quarta-feira, 28 de julho de 2021

Colonialistas quem, nós?

"Livro de Vozes e Sombras, de  João de Melo, Publicações D. Quixote, 2020,foi o vencedor da 26.ª edição do Grande Prémio de Literatura. A decisão do júri, constituído pelo professor e escritor Vítor Aguiar e Silva, pelo presidente da Associação Portuguesa de Escritores, José Manuel Mendes, e, pelo professor da Universidade do Minho Carlos Mendes de Sousa, foi unânime. O prémio tem o valor pecuniário de 15 mil euros.
O júri, segundo comunicado enviado à agência Lusa, realçou o “apurado sentido de composição e a qualidade de escrita no desenvolvimento de um romance que, percorrendo diversos espaços geográficos e sociais, bem como tempos convulsionados, traçam uma memória colectiva densa, avessa a todo o esquematismo, a partir de núcleos efabulatórios, nos quais avultam personagens de grande finura e poder contrastivo”.Um belíssimo romance que aproxima ou supera o autor das suas obras mais credenciadas. Rebuscou e acertou uma estrutura febril e avassaladora, puxou para a literatura a história da FLA – Frente de Libertação dos Açores mediante uma entrevista a uma das suas figuras icónicas de uma jornalista vinda de Lisboa, umas boas décadas depois. Há memórias de uma guerra da Guiné, chega o 25 de Abril com os seus ventos de independentismo insular, salta-se para a Angola colonial e depois a descolonização, aqui João de Melo legou páginas que passarão para a posteridade, tal o vigor emprestado àquela turbulência, ao espetáculo das fugas, ao desmoronamento de vidas. Vozes e sombras a atestar que o tempo passa e o bicho humano se adapta.
Com os Açores, de onde João de Melo é natural, no centro da narrativa, o Livro de Vozes e Sombras é uma obra sobre as aspirações revolucionárias do pós-25 de Abril de 1974, vividas entre os Açores, Lisboa e as nações africanas, que estiveram sob administração portuguesa. 
Há um incontestável esmero na arquitetura desta obra. Logo o encontro entre a jornalista Cláudia Lourenço e o lendário agente da FLA, Mariano Franco, partem do porto de Ponta Delgada para as Capelas. João de Melo está em casa, daí a vivacidade de nos falar do incenso, dos canaviais, cedros, ciprestes, dragoeiros e criptomérias, e aquele vento forte, desalmado, que atravessa lameiros, córregos e canadas. É pela voz do lendário insurrecto que se começa a falar do colonialismo, do império, ele estivera na Guiné, experiência duríssima. Diga-se de passagem, é o episódio mais canhestro deste belíssimo romance, só mesmo quem não andou pela Guiné e não lhe conhece a orografia é que pode falar em precipícios e abismos. Mariano conta e torna a contar, assistiu à revolução em Lisboa, meteu-se mesmo nas manifestações, jurou a si próprio que iria travar todo aquele delírio proletário na sua terra. Surge Manuel Cristóvão, um sindicalista que um dia será forçado a vir para o continente, descobrirá uma companheira, uma retornada de Angola a quem caberá o discurso final da reconciliação pós-Império. Este Manuel Cristóvão será alvo de sevícias, o tempo se encarregará de atirar a FLA para o caixote do lixo da História, a normalização far-se-á sentir após os acontecimentos do 25 de Novembro.
