SAGRES
Agosto -
1922
“Pela
portinhola do comboio vou seguindo a paisagem de figueiras e de vinhas que
desfila. De um lado o céu doirado e violeta, do outro todo roxo. Os nomes das
estações têm um sabor a fruto maduro e exótico – Almancil-Nexe, Diogal, Marchil...
De quando em quando fixo um pormenor: uma mulher passa na estrada branca, entre
oliveiras pulverulentas e fantasmas esbranquiçados de árvores, sentada no
burrico, de guarda-sol aberto, e dando de mamar ao filho. Terras de barro
vermelho. Grupos de figueiras anainhas estendem os braços pelo chão até ao mar,
deixando cair na água os ramos vergados de fruto, que só amadurece com as
branduras. Uma ou outra casinha reluzindo de caiada: ao lado, e sempre, a nora
de alcatruzes e um burrinho a movê-la entre as leves amendoeiras em fila, as
oliveiras dum verde mais escuro e a alfarrobeira carregada de vagens negras
pendentes. A mesa de Deus está posta. Estradas orladas de cactos imóveis como
bronze, e a deslumbrante Fuzeta, com o seu zimbório entre árvores esguias. Ao
longe, e sempre, acompanha-me o mar, que mistura o seu hálito a esta luz
vivíssima. Atravesso Portimão de olhos postos no castelo de Arade, onde o velho
poeta sonha com O Fausto, e talvez como ele em recomeçar a vida. A luz é cada
vez mais viva. Um homem com dois cabazes apregoa na rua: é um tipo seco e
tisnado de mouro, de camisola azul e perna nua. Passa uma carrinha guizalhando,
e logo atrás outro burro com bilhas de água fresca. É extraordinário o que este
pobre jerico inocente e peludo, de olhos límpidos, trabalha no Algarve. É ele
que leva a fruta ao mercado e tira a água das noras. Lavra as terras
calcinadas, transporta pelas estradas soalheirentas, adornado com cordões
vermelhos, quase uma família a dorso. Vai às Caídas buscar as grandes bilhas vermelhas
que transpiram, mata a sede da gente e a sede da terra – e não sei se embala os
berços... Produz muito e contenta-se com pouco. Detenho-me um instante na
cenográfica praia da Rocha, extasiado nos dois grandes penedos destacados e num
fio de areia doirada ao pé da água azul – tudo pintado por Manini agora mesmo.
A um lado a ponta do Altar entra decidida pelas águas; do outro, o esfumado
Lagos mal se entrevê ao longe... Duas impressões se fixam no meu espírito para
sempre: a noite extraordinária, a luz maravilhosa. A luz sustenta. Basta esta
luz para se ser feliz. É ela que encanta o Algarve. É ela que produz os figos
orjais, os coitos, os bracejotes, todos eles amarelos, a estalar de sumo, e
destilando um líquido perfumado, e o figo preto de enxaire que se mete na boca
e sabe a mel e a luz perfeita. É ela a criadora destas agonias doiradas que vão
esmorecendo e passando por todos os tons até morrer a muito custo. E as noites
mágicas e caladas, as noites sem lua, muito mais claras que as noites do norte,
em que se distingue a brancura voluptuosa das casas e se vêem as estrelas
enormes reluzindo através das amendoeiras.
Lagos, o
deslumbramento da baia, e sigo logo de carrinha pela estrada branca, entre
amendoeiras e figueiras derreadas. Andam mulheres com grandes chapeletas na
cabeça, a apanhar a amêndoa varejada. Às figueiras chega-se com a mão. Há
algumas que deitam braços, mergulham-nos na terra, criam novas raízes e tornam
a puxar outra figueira. Há-as aninhadas, com um metro de altura e uma roda enorme.
Há-as muito velhas, retorcidas, com os ramos em novelo. Mas cruzo a estrada da
Luz, e logo, de Almádena para
diante, a terra muda de aspecto. Estranho o Algarve. Deixa de ser risonho e
torna-se rasteiro e pedregoso. Inquieta-me...
É a via sacra que começa. O monte desolado enegrece. Até as casas são
escuras. A terra dá calhaus roídos, e de Budens para lá, a desolação redobra.
