quinta-feira, 17 de setembro de 2015

114º Aniversário de José Régio

Eugénio Lisboa é o mais prestigiado estudioso  de José Régio . Tem publicada uma  enorme, variada  e valiosa obra   sobre este grande nome das letras portuguesas. 
No texto introdutório ao seu livro " Ler Régio" , revela-nos que ,  em 1946, no dia em que fazia 16 anos , lhe fora oferecido por um colega do liceu de Lourenço Marques, Alberto Parente, numa edição da Editorial Inquérito , um romance  intitulado  Uma Gota de Sangue, cujo autor se chamava  José Régio.  
Neste texto introdutório , Eugénio Lisboa confidencia-nos outras revelações que o marcaram para sempre.   Assim, entre outras,  escreve o seguinte: Régio , romancista, foi , portanto, a minha iniciação em Régio. E não podia ter sido melhor: porque  foi um mergulho empolgado e fascinado  numa obra  que nunca mais  deixou de me acompanhar, ao longo destes sessenta anos em que nela  colhi emoção, inteligência , prazer estético e conhecimento de alto quilate. Além de uma poderosa forma de integridade interior. 
(...) Peço me seja perdoado este breve esboço , inevitavelmente autobiográfico, de uma iniciação. Foi só para dizer  que não li Régio como às vezes lemos muitas outras coisas -  com algum prazer, com alguma emoção , com algum proveito, mas não muito mais  do que isso. A leitura dos  primeiros textos do autor  de  Biografia tivera , no  meu caso,  aspectos  de revelação , de abalo  emocional e intelectual, de verdadeira iniciação. Depois , ao longo de sessenta anos , não  deixei de o ler, de o estudar. Em livros  que lhe dediquei  (...), em Ensaios, (..) em textos publicados  avulso em jornais e revistas e depois recolhidos  em livros  de ensaios e estudos(...) e em recolha de textos  consagrados  por Régio  a Eça de Queirós, que organizei e prefaciei (...) em tudo isto fica o testemunho de uma atenção empenhada e cuidadosa que me foi sempre merecendo a obra do autor de Histórias de Mulheres. Mas  nos últimos onze anos , com o centenário do nascimento do escritor pelo meio, a ser responsável por não poucas intervenções , escrevi umas três dezenas de artigos que agora resolvi recolher em volume  a que dei o título de Ler Régio.
Ler Régio, obra a que fomos extrair as magnificas páginas,  produzidas em 2001, e que vão ser transcritas. As palavras de Eugénio Lisboa estão e continuarão plenas de sentido e actualidade para celebrar qualquer aniversário de José Régio , nascido a 17 de Setembro de 1901. 
A Eugénio Lisboa ficamos, para sempre,  devedores.

