elogiava as máquinas,
pouco tinha de metafísica, não indo além de umas neuras
megalómanas, que não passam de aspiração a metafísica.
Quem acenava ao Álvaro de Campos, lá da rua e do poema
do Álvaro, era o Esteves com metafísica
e não o Esteves, alegada e injuriosamente, sem metafísica.
Quem não tinha tineta metafísica que se visse
era o Campos, bom engenheiro, se quiserem, mas incapaz,
juro, de ver a belíssima metafísica que há nas máquinas.
Ele achava que as máquinas eram isentas de metafísica!
Mas bastaria olhá-las, com atenção, para se perceber
quanto, produtivamente, se enfastiavam e metafisicamente
se interrogavam, sobre aquele monótono rodar, rodar, sem parar,
sem que ninguém as esclarecesse sobre o propósito disso!
Basta pormo-nos a perguntar um bocadinho, para produzirmos
metafísica até não mais acabar, mas o Campos,
coitado, não sabia isso, como não sabia muitas outras coisas.
Passava a vida a confundir, atabalhoadamente, divagar
e sonhar com realmente espantar-se e interrogar.
Por isso inventou um Esteves sem metafísica que nunca existiu.
27.08.2021
Eugénio Lisboa, (Poesia inédita)
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