Nem uma figueira, nem uma amendoeira. Pedras cor de lousa, resteva e rosmano. E
a esta uniformidade sucedem na estrada deserta as ondulações de Vila do Bispo
com alguns moinhos abandonados. Cinza, vegetação pegajosa, cujas folhas
rebrilham como vidrilhos – a folha do rosmano, que desta secura extrai a
humidade das lágrimas. Mais alguns passos e, ao cair fúnebre da tarde, isto
atinge a opressão. Não pelo que é. É nada. É o vago acinzentado. Nem tojo, nem
pedras. Uma terra indefinida e plana como um pensamento doloroso que se obstina
e não consegue fixar-se. Bandos de gralhas levantam voo no deserto...
O promontório
é um punho nodoso, com dois dedos estendidos para o mar – a ponta de S. Vicente
e a ponta de Sagres. Nos dias sem sol, como o de hoje, os dedos parecem de
ferro: apontam e subjugam-no. Em frente o mar ilimitado; em baixo o abismo, a
cem metros de altura. Ventanias ásperas descarnam o morro cortado a pique, e no
Inverno as vagas varrem-no de lado a lado. Sagres é o cabo do mundo. Levo os
pés magoados de caminhar sobre pedregulhos azulados, num carreirinho, por entre
lava atormentada. Do passado restam cacos, o presente é uma coisa fora da
realidade, grande extensão deserta, pardacenta e encapelada, com pedraria a
aflorar entre tufos lutuosos; vasto ossário abandonado onde as pedras são
caveiras, as ervas cardos negros e os tojos só espinhos e algumas folhas de zinco.
O mar – é verdade, esquecia-o – mas o mar como imensidade e tragédia, e ao lado
a gigantesca ponta de S. Vicente, só negrume e sombra. Mar e céu, céu e mar,
terra reduzida a torresmos, e o sentimento do ilimitado. Grande sítio para ser
devorado por uma ideia! Isto devia chamar-se Sagres ou a ideia fixa... Só agora
entrevejo o vulto do Infante. Cerca-o e aperta-o a solidão de ferro. Pedra e
mar – torna-se de pedra. Está só no mundo e contrariado por todos. Obstina-se
durante doze anos! Contra o clamor geral. – Perdição! Perdição! – agoura toda a
gente, e Ele não ouve os gritos da plebe ou a murmuração das pessoas «de mais
qualidade» (Barros). Aqui não se ouve nada... Nem um sinal de assentimento
encontra. Não importa. Só e o sonho, na gigantesca penedia que com dois dedos
inexoráveis aponta o caminho marítimo para as índias pela direcção da ponta de
Sagres, e a descoberta do Brasil pela direcção da ponta de S. Vicente.
Lágrimas, orfandades, mortes... Mas o homem de pedra está diante deste infinito
amargo e só vê o sonho que o devora. Rodeia-o a imensidão. Os mais príncipes
contentam-se «com a terra que ora temos, a qual Deus deu por termo e habitação
dos homens». Este Príncipe não. Este Príncipe pertence a outra raça e a outra
categoria de homens. Não lhe basta um grande sonho – há-de por força realizá-lo
e «levar os Portugueses a povoar terras ermas por tantos perigos de mar, de
fome e de sede». Não é egoísmo, mas só vive para O pensamento que se apoderou
de todo o seu ser. Um pensamento e o ermo. E este é óptimo para forjar uma alma
à luz do céu ou do inferno. Os dias neste sítio magnético pesam como chumbo.
Uma pobre mulher do povo dizia-me ontem: – Isto aqui é tão nu e tão só que a
gente ou se agarra a um trabalho e não o larga, ou morre. É a realidade que nos
mata. Este panorama é na verdade trágico. Não cessa dia e noite o lamento
eterno da ventania e das águas. E os cabos, que são de ferro e escorrem sangue,
obstinam-se em apontar o seu destino de dor a esta terra de pescadores.”