E saltamos para Angola, para a Casa Grande de Munakala, mergulhamos a sério no colonialismo, personificado pelo granjeiro Custódio Pinto, o 25 de Abril chegou a África, onde se esperava compromisso entre os diferentes movimentos de libertação, estala a demência, começam as fugas, os assassinatos, as destruições, mata-se selvaticamente o gado, Custódio manda a mulher e uma das filhas para Nova Roma, incendeia a casa. Aqui se encetam páginas literárias de grande qualidade, até porque a narrativa cabe à menina cega transformada no oráculo daquela curva da história, Ângela conta igualmente a chegada a Lisboa, a vergonha de serem chamados colonialistas, racistas, reacionários, exploradores e assassinos dos africanos. E depois a vida em Lisboa, o pai perde a saúde mental, a vida de três mulheres muda radicalmente.
Mariano Franco retoma a conversa com Cláudia Lourenço, muito cedo se apercebe que a CIA também veio ajudar a atear o fogo, fazia jeito a subversão dos Açores contra Portugal, para dar dinamismo à FLA foi mesmo dissolvido o Movimento para a Autodeterminação do Povo Açoriano, percebeu-se que era na brutalidade e no bombismo que convinha intimidar. Mariano conta mesmo um episódio dessa brutalidade que o leva ao remorso. Tem o maior interesse a descrição que João de Melo faz deste interior da FLA, o que motiva os seus membros.
Tudo se normaliza então, Mariano é expulso como expulso fora o sindicalista Manuel Custódio. Nesta trama literária de diferentes retornos vamos encontrar pessoas à deriva como a própria jornalista e o entediado representante do jornal na ilha, um tal Gil, que não sabe bem quem ama, que corre de uma paixão para outra.
A jornalista regressa a Lisboa e ouve das boas do chefe da redação, falta nervo ao material da entrevista, havia para ali muita mentirinha doce e heroísmo bacoco, ela que trabalhasse mais, é nisto que Cláudia Lourenço tem inspiração de saber por onde anda o sindicalista Manuel Cristóvão, chegou a hora de grandes revelações, a tal menina ceguinha da Casa Grande de Munakala tem muito para contar, dirá coisas como: “Um dia, ouvia um militar – que lá esteve a defender os bens e a pátria dos colonos – que a experiência dessa guerra lhe entrara nos ossos como um veneno, e não mais saíra. Sei o que isso é. Uma enfermidade do espírito e da consciência, para sempre. Fomos os demónios da memória portuguesa. De lá, desse continente histórico, regressou connosco uma ferida para a qual não há remédio nem cura possível”. Os desabafos não se ficam por aqui: “Não encontro as palavras certas para falar da minha mágoa histórica. Gostava de ser filha de um país primitivo, anterior à loucura da sua expansão para o exterior. Tivessem os portugueses visto no mar o prolongamento simbólico do território, e já não teriam complexos quanto à pequenez do seu país. Foi o passado que determinou o meu destino. Por isso me queixo dele e dele me lamento”.
Manuel Cristóvão também tem muito para contar. “Descobrira algo de novo no seu trabalho: a dignidade da vítima. Ninguém como a vítima nos mostra a sua própria realidade de baixo para cima, do chão para a cabeça dos homens, e destes para o céu dos deuses ou para a terra fria dos vivos e dos mortos”. Lisboa, Açores, Guiné e Angola. Projectos derrubados, vidas recomeçadas neste esplêndido romance marcado por retornos e pelo amor aos lugares, dêem eles pelo nome de Campo de Ourique ou a ilha de S. Miguel."
Mário Beja Santos, in "Mais Ribatejo".

