quarta-feira, 14 de julho de 2021

Sobre a Poesia XXII ( 2ª parte)

Entretanto, que se passa com a poesia?

A poesia há muito que deixara de ser narrativa, se é que alguma vez profundamente o fora. A poesia passou a viver daquilo que nunca deixara de ser: o exercício da sabedoria da linguagem, uma aventura da palavra. Reduziu-se ao achado artístico, à capacidade de surpresa, à exploração intensiva da fala.
Os concretistas, que fizeram a sua época, esgotaram-se em experiências que em si mesmas se compraziam, deixaram-se atrair perigosamente por outras artes com as quais não poderiam competir, esqueceram-se afinal da palavra que, mesmo desintegrada, pulverizada, explorada nas suas formas mínimas, não deixa de ter características específicas. A poesia concreta pode ser um limite a atingir, os poetas de vanguarda não poderão deixar de ter em conta as suas conquistas, mas os seus teóricos, ao convertê-la num absoluto, tinham necessariamente de chegar à conclusão de que a poesia morreu, quando o que morreu foi a poesia concreta.
A poesia está doente, a poesia morreu? A poesia continua. A linguística, uma das disciplinas mais importantes no domínio das ciências, veio dar-lhe um novo alento e um apoio insuspeito. A teoria da informação, a lógica matemática, a estatística permitiram iluminá-la melhor. A poesia já não tem mistério, a poesia é uma coisa que se aprende, o génio não tem sentido na época dos computadores. A história, o argumento, a intriga, que deixaram de apoiar o romance e o cinema desertaram de toda a arte.
A desmistificação artística é geral. O argumento, insistimos, nunca passara de uma maneira de assegurar a consistência da estrutura. Mas essa consistência podia ser garantida através de processos mais específicos e menos enganadores, como por exemplo as estruturas sintácticas, as enumerações, a anáfora, para só citar alguns. A poesia que, como vimos, nunca deixou de ser o núcleo de toda a arte, vê-se assim de súbito situada no centro da problemática artística, graças ao seu carácter precursor, à fidelidade ao destino da arte, à coerência que, se temporariamente se isolou, foi o penhor da fidelidade de toda a actividade artística à sua mais profunda natureza, à sua origem, à sua finalidade.
A poesia não tem nada, a poesia não promete nada que não ela própria. Há muitos séculos divorciada da sua origem religiosa, acabou por se emancipar dos últimos mitos. No meio do desconcerto pouco menos que geral, os poetas, tantas vezes isolados, incompreendidos, expulsos da cidade asseguraram a continuidade da única religião possível.
Tem poucos leitores a poesia? Toda a arte tem pouco público. A arte é exigente e, mesmo nos países mais desenvolvidos, apesar do elevado grau de alfabetização que apresentam, as exigências da organização da sociedade moderna submetem em geral o homem a um tipo de vida que se não compadece com a disponibilidade para um sector da actividade intelectual que ao fim e ao cabo, não produz dividendos, nem sequer assegura a tranquilidade das consciências. Aliás, a receptividade para a poesia já hoje por hoje é muito diferente nos países ocidentais ou nos países socialistas mas, embora pudéssemos tentar encontrar uma explicação para o facto, preferimos não nos arriscar a fazê-lo, quando nem sequer Georges Mounin o faz, no seu livro Poésie et Société.
A poesia subsiste, a poesia subsistirá. Independentemente de questões intrínsecas, que explicarão o êxito momentâneo de certas obras, apostamos numa forma de arte que particularmente se apoia na linguagem e nas suas mais profundas virtualidades, vizinha afinal de uma linguagem popular que, embora prejudicada pelo êxodo rural e pelo consequente domínio, mais aparente do que real, de um idioma reduzido, fundamental digest, não deixará de sobreviver enquanto sobre a terra algum homem houver. A poesia núcleo e limite das artes que se apoiam na linguagem que distingue o homem dos outros animais, apresenta-se-nos como o último reduto dessas artes. Atitude utópica, aposta, justificação própria? Depois do que já, ao longo deste artigo, dissemos, cremos honestamente que não. Na pior das hipóteses, mortal como o homem e como a sua única terra, a poesia permanecerá não só como a forma mais pura de arte literária mas também como a indisciplinadora mais audaz, como a afirmação mais vigilante de uma consciência individual e social capaz de acusar todas as traições do homem ao seu destino humano. Poesia, arte do passado, do presente e do futuro, principalmente do futuro, eu, teu ínfimo cultor, te saúdo, aqui do mais ocidental dos países.»
Ruy Belo , Poesia, último reduto da literatura in ”Na senda da Poesia” , Ed. Assírio & Alvim, 2002.
 
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