Raul Brandão, in “Pescadores”,
Verbo
Sobre o autor
Raul
Brandão
Por Vítor Viçoso
"Nascido na
Foz do Douro (Porto), em 1867, Raul Germano Brandão, filho e neto de pescadores,
morreria em Lisboa , no dia 5 de Dezembro de 1930 com 63 anos de idade. A partir de 1912, já reformado no posto de capitão
do exército, onde ingressara em 1888, alternaria entre a sua “Casa do Alto”, na
Nespereira (Guimarães), e Lisboa, onde passava parte do inverno.Elemento activo da “geração de 90” (século XIX), influenciada pela estética decadentista-simbolista de matriz parisiense, Raul Brandão, superado o período do “nefelibatismo” – seria um dos elementos do cenáculo portuense responsável pela elaboração do opúsculo “Os Nefelibatas” (1892), simultaneamente manifesto em prol da arte moderna e pastiche decadentista –, do esteticismo e do ludismo decadente e libertário que comungara com os seus companheiros geracionais (António Nobre, Alberto de Oliveira, Júlio Brandão, Justino de Montalvão, D. João de Castro, entre outros), foi desenvolvendo, num clima visionário, uma perspectiva crítica relativamente aos valores materialistas burgueses dominantes na sociedade do seu tempo.(...)
A dor do outro social interioriza-se e traduz-se em visões alucinadas e,
por outro lado, as feridas íntimas (o remorso, a má consciência burguesa)
transcendem o espaço da subjectividade individual e projectam-se nas figuras
ambulantes e esboçadas (os “grotescos”) que simbolizam o dolorismo agónico e
nocturno que o obceca. É esta bipolaridade interactiva que orienta a estrutura
enunciativa da sua ficção, fundada simultaneamente num redundante compromisso
ético e numa consciência extremada das contradições inerentes à condição
humana, dividida entre o infinito e o vómito.
(...)
Para lá da vertente nocturna da sua obra, as suas narrativas de viagens, Os Pescadores (1923) e As
Ilhas Desconhecidas (1926), abrem-nos sobretudo à embriaguez da luz e do
policromatismo da paisagem (o apolíneo), escrevendo ao jeito impressionista de
quem pinta, do mesmo modo que nos “Prefácios” das Memórias se abre a um
intimismo autográfico que é simultaneamente uma reinvenção dos espaços e seres
da infância e a exaltação da ternura num tempo crepuscular, o dos estertores da
monarquia constitucional e o das desiludidas esperanças do período republicano."
Bibliografia activa
1890 – Impressões e Paisagens
1896 – História d’um Palhaço (A Vida e o Diário de K. Maurício)
1901 – O Padre
1903 – A Farsa
1906 – Os Pobres
1912 – El-Rei Junot
1914 – A Conspiração de 1817
1915 – O Cerco do Porto – Pelo Coronel Owen (Prefácio e Notas)
1917 – Húmus
1919 – Memórias – vol. I
1923 – Teatro – “O Gebo e a
Sombra”, “O Rei Imaginário” e “O Doido e a Morte”
– Os Pescadores
1925 – Memórias – vol. II
1926 – As Ilhas Desconhecidas
– A Morte do Palhaço e O Mistério da Árvore (2ª edição refundida de
História d’um Palhaço)
1927 – Eu sou um Homem de Bem (monólogo teatral)
– Jesus Cristo em Lisboa (tragicomédia em colaboração com Teixeira de
Pascoaes)
1929 – O Avejão – Episódio Dramático
1930 – Portugal Pequenino (em colaboração com Maria Angelina)
1931 – O Pobre de Pedir (edição póstuma)
1933 – Memórias – vol. III (edição póstuma)
1981 – A Noite de Natal (em colaboração com Júlio Brandão) – Leitura,
introdução e notas por José Carlos Seabra Pereira
1984 – Os Operários – Fixação do texto, introdução e notas por Túlio
Ramires Ferro
2000 – Húmus (1917; 1921; 1926) – Edição crítica de Maria João Reynaud
Obras traduzidas (apuradas)
La Farsa – Trad. castelhana de Valentin de Pedro, s/d.
Los Pobres – Trad. castelhana de Valentin de Pedro, Madrid, Ed.
Rivadeneyra, 1921.
Humus – Trad. castelhana de Ribero i Rovira, Barcelona, Ed. Cervantes,
s/d.
Humus – Trad. francesa e prefácio de Françoise Laye, Paris, F. Calouste
Gulbenkian/Centre Culturel Portugais, PUF, 1981.
Humus – Trad. francesa e prefácio de Françoise Laye, Paris, Flammarion,
1992.
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