Por Eugénio Lisboa
"Há poucas semanas, visitei Cuba pela primeira vez. Estava-me no imaginário, há bem cinquenta anos, desde quando, em 1959, Fidel Castro descera da Sierra Maestra, acompanhado do Che e dos restantes companheiros de luta, para expulsarem da Ilha o corrupto ditador Fulgencio Batista e os seus sórdidos acólitos. A minha geração, a que era de esquerda, festejou abertamente o triunfo de Fidel: na livraria Spanos, na baixa de Lourenço Marques, baratinando os analfabetos da PIDE, comprávamos, com alegria e brio, “paperbacks” de C. Wright Mills e de Sartre (em inglês) dedicados à revolução e aos “homens que não dormiam”. Disso, fica-nos sempre alguma coisa e não foi sem uma boa dose de melancolia que fui assistindo, ao longo dos anos, ao apodrecimento gradativo de todos os ideais e à perpetuação do poder por amor do poder. O Fidel de hoje não pode, contudo, apagar completamente o Fidel de há cinquenta anos. Houve uma aurora que nos alumiou e a ela – e para sempre – ficámos gratos. Quando agora fui a Cuba, por razões pessoais e familiares, levava comigo, a aquecer-me, a imagem desses dias de entusiasmo e tumulto. Mas não era só isso: Cuba fora também a residência, durante os últimos vinte e tal anos da sua vida, do escritor Ernest Hemingway, cuja obra se me deparara, com algum alarme, ainda no começo da minha adolescência. O autor de The Sun also Rises ficara-me para sempre uma presença forte e mesmo obsessiva, até ao seu suicídio, em 2 de Julho de 1961 – e bem para além dessa data fatídica. Ir a Cuba serviria, pois, também, para exorcizar, de vez, esse dorido fantasma. Com essa visita, iria finalmente fechar as suas “obras completas”.
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Tinha catorze anos quando, em Lourenço Marques, num fim de tarde, durante as férias grandes, isto é, de inverno, meu pai me trouxe, para me alimentar o vício da leitura, um livro de formato robusto, que se intitulava Os Melhores Contos Americanos e se inscrevia numa série que dava pelo nome de Antologias Universais. Entre outros títulos de autores mais conhecidos que ali figuravam, um me saltou aos olhos e ao espírito, pela sua ameaça latente: “Os Assassinos”. Era seu autor um desconhecido: Ernest Hemingway. Outros, igualmente estranhos, o acompanhavam: Faulkner (“O Funeral de um Negro”), Saroyan (“Setenta Mil Assírios”). Todos estes contos representaram, para mim, naquele tempo, um considerável alarme estético. Literalmente, desarrumaram-me, deixaram-me sem saber o que pensar de tudo aquilo. João Gaspar Simões, o director editorial e o responsável pela colecção e pelo volume, avisava, desde logo, em termos um tanto vagos mas suficientemente inquietantes, quanto do “projecto” do autor americano: “a purificação da narrativa de todos os elementos não essenciais a ela.” O conto, por via do título, prometia ao adolescente romântico que eu era baldes de acção, mas tudo quanto ali encontrava era um diálogo porfiado, seco, agressivo, brutal, ameaçando tudo, mas conduzindo aparentemente a algo que ficava, para sempre, fora do meu campo de visão. Muito barulho para nada? Nem por isso: ficava-se literalmente esmagado, desligado de vez de não sei quantas ilusões de vida e de arte. É que era aquela uma arte seca, descascada, despojada de artifícios e de adjectivos, curtamente declarativa e, como muito mais tarde observaria o escritor E. L. Doctorow, “uma arte rigorosa de grande poder compressor”. O autor de “The Short Happy Life of Francis Macomber” – conto magistral, implacável e horrorosamente revelador – trazia à narrativa moderna uma dentada forte e inapagável, embora o seu enfoque e o seu processo não fossem de aplicação ilimitada. Como observava o citado Doctorow, “ele era inquestionavelmente um génio, mas era-o daquela espécie que publicita os seus próprios limites.” Por outras palavras Hemingway não era Henry James nem poderia aspirar a ser Proust ou Thomas Mann. Mas o seu estilo tenaz, anti-literário era, como observará Anthony Burgess, no seu admirável e compacto livro dedicado ao autor de A Moveable Feast, “uma música nova e reconhecida como tal.”
