Desmemória 2
O medo seca a boca, humedece as mãos e mutila. O medo de saber condena-nos à ignorância ; o medo de fazer reduz-nos à impotência. A ditadura militar, medo de ouvir, medo de dizer, transformou-nos em surdos-mudos. Agora, a democracia , que tem medo de recordar, enferma-nos de amnésia; mas não precisamos de ser Sigmund Freud para sabermos que não há tapete capaz de esconder o lixo da memória.Eduardo Galeano, O Livro dos Abraços.
"Estes poemas são os frutos do meu venturoso reencontro com a poesia depois de trinta anos de abstinência literária.
Com eles entrego a expressão mais bela e honesta da minha condição humana sem nada esperar em troca a não ser a anónima emoção que alguém possa ter em sua leitura. E se este alguém fores tu..., é exactamente para ti que eu escrevo. E se tu fores capaz de abrir tuas velas e navegar comigo, de te indignar perante a injustiça ou de sentir, como eu, esse profundo respeito por tudo o que respira, valeu a pena buscar-te nos meus versos. É com esta única intenção que minha lírica paternidade envia, despojada e comovida, estes meus filhos ao mundo. Para que cumpram alguma missão de beleza para a qual foram escritos."
Curitiba, Fevereiro de 2007
Manoel de Andrade, in Cantares, Poemas, Editora Escrituras, São Paulo , Brasil, 2007
finda a tempestade, surgiste na bonança
me conjugando o verbo da esperança
num íntimo gesto de lírico carinho.
Tu foste meu fuzil, o meu canto guerreiro
a voz peregrina acesa no meu peito,
ensina-me a cantar agora de outro jeito
para entoar amor e paz ao mundo inteiro.
silenciados e por atalhos clandestinos
trinta anos se passaram, dia-a-dia.
Depois a liberdade chegou para o meu povo
mas só agora eu te encontrei de novo
para nunca mais perder-te... ó poesia.
Curitiba, Dezembro de 2002
“POR QUE CANTAMOS”
Se tantas balas perdidas cruzam nosso espaço
e já são tantos os caídos nesta guerra...
Se há uma possível emboscada em cada esquina
e temos que caminhar num chão minado...
“você perguntará por que cantamos”
Se a violência sitia os nossos atos
e a corrupção gargalha da justiça
Se respiramos esse ar abominável
impotentes diante do deboche...
“você perguntará por que cantamos”
Se o medo está tatuado em nossa agenda
e a perplexidade estampada em nosso olhar
se há um mantra entoado no silêncio
e as lágrimas repetem: até quando, até quando, até quando...
“você perguntará por que cantamos”
Cantamos porque uma lei maior sustenta a vida
e porque um olhar ampara os nossos passos
Cantamos porque há uma partícula de luz no túnel da maldade
e porque nesse embate só o amor é invencível
Cantamos porque é imprescindível dar as mãos
e recompor, em cada dia, a condição humana
Cantamos porque a paz é uma bandeira solitária
a espera de um punho inumerável
Cantamos porque o pânico não retardará a primavera
e porque em cada amanhecer as sombras batem em retirada
Cantamos porque a luz se redesenha em cada aurora
e porque as estrelas e porque as rosas
Cantamos porque nos riachos e lá na fonte as águas cantam
e porque toda essa dor desaguará um dia.
Cantamos porque no trigal o grão amadurece
e porque a seiva cumprirá o seu destino
Cantamos porque os pássaros estão piando
e ninguém poderá silenciar seu canto.
Cantamos para saudar o Criador e a criatura
e porque alguém está parindo neste instante
Pelo encanto de cantar e pela esperança nós cantamos
e porque a utopia persiste a despeito da descrença
Cantamos porque nessa trincheira global, nessa ribalta
nossa canção viverá para dizer por que cantamos.
Cantamos porque somos os trovadores desse impasse
e porque a poesia tem um pacto com a beleza.
E porque nesse verso ou nalgum lugar deste universo
o nosso sonho floresce deslumbrante.
(*) Escrevi estes versos motivado pelo belíssimo poema “POR QUE CANTAMOS” do poeta uruguaio MARIO BENEDETTI. Num tempo em que todos caminhamos sobre o “fio da navalha” me senti, como poeta, implicitamente convocado a também testemunhar por que cantamos.
Manoel de Andrade, in Cantares, Poemas, Editora Escrituras, São Paulo , Brasil, 2007, pp.73-74
Outrora
outro era o mar
o grande mar da infância...
tinhas aquela água imensa para salgar tua inocência
o horizonte incendiado pelo fogo das auroras
e as manhãs de espumas, conchas, redes e gaivotas.
Tinhas os crepúsculos de verão para extasiar tuas retinas
e no caminho rútilo dos pirilampos
tinhas a dança luminosa de um farol
e a lua flutuando no plácido espelho das águas.
