"Duas fontes se podem marcar às preocupações de um
grande espírito: por um lado, o que aflige ou alegra o comum dos homens, por
outro lado, a força de contemplação divina que o lança no giro dos maiores problemas. Os pés tocam ainda
a terra que constitui para os outros a
única base de ser, a fonte já mergulha
na luz alta e plena de que desejariam banhar e nutrir toda a sua vida da alma.
Facilmente, por orgulho e descuido ou porque
em segredo nos não queremos colocar num plano inferior, tomamos como
característica da profundidade que atingiu um pensamento o ter sentido, só com
maior ressonância , maior vivacidade, as inquietações de que nós mesmos nos
sabemos possuídos. Não era matéria mais nobre do que o barro das bilhas o barro
da estátua vista em sonhos; a imensidade não conseguiu transmuda-la no oiro e
na prata que tornavam o colosso precioso. Nem o que se mede pela nossa medida é
notável aos olhos do eterno.
Conviria , pois, averiguar-se por qual dos caminhos chegou ao círculo do génio o
problema da morte e se é fundada a opinião
dos que vêem na maior ou menor
intensidade que ele toma no espírito a
escala porque se deve aferir o valor de um pensamento. É possível que
estejamos reduzindo em lugar de elevar e
que ainda aqui lancemos mão dos artifícios
sem real valor para fortificar e alargar
a ponte que nos liga a um outro mundo distante. A angústia ante a morte
, o desepero à ideia de sulcar um
mar desconhecido e porventura tenebroso não me parecem compatíveis com a linha
opolínea sem a qual não existe o
verdadeiro génio; são ainda uma herança
das forças obscuras e revolta s de que
saiu o homem, uma acção de gravidade, não da asa celeste que o aproxima dos
deuses. Grande é aquele que revolveu o problema, o tomou serenamente como um
dos momentos do pensar e logo, com uma alma imortal, partiu a abraçar mais
ricos e mais amplos conjuntos.
É talvez sinal de prisão ao mundo dos fenómenos o
terror e a dor ante a chegada da morte ou a serena mas entristecida resignação
com que a fizeram os gregos uma doce irmã do sono; para o espírito liberto ela
deve ser, como o som e a cor, falsa, exterior e passageira; não morre, para si
próprio nem para nós, o que viveu para a ideia e pela ideia, não é mais
existente, para o que se soube desprender da ilusão, o que lhe fere os ouvidos
e os olhos do que o puro entender que apenas se lhe apresenta em pensamento; e
tanto mais alto subiremos quando menos considerarmos a morte como um enigma ou
um fantasma, quanto mais a olharmos como uma forma entre as formas.”
Agostinho
da Silva, in “ Diário de Alcestes”,(p.49-50),Ulmeiro,Lisboa, Abril de 1990
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