Um caso de burro
por Machado de Assis
“Quinta-feira
à tarde, pouco mais de três horas, vi uma coisa tão interessante, que
determinei logo de começar por ela esta crónica. Agora, porém, no momento de
pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto que eu para um espetáculo,
que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe. Releve a importância; os gostos
não são iguais.
Entre
a grade do jardim da Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o antigo
passadiço, ao pé dos trilhos de bondes, estava um burro deitado. O lugar não
era próprio para remanso de burros, donde concluí que não estaria deitado, mas
caído. Instantes depois, vimos (eu ia com um amigo), vimos o burro levantar a
cabeça e meio corpo. Os ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos
fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mais tão frouxamente,
que parecia estar próximo do fim.
Diante
do animal havia algum capim espalhado e uma lata com água. Logo, não foi
abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quem quer que seja que
o deixou na praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena acção. Se
o autor dela é homem que leia crónicas, e acaso ler esta, receba daqui um
aperto de mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu da água; estava já para
outros capins e outras águas, em campos mais largos e eternos.
Meia
dúzia de curiosos tinha parado ao pé do animal. Um deles, menino de dez anos,
empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na anca do burro
para espertá-lo, então eu não sei conhecer meninos, porque ele não estava do
lado do pescoço, mas justamente do lado da anca. Diga-se a verdade; não o fez —
ao menos enquanto ali estive, que foram poucos minutos. Esses poucos minutos,
porém, valeram por uma hora ou duas. Se há justiça na Terra valerão por um
século, tal foi a descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos
estudiosos.
O
que me pareceu, é que o burro fazia exame de consciência. Indiferente aos
curiosos, como ao capim e à água, tinha no olhar a expressão dos meditativos.
Era um trabalho interior e profundo. Este remoque popular: por pensar morreu um
burro mostra que o fenómeno foi mal entendido dos que a princípio o viram; o
pensamento não é a causa da morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à
matéria do pensamento, não há dúvidas que é o exame da consciência. Agora, qual
foi o exame da consciência daquele burro, é o que presumo ter lido no escasso
tempo que ali gastei. Sou outro Champollion, porventura maior; não decifrei
palavras escritas, mas ideias íntimas de criatura que não podia exprimi-las
verbalmente.
E
diria o burro consigo:
“Por
mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que mereça remorso. Não
furtei, não menti, não matei, não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda
a minha vida, se dei três coices, foi o mais, isso mesmo antes haver aprendido
maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que é apanhar e
calar. Quando ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente é que percebi que
me não entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, não com ideia de
agravar ninguém. Nunca dei com homem no chão. Quando passei do tílburi ao
bonde, houve algumas vezes homem morto ou pisado na rua, mas a prova de que a
culpa não era minha, é que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar
aguardando autoridade”.
“Passando
à ordem mais elevada de acções, não acho em mim a menor lembrança de haver
pensado sequer na perturbação da paz pública. Além de ser a minha índole
contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo nenhuma
revolução declarado os direitos do burro, tais direitos não existem. Nenhum
golpe de estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os obrigou. Monarquia,
democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os interesses
da minha espécie. Qualquer que seja o regime, ronca o pau. O pau é a minha
instituição um pouco temperada pela teima que é, em resumo, o meu único
defeito. Quando não teimava, mordia o freio dando assim um bonito exemplo de
submissão e conformidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas; bastava sentir o
freguês no tílburi ou o apito do bonde, para sair logo. Até aqui os males que
não fiz; vejamos os bens que pratiquei.”
“A
mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa o tílburi e o
namorado à casa da namorada — ou simplesmente empacando em lugar onde o moço
que ia ao bonde podia mirar a moça que estava na janela. Não poucos devedores
terei conduzido para longe de um credor importuno.
Ensinei
filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na
quietação dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscos, queria
fazer rir os amigos, fui sempre em auxílio deles, deixando que me dessem tapas
e punhadas na cara. Enfim…”
Não
percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado que pesaroso. Contente da
descoberta, não podia furtar-me à tristeza de ver que um burro tão bom pensador
ia morrer. A consideração, porém, de que todos os burros devem ter os mesmos
dotes principais, fez-me ver que os que ficavam não seriam menos exemplares do que
esse. Por que se não investigará mais profundamente o moral do burro? Da abelha
já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga também, colectivamente
falando, isto é, que as suas instituições políticas são superiores às nossas,
mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro, que é maior?
Sexta-feira,
passando pela Praça Quinze de Novembro, achei o animal já morto.
Dois
meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo repugnante; mas a
infância, como a ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não havia cadáver nem
nada. Assim passam os trabalhos deste mundo. Sem exagerar o mérito do finado,
força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não inventou a
dinamite. Já é alguma coisa neste final de século.
Requiescat in pace.”
Machado de Assis, in Contos
e Crónicas, Editor Malê ,Brasil
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