Eugénio Lisboa na Universidade de Aveiro
CONSIDERAÇÕES
por Eugénio Lisboa
Nunca falar de si
próprio é uma
forma muito refinada de hipocrisia
forma muito refinada de hipocrisia
Nietzsche
"(...) Fiz,
ao redigir estas memórias, bom uso da memória e melhor uso, ainda, de um diário
que, em Londres, me pusera a reescrever. A memória ajuda, mas tem um
inconveniente: por muito selectiva que seja e tenda sobretudo a recordar o que,
de importante, profundamente nos marcou, pode meter, por vezes, no mesmo saco,
jóias e pedras sem valor: guarda essa pedraria secundária, não se sabe bem
porquê. Talvez porque, em certo momento, em certa circunstância particular, esse
marco secundário e aparentemente insignificante – no tempo de hoje – nos
perturbou de modo significativo. Dizia Lord Halifax que “as memórias de certos
homens são como uma caixa onde se misturam jóias com sapatos velhos.” E é bem
verdade. Mas só quem os guarda poderá – se puder! – ter, às vezes, a
possibilidade de descortinar a razão que o levou a guardar, com tanto cuidado
os “sapatos velhos”, que desfeiam o conteúdo da caixa. Talvez eles tenham (ou
tivessem tido, na altura) um significado profundo qualquer, talvez guardem (ou
quisessem, então, guardar) a memória de um momento mágico da vida de quem assim
os preserva, mas que o tempo foi apagando, ficando apenas o sapato, pobremente
desligado da magia que fora sua missão perpetuar… Um par de sapatos velhos pode
ombrear, em importância, na memória de quem os arrecada, com uma jóia preciosa
ou com um livro inesquecível: tudo remete para outros seres, para
emoções que foram fortemente vividas e se quereria eternas, na memória própria
e dos outros.
O território
da memória é um reino complexo e nem sempre de fácil decifração. De qualquer
modo, correndo o risco de ter seleccionado mal – ou não tão bem como seria
desejável – deixei-vos, até aqui, um acervo de minudências que achei bem
preservar e, agora, divulgar. Mas é evidente que não poderei continuar a este
ritmo vagaroso e com este luxo de minúcias – apesar de ter seleccionado, isto
é, suprimido, com austeridade espartana. Vou ter que suprimir muita coisa que
considero interessante e que os meus diários registam. Ficará tudo isso, para
uma publicação integral póstuma, embora não esteja fora de cogitação, a edição,
ainda em vida minha, de uma secção ou outra desse acervo diarístico*. Será, por
assim dizer, o complemento destas minhas memórias, ou seja, um natural anexo a
elas.
Neste 5º
volume, transcreverei, de aqui até ao final, passagens que considero
importantes, relativas ao desaparecimento de pessoas (mãe, sogro, irmão,
animais domésticos), viagens que fiz (mas não todas) e uma ou outra “entrada”
que me apeteça sublinhar. Tudo foram componentes desta recta final da minha
vida, que se aproxima do fim: não que o sinta,
mas porque é a ordem natural das coisas e a cabeça assim o aceita.
Nestes cinco
volumes (de que me falta concluir este e, depois, escrever o 2º), tenho falado
bastante dos outros e, também, alguma coisa, de mim. Embora um livro de
memórias não seja bem uma autobiografia, não é menos verdade que contém um bom
teor de valências que compõem o género autobiográfico. As memórias falam,
sobretudo, dos “outros”, mas são outros que gravitam à volta de um “eu”. Não há
que ter vergonha de assim se falar de si próprio. Uma certa complacência com a
narrativa do próprio eu até nem será pecado de maior. Thomas Mann, num seu
livro célebre – Goethe e Tolstoi – pergunta,
sem pudor: “Poder-se-á distinguir o amor de si próprio do amor do próximo?” E
julga poder e dever responder a esta pergunta, nestes termos: “O amor que temos
por nós próprios e o amor que temos pelos outros confundem-se psicologicamente;
eis por que a velha questão de se saber se o amor não passa de um sentimento
egoísta em vez de ser um sentimento altruísta pôs o mais ocioso dos problemas.
A oposição do egoísmo e do altruísmo é completamente suprimida no amor.” Neste
mesmo livro, Mann acrescenta isto, como um suplemento de afronta aos
“recatados”, que têm medo de parecerem narcisos: “Goethe vituperou, durante
toda a sua vida, a afectação de recato com que se pretende interditar a
complacência com o próprio eu. Dava ele a entender que tal sentimento só era
bom para as pessoas a quem não assistia a mínima razão para se estimarem a si
próprias. Tomou mesmo a defesa descarada da pequena vaidade corrente,
declarando que a sua desaparição faria perecer a sociedade e que um snob tem ao
menos a vantagem de nunca chegar a ser demasiado grosseiro.”
Com tão
ilustres advogados de defesa a “protegerem” a minha desfaçatez de autobiógrafo
(em cinco volumes), permito-me, pois, continuar e tentar levar até ao fim este
meu empreendimento de guardador de memórias.
Não cultivei nunca o estilo do português deprimido e
lamecha e dei, naturalmente, à minha escrita, aquela energia e brio de que fui
capaz e que suponho estarem na minha natureza profunda. Tenho uma visão
pessimista do mundo em que vivemos e sei que a aventura do homem sobre a terra
é coisa efémera. Tudo vai desaparecer e, disto tudo, nem a memória ficará. Sou
um pessimista mas não sou nem triste nem amargurado. A vida é o que é e o
universo também. Na pequenina parcela de universo que habito, olho, friamente e
sem ilusões, o quotidiano grotesco que não anuncia nada de bom: posso dizer,
com alguma pompa e circunstância, que vivo crucificado, mas não entristecido.
De um livro de Montherlant, recolho isto: “être patriote, et être Français, en
1932, c’est vivre crucifié. La France est en pleine décomposition.” Eu digo: “ser
patriota e ser português, em 2015, é viver crucificado. Portugal está em plena
decomposição.” Repito: crucificado, sim, mas não deprimido. Não dou para esse
peditório. Sem ilusões, mas também sem tristeza e sem lágrimas. Portugal, em 2015, está em decomposição avançada ( e a Europa não está melhor)."
Eugénio Lisboa, in "Acta Est Fabula, Memórias-V- Regresso a Portugal, (1995-2015), Editora Opera Omnia, Outubro de 2015, pp.229-232
*Eugénio Lisboa já publicou dois volumes do seu Diário , sob o título " Aperto Libro". No prelo, estão três volumes que completarão este magnífico registo diarístico.
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