Crónicas da Infâmia
5 – Dos Partidos/ Das
Governações
Quem
tente interpretar a humanidade pelos
seus olhos, descobrirá muita coisa
estranha que lhe causará perplexidade.
Samuel Bellow, in “ O velho sistema. Contos e Novelas I”, Ed. Relógio D’Água
Vive-se um tempo ominoso. Um tempo de
sobressaltos inesperados agitado por uma febre que se consome em convulsões.
Este é o tempo em que o espectro de
uma guerra generalizada se pensava moribundo. O tempo distante do final
catastrófico da última guerra mundial que se vira transformado em funda e
delineada expectativa de uma paz duradoura.
O tempo europeu em que , de promessa
em promessa, se construiu uma organização de estados que se ligavam por laços
culturais e civilizacionais, aquilo que comumente se designava por espírito
europeu.
Um tempo que, de união em fractura, se
deixou seduzir pela força do poder económico.
Um tempo europeu que adulterou essa identidade humanista para se agregar à volta do estatuto de cifrões, do
domínio do capital. Estatuto que divide, rotula e diferencia. Os fortes e os
fracos. Os ricos e os pobres. O centro e a periferia. O Norte e o Sul.
Um tempo cego e sujo em que vinga o
interesse, o lucro e o capital.
O homem deixou de ser o centro, o
alvo, o sujeito inspirador de qualquer pequena ou grande realização. Passou a
ser o meio, o objecto que tem valor, não pela sua condição/dimensão humana, mas
pelo número que representa , enquanto produtor/detentor de riqueza. E neste
território, em desnorte humanista, aporta um movimento de gente em desespero, uma intensa diáspora de povos em
fuga de uma morte anunciada nos respectivos países de origem.
A Europa, ainda adormecida, levitava
num sono letárgico que a impedia de visionar a tragédia que se mostrava real no
seu próprio espaço, permitindo que cada parcela se organizasse per si.
Construíram-se muros. Elevaram-se barreiras e encurralam-se pessoas numa ânsia fiscalizante e fiscalizadora.
E uma dor envergonhada apanha-nos. A
infâmia está à solta, tal como ilustram as palavras de Christophe Dejours: On fait
passer pour un malheur ce qui relève en fait de l’exercice du mal commis par
certains contre d’autres.
Instada a acordar, esta Europa começa
a reagir. Contudo, as imagens, que jamais se deviam repetir, continuam a nos
dilacerar todos os dias. Todos os dias.
E Portugal , país periférico, (situado
na costa mais ocidental da Europa, lá,
onde a terra se acaba e o mar começa),
abre as portas. País de velhos
marinheiros , que se fizeram ao mar, quando a terra lhes soçobrou, cede
acolhimento. Presta-se a receber quem, como tantos da sua gente, já
experimentou o medo da guerra, a falta de chão, a fuga da terra-mãe
transformada em campo de batalha. Preparam-se comissões, cria-se uma plataforma
de acolhimento.
E neste cenário, Portugal europeu enreda-se
numa campanha eleitoral. Aproxima-se o tempo em que os lugares do poder vão a
concurso.
Seremos, nós, o júri da selecção. Os
candidatos são os Partidos. Os eleitores não correspondem aos eleitos. E quando
os eleitos são transformados em Governo , esquecem todo o processo selectivo.
Os programas não vinculam quem os assina. A governação não se estabelece numa
relação de causa → efeito.
A causa deixou de assentar na res publica. O efeito não é servir as
pessoas em defesa/promoção do bem comum. O efeito é, antes, uma espécie de sortilégio de anfetaminas que faz do poder o centro da
governação. Perdem-se as causas eleitorais pela causa eleitoralista. Simulez, dissimulez, souriez. Et peu importe
si c’est faux, escreveu o laureado do Goncourt (2011), Alexis Jenni.
O que interessa é convencer para
ganhar. A cadeira do Poder está vaga. Por isso, há Partidos que prometem e
governos que não cumprem.
Nunca me inscrevi num Partido. Creio
que não o fiz por me não rever em qualquer um.
Havia sempre um distanciamento entre a
palavra e o facto, entre o verbo e o feito, entre o que se faz e o que se
prometeu que me afastava definitivamente. Tal como Flaubert, se algum partido
tenho é o da indignação.
A credibilidade entre o ser e o fazer,
entre a ideologia e a praxis, entre a promessa e o cumprimento não passa de
mera ilusão.
E, se Paul Valéry, o autor de Mélange, já nos disse que os
homens se diferenciam pelo que mostram e se parecem pelo que escondem, é
tempo de separar a verdade da falsidade. É tempo de erguer a autenticidade
porque é tempo de confirmar quem
pretende manipular o país.
O país não precisa de mais sofrimento.
O país não precisa de mais engano.
Chega de tanto logro, de tanto
desemprego, de tanta pobreza, de tanta desesperança.
Acabemos com a política corcunda .Que
se silencie a ignóbil voz da infâmia para que
não haja quem a possa seguir.
Praia da Rocha, 10 de Setembro de
2015
Maria
José Vieira de Sousa
Uma crónica real , muito autêntica. Que se cale definitivamente a voz da infâmia em qualquer parte do mundo.
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