Ponta Delgada nos primórdios do sec. XX.

Colonialistas quem, nós?
por João de Melo
"Começou  por justificar historicamente as razões da luta pela independência das ilhas dos Açores . Portugal só fora um país a valer no conceito das nações enquanto manteve as suas possessões ultramarinas. O Brasil na América do Sul, as províncias na África e na Ásia, os arquipélagos europeus dos Açores e da Madeira a meio do Atlântico, uma universidade lusíada  a bem dizer à escala do globo terrestre. Segundo a FLA, o país mantinha os Açores e a Madeira  na condição de últimas colónias. Porque as outras , as ricas e cobiçadas terras de África, iam recebendo de presente a libertação nacional, as inacreditáveis guerras civis, os bárbaros genocídios tribais, os vandalismos guerreiros e a vingança dos pretos sobre os brancos - que já debandavam em massa para Portugal. Essas tais colónias  acabaram por cair nas garras de rapina das potências mundiais - em tratos e pilhagens  de blocos e nações que entre si dividiam as possessões portuguesas- com o capitalismo à frente e o comunismo logo atrás.
- Colonialistas, nós? Nem por isso, menina Cláudia. 
Ou, por outra, continuou Mariano, fomos nem mais nem menos colonialistas do que o têm sido nos Açores: seus ocupantes. O colonialismo é a doença crónica dos impérios - e nós gozávamos de saúde  no nosso falso imperialismo. Ao invés de outras potências coloniais, fomo-nos miscigenando com os indígenas à medida que os civilizávamos. Conhece outro povo que tivesse praticado isso à nossa maneira - ingleses, espanhóis, franceses, holandeses? Nem por sombras. Nós transmitimos valores humanos, padrões de atitude, modos e ensinamentos de uma civilização, uma língua, a religião católica, civilidade, costumes, protocolos. Prova disso, o facto de a civilização lusíada se ter disseminado por todos os continentes. Vemo-las nas igrejas de Macau, Goa, Damão e Diu, nas fortalezas militares da costa africana de Marrocos, em Malaca e em Mombaça e na melhor arquitectura do Brasil - quando os portugueses se tornaram senhores do comércio marítimo e introduziram na Europa os misteriosos produtos da Índia: pimenta, canela, açafrão, gengibre, noz-moscada. Povoámos terras desertas - outras ficaram sob o estado selvagem dos indígenas-, e nelas os portugueses ergueram cidades, vilas e aldeias, com as suas igrejas , as tendas e cabanas nos matos de África, e caminhos de ida e volta nos sertões. Além disso, ensinámos a negros e índios o nome  das coisas , os instrumentos e ofícios, o modo de trabalhar e a prática de tudo:(...) 
E a saberem as palavras com que o mundo designa as coisas: dinheiro é dinheiro, pólvora é pólvora, sapato é sapato, uma mesa e uma cama são uma mesa e uma cama, e pronto!
- Quer-me parecer que não concorda comigo. Pois não?
Pouco ou nada subsiste por essas Áfricas e Ásias da escola civilizadora dos brancos. A corja da tropa lembrou-se de pôr fim à nossa posse sobre as províncias ultramarinas. O regresso em massa dos brancos e a fantochada da independência dos novos países deu sabe em quê, menina?, numa enorme e terrível tragédia. Nossa e deles. Ficámos todos a ver navios, ao cabo de cinco séculos  de expansão marítima e de presença militar em tais paragens : o ouro, o diamante, o petróleo e as minas de sal-gema foram dadas a mãos estrangeiras. A tragédia dos africanos? Terem de aprender tudo de novo, a começar pelo engano ilusório de se dizerem independentes, enquanto jibóias, leões e aves carnívoras  rondam as suas riquezas.(...) Mais do que um erro histórico e uma estupidez política, a nossa descolonização deu origem a uma cadeia de amanhos e desgraças. Encheu-nos a todos da nossa vergonha nacional.
- O país  anterior deixou de existir. O de agora, veremos se sobreviverá enquanto estado e nação desta Europa.
Não podíamos ficar de braços cruzados nem deixar que tudo nos acontecesse por livre-arbítrio dos comunistas, e se consumassem as traições da pátria. A ordem dos três «dês»», «democratizar, descolonizar , desenvolver », ficou por cumprir em todas e em cada uma das paragens portuguesas de aquém e além-mar, e não só nas partes de África e da Ásia, sob a nossa bandeira. Falta-nos uma solução para os Açores e para a Madeira.
Então estes arquipélagos não são colónias, como os outros o eram, ou seja, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe? Quatro arquipélagos achados desertos, e depois povoados. (...) O certo é que  deram origem a novos povos, o açoriano e o madeirense, com matriz histórica, cidadania e uma cultura própria. Nem são uma raça nem uma tribo, são uma etnia  da memória e do pensamento a que chamamos identidade insular. Daí o nosso direito à soberania: sermos tão índios  e tão pretos quanto os da Índia , do Brasil  e de África. (...)
Portugal não mais quis saber de nós, desta pobreza, da perdição solitária das ilhas. (...) Fomo-nos na diáspora sem regresso, idos da terra da fome e das belezas naturais para a terra prometida da saúde e da abundância, na outra margem do mar. Saímos da agricultura, do leite das vacas, da pesca e dos baixos ofícios, e fomos para a neve, o gelo, os tufões americanos. Quisemos o que os portugueses não nos deram: liberdade económica, progresso, trabalho digno nas fábricas  e nas terras, o direito a casa própria, família e futuro. Sabem lá, os senhores de Lisboa, o que custa ser estrangeiro num país de estrangeiros. Começava tudo por uma carta de chamada que nunca mais vinha e que nos fazia penar na ansiedade da espera. Chegávamos ao destino, era outra língua, gente a falar connosco e nós nada, uma tristeza alegre, uma alegria triste: havia trabalho, ganhava-se bom dinheiro, e mais nada.(...) Assim nos forjámos como povo. Em terra alheia, na nostalgia das coisas recordadas por entre lágrimas que gelavam nos invernos de Boston e de Toronto. As luas americanas traziam-nos à lembrança a rua da ilha onde nascêramos, a casa que nos vira crescer e ir embora de vez, na solidão das saudades. O arquipélago continuou a ser para nós o centro de uma ideia, uma pátria que nos merecia na hora do regresso à nossa terra: sem a sombra dos continentais por cima de nós, nem as leis , os tributos , as ordens colonialistas de Lisboa."
João de Melo, in Livro de Vozes e sombras, Publicações Dom Quixote, Junho de 2020, pp.43- 47

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