Foi, pois, Hemingway que também me levou a Cuba. Mesmo na década que precedeu a sua instalação definitiva, em 1940, na Finca La Vigia – a poucos quilómetros de Havana - Hemingway passava já grande parte do seu tempo naquela cidade, instalado – on and off – numa pequena “suite”, no 5º andar do Hotel Ambos Mundos, situado na esquina em que a Calle Obispo se cruza com a Calle Mercaderes. A “suite” é minúscula, nela mal cabendo a cama (com os pés voltados a Oriente, para que o sol nascente arrancasse o escritor, bem cedo, do repouso nocturno...) e uma mesinha para a máquina de escrever. É hoje um minúsculo museu. Perto, fica o porto, onde ancorava o seu iate.
Em Havana, Hemingway está omnipresente. É o grande ícon cultural, o inevitável caça-turistas, os quais atravancam a Bodeguita Del Medio, no Empedrado, onde o escritor ia beber, com regularidade, os seus “mojitos”. Na Calle Obispo, encontra-se também, no seu extremo ocidental, o bar Floridita, onde o autor de Death in the Afternoon ia beber, entre o fim da manhã e o meio da tarde, aquela dúzia de daiquiris duplos, cuja confecção ajudara a aperfeiçoar (aos quais acrescentava um largo copo cheio, que levava consigo, “for the road”). O daiquiri “aperfeiçoado” leva hoje, para turista ver, o nome do escritor. Terminada a libação, ia para casa ler, conversar, ver, de vez em quando, algum filme: tinha em casa um projector, com o qual revia, uma vez por outra, o único filme extraído de obra sua, que realmente estimava: The Killers, de Robert Siodmak, com Burt Lancaster, Ava Gardner e Edmond O’Brien, no elenco. Eis, nas próprias palavras do escritor, um resumo da sua vida em Havana:” Tive sempre sorte, a escrever em Cuba... Mudei-me de Key West para cá em 1938 e aluguei esta finca e comprei-a, finalmente, quando se publicou Por Quem os Sinos Dobram. É um bom lugar para trabalhar porque está fora da cidade e encravado numa colina... Levanto-me cedo quando o sol nasce e ponho-me a trabalhar e quando termino vou nadar e bebo um copo e leio os jornais de Nova Iorque e de Miami. Depois do trabalho pode-se ir pescar ou praticar tiro aos pombos, pela tarde. Mary [a quarta mulher] e eu lemos e ouvimos música e vamos deitar-nos. Algumas vezes vamos à cidade ou a um concerto. Outras, a uma peleja ou ver um filme e, a seguir, ao Floridita.”
Na magnífica Finca, que legou, por testamento, ao povo cubano, tudo se conserva modelarmente intacto e acarinhado: parece ainda habitado, com os donos apenas temporariamente ausentes. Ampla, arejada, cheia de livros bem arrumados – nove mil exemplares, fora os que terão ficado pelo caminho. Garcia Marquez, que lhe dedicou um livro, manipulou com amorosa minúcia a biblioteca e ali terá encontrado nas margens dos livros (lidos e anotados) certa observação crítica, no mais puro hemingwayês: “Pura merda de elefante”. Foi também Garcia Marquez quem, ao contemplar a sapateira preservada na Finca, falou nos “seus grandes sapatos de morto”.
Na minha imaginação, nunca vira a Finca tão ampla e cercada por um jardim tão vasto e generoso, Neste, debaixo de um telheiro, imobiliza-se para sempre, o Pilar que, pilotado pelo inseparável Gregorio Fuentes (Grigorine) se fazia ao mar, para pesca graúda e, ocasionalmente, para dar caça aos submarinos alemães... Ali, em Cuba, de algum modo, Hemingway foi feliz, escrevendo. Porque, numa carta de 1940, ao seu amigo e editor Charles Scribner, dizia: “Tenho de escrever para ser feliz”.
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Numa introdução que escreveu para uma selecção de contos de Hemingway, David Hughes diz isto que apetece registar: ”Quando o lemos, o nosso espírito começa a seguir os seus ritmos e a deitar fora todos os advérbios e a cortar todo o floreado verbal, a favor de uma narrativa plana e pictórica que apenas expõe o seu ponto de vista.(...) A sua capacidade de usar tão poucas e curtas palavras para convir questões de vida e morte era o resultado de uma longa luta com vista a banir o literário da sua linguagem.” Assim sendo que melancolia me avassala por me ter servido de tantas palavras para vos entregar aqui algumas das vivências cubanas do autor de The Green Hills of Africa! Ainda por cima, não o vejo a usar a palavra “vivências”..." Eugénio Lisboa,em Crónica publicada no JL
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