sexta-feira, 2 de julho de 2021

Uma entrevista a Eugénio Lisboa (2ª parte)

Eugénio Lisboa

Apresentamos, hoje, a segunda e última parte de uma longa entrevista a Eugénio Lisboa  , concedida, há algum tempo, ao quinzenário As Artes Entre As Letras.

AeL – Acha que as políticas editoriais têm um papel saudável na promoção cultural? E a comunicação social?
E.L. – Não sei bem a que se refere com “políticas editoriais”. Das editoras particulares? Quanto a isto, devia haver uma lei anti-trust, que impedisse que um grande grupo financeiro, que nada se interessa por livros, devorasse quase todo o mercado produtor e distribuidor de livros. O que se passa é quase obsceno. E mete medo. Entrar em quase 90% das livrarias causa náuseas: é o reino do mono-estilo, com a promoção sistemática e despudorada do que há de pior: o pimba, o piroso, o sensacionalão, o grande “best-seller” de lá de fora e de cá de dentro. O chover no molhado: promover, a grandes custos, o que por natureza da sua própria mediocridade já está promovido. Os grandes heróis dos editores e dos livreiros são os senhores-da-televisão-que-também-escrevem-livros e que despertam a concupiscência dos jovens e não tão jovens que sofrem de iliteracia aguda e por isso gostam de comprar os livros daqueles senhores e senhoras que aparecem muito no “petit écran”. A promoção via “petit écran” é, quanto a mim, um abuso de confiança.
A comunicação social – televisão, jornais vários – faz como Deus é servido, quando Deus fica mal servido (roubo esta perfídia ao Pessoa – é para isso que servem os clássicos).
AeL – Por detrás do Conselheiro Cultural, do pensador, do crítico, do estudioso, do pedagogo, espreita o poeta. Diga-nos alguma coisa dele, do premiado autor de Matéria Intensa.
E.L. – O poeta – em sentido formal – tem, em mim, aparecido pouco e quase clandestinamente. Eu sei que ser-se discreto, em Portugal, sai caro: quando falamos em voz baixa, o silêncio dos outros, a nosso respeito, é garantido. É fácil fazer desaparecer quem, já de si, aparece pouco. Mas julgo saber da poesia, por dentro, um pouco mais do que tantos que a escrevem sem nunca terem pensado a sério no que ela seja nem como funciona o mecanismo da criação poética. A ignorância versificatória de tantos dos nossos vates é simplesmente fabulosa. No nosso país pensa-se que ser moderno é escrever verso livre. O resultado é, em geral, fazer-se uma coisa que nem é verso nem é livre: o arbitrário justapor de palavras não é, necessariamente, uma metáfora... Há por aí poema e poeta muito louvado, que não resiste a um escrutínio severo: a excessiva liberdade corre o risco de desaguar no arbitrário e no contra-senso. Fazer poesia sem constrangimentos e sem rede dá, quase sempre, palavreado sem sentido.
Tem-me servido a poesia – como me tem também servido a prosa, que pode ser igualmente poética – para sondar os meus assombros e os meus fantasmas: que são muitos e nunca inteiramente resolvidos.
AeL – Por fim, com aquela frontalidade alheada de previsíveis incómodos que é sua marca distintiva, responda-nos: apesar dos condicionalismos de toda a natureza deste país a um passo do abismo, vai continuar a “Cantar a gente surda e endurecida”?
E.L. – É como se diz no mito de Sísifo: apesar de o penedo que levámos até ao cimo da colina voltar a cair, voltando ao ponto de partida, há que recomeçar. Até por uma questão de “panache”. Goethe dizia que o erro está constantemente a repetir-se, sendo por isso necessário estar constantemente a combatê-lo. Não há solução para a nossa mortalidade mas, como dizem os franceses, il faut faire semblant. Podemos ser felizes apesar de mortais, assim como podemos sê-lo apesar de cantarmos para gente surda. A tragédia, não o esqueçamos, foi inventada por um povo feliz – disse-o Nietzsche. Cantar a gente surda e endurecida é, em geral, em pura perda. O importante, porém, é perseverar – há nisso uma elegância que pode inspirar os outros. A vida é absurda mas podemos fazer de conta que não é. Não sou melancólico: sou colérico. A maior partida que podemos pregar aos governantes é fingirmos que acreditamos neles e continuarmos a moer-lhes a molécula. A uma beata que se queixava a um padre muito conhecido de que se fartara, em vão, de rezar a Nossa Senhora, por uma benesse qualquer, o padre respondeu: ”Insista, criatura, insista, chateie Nossa Senhora!”
AeL – Através da sua obra divulga escritores e artistas plásticos de outras nacionalidades, para além dos portugueses. E dá ênfase aos PALOPs. Considera que há um esquecimento propositado pelas obras destes povos da parte dos portugueses?
E.L. – Não diria que há um esquecimento propositado. É simples alheamento e indiferença, logo: desconhecimento. Aliás, foi sempre assim e, no passado, ainda foi pior. Escritores como Rui Knopfli, Glória de Sant’Anna, Ascêncio de Freitas ou João Pedro Grabato Dias nunca aqui tiveram, no passado e no presente, verdadeira implantação. Os escritores dos PALOPs não são desta paróquia e isso torna-os desinteressantes e pouco apelativos. Se o Porto fica longe de Lisboa, Luanda ou o Maputo ainda ficam mais. Não se fala com eles, quotidianamente, não se lhes contam as “nossas” anedotas, não se conspira ou intriga com eles, “não são dos nossos”, embora escrevam em português (aliás, um português que não é bem o nosso e se suspeita que seja um pouco inferior...). Um escritor português que se ausente para França, Inglaterra ou Alemanha, fica, por assim dizer, “morto”. Longe da vista, longe do coração (e da atenção). Não é da nossa paróquia, não ri das mesmas piadas nem chora com as mesmas lamechices. Os PALOPs, apesar da retórica oficial, não são “dos nossos”. Nem sequer são bem estrangeiros, porque estes, deslumbram facilmente o nosso provincianismo de pacóvios. Disto tudo, salva-se sempre o inevitável Mia Couto, que é muito traduzido “lá fora” e vem cá muitas vezes. A esse, nem o talento lhe faz mal.
AeL – A Lusofonia é bem tratada entre nós?
E.L. – Julgo ter-lhe já respondido. Enfim, a Lusofonia existe pouco, fora de uma anémica retórica oficial e de alguns congressos, sempre um pouco distraídos. Aliás esses congressos são sempre uma espécie de “ghettos” em que “eles” falam para “eles”. Depois, há o patusco Acordo Ortográfico, inventado, curiosamente, para unificar a língua... O Acordo é uma idiotice: nem com a língua tem que ver, tem só que ver com uma mera convenção de escrita e, mesmo aqui, fazem-se barbaridades que traem e fazem esquecer a origem dos vocábulos. O que é importante, na língua – o glossário, a gramática e a música da língua – divergem e vão continuar a divergir, alegre e saudavelmente, o que faz, de resto, a grandeza do Português. O Acordo Ortográfico só tem, que eu veja, uma virtude – permite, aos seus fautores, durante um período alargado, viajarem abundantemente, para “trocarem impressões” e negociarem cedências, criando assim um “acordo” que, ao fim de algum tempo, julgado decente, precisará de novos “ajustes”, isto é, de mais viagens.Assim um “acordo” que, ao fim de algum tempo, julgado decente, precisará de novos “ajustes”, isto é, de mais viagens. Tudo está o melhor possível no melhor dos mundos possíveis."

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