" Deus escondido. Natureza corrupta. Deus abandona-nos à cegueira - até à chegada de Cristo. Todo o pensamento de Pascal , todo o seu cepticismo, a sua ironia, a sua negação, se dirigem claramente a uma afirmação de Cristo. O duplo caminho do homem, a sua dupla paixão - passagem e sofrimento - pela terra é aquilo que , aos olhos de Pascal, nos assimila a todos à própria passagem de Cristo pela terra, à sua paixão. Não posso evitar a certeza de que toda a andaimaria levantada por Pascal para a nossa profissão de equilibristas é como uma ponte lançada entre o Dieu caché que não só abandonou Jesus , como a humanidade e o próprio Jesus...
" Se não me tivesses encontrado, não me procurarias", diz Cristo nos maços descosidos, que tanto cito, de Pascal. Quer dizer: Pascal não pode nem quer evadir a questão da fé, a questão do ser humano que crê. Não pela sua filiação nesta ou naquela religião, mas sim porque procura o mais precioso que já traz em si ( o coração que sabe as razões que a razão ignora) e o procura consciente de que provém de um limite , nascer, e se encaminha para outro limite, morrer. Não é a provável filiação religiosa que determina o valor da vida em Pascal, mas sim a fé na sua acepção mais vasta, a certeza de que podemos ser portadores de valores que queremos radicar no mundo precisamente porque nos interrogamos: o que há mais além?
As ideias recebidas, as inércias da prática, eis o que Pascal rejeita e por isso, como tantos outros, exalta a figura de Cristo como homem activo, inconformado, exigente com o seu tempo, o modelo que já encontrámos sem o saber, mas que devemos perseguir para termos consciência do que cada um de nós pode ser, pode esgotar ou a que deve renunciar.
«Acredito porque é absurdo » , disse Tertuliano, insuperavelmente , da fé. Não explica a razão, mas sim esse «coração» que tem razões que a razão ignora. Wittgenstein, judeu irresistivelmente atraído para o catolicismo, admite que o pensador religioso é um «equilibrista». E ele próprio o é. Se por um lado nos diz que a fé é absurda e não é o que distingue o cristianismo, mas sim a prática , quer dizer , viver como Jesus viveu, por outro lado declara que a fé é fé naquilo de que o coração e a alma necessitam, e não o que « a minha inteligência especulativa» exige. Porque « é a minha alma com as suas paixões ... que exige ser salva , e não o meu pensamento abstracto». Daí que seja menos certa ou aparente a contradição fé-prática no pensamento de Wittgenstein, uma vez que essa «alma» e essas «paixões» que são as suas submetem a fé ao desafio prático de viver como Jesus. «... Só a prática cristã, uma vida como a do que morreu na cruz, é cristã... e ainda hoje é possível» - acrescenta Wittgenstein - « para certos homens, necessária até : o cristianismo genuíno , primitivo, será possível em todos os momentos». O cristianismo surge a Wittgenstein, afinal, como uma fé que é um fazer ou não apenas « um acreditar, mas sim um fazer». O cristianismo não se pode reduzir a sustentar que isto ou aquilo é verdade. O cristianismo é prática, não dogma.
A inteligência imensa de Ludwig Wittgenstein leva-o a entender que não há razão pela qual a fé religiosa não possa fazer parte da herança cultural «que me permite distinguir entre o verdadeiro e o falso». Só um homem desta integridade filosófica e moral pode dizer ao morrer: « Deus disse-me: Julgo-te pelo que saiu da tua boca. As tuas próprias acções fizeram-te tremer de desgosto quando viste outros repeti-las.» Porque «É a minha alma e as suas paixões , e não a minha inteligência abstracta, que precisa de se salvar ».
Não sei se há declaração filosófica mais valiosa e definitiva do que esta. "
Carlos Fuentes, in "Aquilo em que acredito" , Publicações Dom Quixote, pp.281, 282, 283
Sem comentários:
Enviar um comentário