O passado vivo e a antecipação do futuro
Por Eugénio Lisboa
"A obra de Régio, de quem agora (2001) se celebra o centenário, teve sempre  dois vectores importantes: a obra que ele ia escrevendo e a acção clarificadora e saneadora que ia desenvolvendo, como crítico, como ensaísta, como director de uma revista influente.
Poemas de Deus e do Diabo, Biografia, Mas Deus é Grande, Jogo da Cabra cega, Histórias de Mulheres e Jacob e Anjo repercutiram é certo, em muitos de nós, os tumultos interiores e os conflitos prolongados e dilacerantes deste grande escritor português do século XX. Mas o crítico e teórico combativo da Presença - disse algumas das coisas mais certeiras, mais importantes  e mais corajosas das que têm sido proferidas no território da nossa república das letras.
 Surgida num período delicado e mesmo dramaticamente ameaçador da história europeia e mundial, a Presença, dirigida por gente independente, republicana e democrática, isto é, não acomodada ao regime político acabado de se impor militarmente em Portugal , encontrou-se pressionada entre dois lobbies igualmente poderosos: por um lado o Estado novo , que foi gradualmente apertando o controlo cultural , através da censura, da chamada " política do espírito " e da aliança com uma Igreja Católica com ele vergonhosamente comprometida, e, por outro, a emergência de uma oposição de cariz marxista, forte, bem organizada e corajosa, mas igualmente impositiva quanto à arte "que se devia  fazer" naquela conjuntura. Na circunstância, os " jovens" da Presença optaram por não ceder a nenhuma das pressões. Aquilo que hoje é líquido - o artista não deve ceder a discursos normativos  e estranguladores, aceitando tão-somente os mandatos  do seu foro interno - não o era naqueles tempos de fascismos condutores, de um lado, e marxismos orientadores, do outro.
Rágio, leitor da Nouvelle Revue Française, deve ter tomado conhecimento do texto publicado por Jacques Rivière, em 1919, no primeiro número da célebre revista vindo a lume após o fim da I Guerra Mundial . Era a altura em que a terrível hecatombe dominava, compreensivelmente, o imaginário das pessoas e o júri  do prémio Goncourt mal se atrevia a não dar o galardão a romance que sobre a guerra aparecesse com um mínimo de categoria ( Proust  furou o tabu mas a audácia  do júri  que o galardoou  provocou furioso alarido entre as hostes  normativas da época). O texto de Rivière dizia, entre outras coisas,  o seguinte, destinado a lembrar o que era  a arte  e o que os artistas deviam a si próprios: " Queremos criar  uma revista  sem preconceitos , na qual continuaremos  a julgar e a criar com completa liberdade intelectual". E depois , referindo-se  ao massacre apocalíptico que acabara de encher  o solo da França  de cadáveres acusadores , acrescentava, respondendo desde logo  a qualquer tentativa  que se quisesse fazer de orientar  a criação artística no quadro  desse desastre , isto é, de relegar, para segundo plano as preocupações  estéticas, a pretexto  de outras prioridades: " É possível ", dizia Rivière, " que a guerra  tenha diminuído a importância da arte  e da literatura  de entre  as preocupações humanas - veremos, - mas o que ela foi incapaz foi de modificar a sua natureza essencial. A despeito dos milhões que morreram, é tão verdade hoje,  como ontem, que uma obra de arte é bela por razões absolutamente intrínsecas que só podem  ser determinadas através  de um corpo-a-corpo com ela." E concluía, intemeratamente, com estas palavras em que podiam louvar-se todos os que amavam desinteressadamente a arte mas que ofendiam os burocratas-legisladores que , por então, começavam  a abundar: " A despeito de uma montanha de ruínas, permanece hoje verdadeiro que a criação artística é um acto verdadeiro que a criação artística é um acto original , que, acima " de tudo , talvez, criar é sentir , é não querer  nada a não ser aquilo que se está , no momento, a fazer. Portanto, hoje como ontem,  e a despeito de quaisquer possíveis escrúpulos, é necessário purificar a atmosfera estética e mantê-la limpa de todas as influências irrelevantes."
Nos anos da Presença e bem para além dela - o espírito destemido de homens como Régio, Casais e Simões, fizeram mais pela defesa da "atmosfera estética" da cidadela da arte , mantendo-a "limpa de todas  as influências  irrelevantes" do que qualquer outro grupo de artistas que se lhes tenha oposto por razões  irrelevantes ou relevando de más razões. 
Julgo que os verdadeiros artistas  também se podem definir  pela capacidade - e ombridade - de aceitarem que têm, para com Régio e os seus companheiros, esta enorme dívida.
No 3º volume  da fascinante soma romanesca que é  A Velha Casa, um dos personagens do grupo de amigos que se reúnem no café  e que é um homólogo dos da Presença, observa isto: " Olhe: nós , cá no Grupo,  ( que , a bem dizer,  não somos nenhum  grupo...)  juntamos o apreço do passado vivo ao gosto da mais audaciosa antecipação do futuro. O que é preciso é que tudo seja Presente."
Eis um perfeito emblema para o empreendimento ousado por Régio:  transformar audaciosamente em eterno, belo e vivaz presente a convergência feliz e criativa do passado vivo com a mais audaciosa antecipação do futuro. Quem diz que um tal projecto é retrógrado? Não os verdadeiros criadores de arte, que todos mais ou menos fazem isto mesmo. Mesmo que o neguem, é isto que fazem. "
Eugénio Lisboa, in " Ler Régio ", INCM, 2010,  (p. 253-255)

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