A Arte de Ser Feliz
por Cecília Meireles
"Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e sentia-me completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém a minha alma ficava completamente feliz.
Houve um tempo em que minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, a às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.
Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim."
Cecília Meireles, in Escolha o Seu Sonho – Crónicas, 2016, Global Editora, 4ª ed., Rio de Janeiro 2016
Sobre a autora e o Livro:
Cecília Meireles é "considerada uma das maiores poetas da moderna poesia em língua portuguesa, . E essa mesma singularidade está presente nas quarenta e cinco crónicas de Escolha o seu sonho, nas quais de forma única em nossa literatura, a poeta aborda, em textos curtos, elementos e acontecimentos que partem de um quotidiano rotineiro e criam asas, vidas, cores... Da vida real, saltam para o universo mágico e para o terreno dos sonhos. Ao se referir à prosa de Cecília Meireles, com ênfase em sua atividade de cronista, o professor e crítico literário Leodegário A. de Azevedo Filho destacou o estilo “inconfundível, sobretudo pela leveza da linguagem e pelo sentimento do mundo, tudo envolto no tempo humano, que nada tem a ver com folhinhas ou calendários”. E ainda afirmou que, com tais elementos, a autora se afasta “do espírito de reportagem, conferindo alto valor literário às suas crónicas, sempre perplexa diante do espetáculo da vida, dos seres e das coisas, mas também às vezes revoltada, contra o desconcerto do mundo e as injustiças sociais”. Com muita imaginação e a sabedoria própria dos clássicos, em Escolha o seu sonho, Cecília Meireles confronta e mapeia os nossos anseios e limites: “Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.”
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