Na voz submersa de um tempo inumerável
o mar te ensinou a mágica leitura do infinito.
No seu murmúrio ouviste o eco de todas as origens,
na linguagem das ondas e das tormentas,
na força das correntes e nas grandes calmarias,
o mar te ensinou a sonoridade e o silêncio,
o encanto e a indomável magnitude dos movimentos.
Os pescadores te contaram de sua insondável beleza,
de passarelas de algas e corais
onde desfilam cores, formas e mistérios.
Te contaram histórias de tempestades e naufrágios,
de embarcações que se perderam,
de sobreviventes, órfãos e viúvas.
O mar te seduziu com o beijo incessante das espumas,
te acenou com o lampejo intermitente dos relâmpagos,
com o branco das velas que voltavam.
Encheu teu samburá de caramujos e mariscos,
teus lábios de sal, teus pés de areia
e tatuou em tua vida esta única saudade.
O mar te inundou com sua água imensa e horizontal
e, com suas imensuráveis distâncias,
deixou em teus passos um caminho aberto para todos os portos.
Teu coração enfim,
repleto como um dique,
era um relicário de rotas e promessas
e desde então em tua alma navegam todos os possíveis...
Desabrochavas a flor da adolescência
quando uma onda solitária escorreu teus passos
e a vida te levou para o planalto.
Não conhecias o exílio e a penumbra das cidades
onde piratas velozes manejam o vício e a lança.
Não conhecias os tentáculos da noite
nem as paisagens sitiadas pela sedução.
Sobrevives nestes mares e ilhas inquietantes,
te consolas com a foz dos ribeirões,
recrias aqui a tua praia, o teu manguezal
e um horizonte impossível.
Retornas ao teu mar, de quando em quando,
mas ele não é mais o teu mar de outrora.
Recordas um tempo de saudosas navegações,
de pescadores partindo pelas madrugadas
e do regresso das canoas trazidas pelo vento.
Um tempo em que as estações se sucediam em equilíbrio
e num céu de ozônio o sol te oferecia a carícia de uma luz imaculada.
Num tempo em que o petróleo ainda não boiava sobre as águas
e os rios não despejavam nos litorais sua agonia.
As redes chegavam pesadas e repletas
porque os radares ainda não cercavam os cardumes no teu mar.
Não conhecias o protesto das baleias suicidas,
nem os estertores dos pinguins betumizados.
Os arpões não tinham ainda sua infalível precisão,
os rios não choravam os seus mortos,
nem choravam os recifes os seus corais despedaçados.
No fundo e na superfície
teu pranto assiste agora a um funeral de vítimas.
Num tempo que se curva sob o peso dos pressentimentos,
teus punhos se fecham contra uma legião de predadores.
Eis o teu cálice...
tua indignação, teu suplício...
teu grito... como tantos
tua lágrima... como tantas.
Impotente, num mundo que se afoga, sobrevives...
Sobrevives...
na memória e no esquecimento...
Sobrevives...
quando te hospedas na infância...
Sobrevives...
porque um estuário de esperança te sobrepõe à realidade...
Sobrevives...
porque um território de sonho te preserva do naufrágio.
Curitiba, Outubro de 2003
Tudo abeirou minha infância
beira do rio, beira-mar,
orla branca de esperança
no leste do meu olhar.
Meu batelão emborcado
à beira de me afogar,
eu sobre a ponte abeirado
puxando minhas puçás.
Beirando todas as rotas,
nas asas das gaivotas
meus olhos cruzavam o mar;
sonhava à beira do caís
com um barco, nada mais,
e eu no mundo a navegar.
Curitiba, Novembro de 2004
Baía, meu manguezal,
arvoredo de forquilhas,
verde estuário de ilhas
branca areia, meu quintal.
Pampos, bagres, paratis,
mariscos no quebra mar,
tanto boto a mergulhar,
tantas tocas de siris.
No porto um casco furado,
negro sangue derramado,
ó que cinzenta agonia,
os pescadores chorando,
e o óleo que chega boiando
no rastro da maresia.
Curitiba, Novembro de 2004Uma semana após a explosão donavio Vicuña no porto de Paranaguá.
Manoel de Andrade, in Cantares, Poemas, Editora Escrituras, São Paulo , Brasil, 2007, p.45
Nota: Livres Pensantes vai fazer uma pausa. Deixa-vos , a todos vós que nos têm acompanhado , o canto de Manoel de Andrade a quem saudamos. O Brasil vive um momento de ensombrada claridade. A voz dos poetas não pode ser amordaçada. Que o clamor de um povo se não ensurdeça. Que a justeza da paz e da harmonia não deixem de ser o garante de um país, que já muito sofreu , para que a Liberdade possa prosseguir em fecundação plena.