DO GRANDE E HÒRRÍVEL CRIME
Por essas feiras do alfoz
Do Porto, leal cidade,
Brutal e triste, uma voz
Levanta um pregão feroz
De crime e fatalidade.
Junta-se o povo de roda,
Crianças, velhos e moços
Que seduz a nova moda;
E os olhos da roda toda
São como bocas de poços…
E a nova moda é já velha,
Recente, embora, a toada;
Revelha, velha, revelha,
Que a todas mais se assemelha,
De novo, não conta nada…
Vem dos inícios do mundo,
(Por não sei que ódio divino)
De quando, a errar vagabundo,
Caim desceu bem ao fundo
Do seu maldito destino.
Só a maneira é que é vária
Dum mesmo fado cumprir
A sinistra prole do pária;
E a assistência é extraordinária,
Que o bom povo quer ouvir!
Desfolha um bandolim gasto
Seu choro falso e palreiro
Frente a uma casa de pasto;
E um alto grito nefasto
Berra por todo o terreiro.
Canta uma mulher pejada,
Senhora-do-Ó fadista,
Ou uma garota enfezada
Que tem olhos de enjeitada
Mas pretende ser corista…
Canta um velhote que tosse,
Babando as barbas de neve,
Ou um rapazinho precoce,
Com esse ar dos a quem roce
A asa da morte breve…
Canta um esbelto vadio
De torvo olhar cor de lodo,
Que esguicha um mau riso frio
À triste a quem mata o cio
E apanha o dinheiro todo…
Canta uma cega, rolando
Por todo o alvar poviléu
Seus olhos vítreos olhando…
Canta um fado miserando,
Não mais, porém, do que o seu!
Canta uma família inteira,
― Pai, mãe, avó, quatro filhos —
E ao calar-se a cantadeira,
É a pobre velha gaiteira
Que intercala os estribilhos…
Um seráfico gandula
Que inda em falsete se exprime
E entre o público circula,
Pregoa uma canção chula
Mai l-o grande e hòrrível crime!
Surdo, o violão dlão toa,
E o bandolim se lhe enlaça…
Ou, carpindo a sós, ressoa
Uma guitarra, a mais boa
Companheira da desgraça.
E enquanto, em plena quermesse
De movimento, cor, sol,
A própria luz arrefece,
A voz de lástima e prece
Desfia o macabro rol:
Cose um marido a facadas
A mulher que estremecia,
E as mãos inda ensanguentadas,
Vai, de entre seus camaradas,
Esganar quem no traía!
Jovem mãe abandonada
Com seu filhinho nos braços,
Uma triste e malfadada
Deixa-o numa água-furtada
Retalhadinho em pedaços!
No mais vil prédio dum beco
Dos que a decência condena,
Sem que de tal corra um eco,
Num charco de sangue seco
Seis dias jaz Madalena!
Um filho desnaturado
Talha a golpes de podoa
O ventre em que foi gerado…
E o corpo em sangue escoado
Levanta a mão que abençoa!
E, por bordéis e hospitais,
Por mesas de anatomia,
Por salas de tribunais,
Por colunas de jornais,
Se estira o rol dia a dia…
Nos intervalos do fado,
Fala em prosa a cantadeira:
Maldiz o bruto malvado
Num discurso alto clamado
Com vozes de carpideira.
E, num tom quase faceto,
O loiro e reles menino
Mostra ao povinho um folheto
Que traz, moldurada a preto,
Uma foto do assassino…
Que verde curiosidade,
Que gosto de sangue e morte,
Que dó, que ferocidade,
Preme ali tal sociedade
Nesse culto à negra sorte?
Sentimental, caricato
De rapapés ao terror,
À história do do retrato
Segue-se o extenso relato
De outro crime inda melhor.
E enquanto um diz que são tretas,
E os demais olham inquietos,
E outro, que tem quaisquer letras,
Decifra essas cifras pretas
A um grupo de analfabetos,
Sob o imenso azul perfeito
Como abóbada de igreja,
As mães de filhos de peito
Tremem, sem achar direito
De acusar quem quer que seja…
Por mesas de anatomia,
Por salas de tribunais,
Por colunas de jornais,
Se estira o rol dia a dia…
Nos intervalos do fado,
Fala em prosa a cantadeira:
Maldiz o bruto malvado
Num discurso alto clamado
Com vozes de carpideira.
E, num tom quase faceto,
O loiro e reles menino
Mostra ao povinho um folheto
Que traz, moldurada a preto,
Uma foto do assassino…
Que verde curiosidade,
Que gosto de sangue e morte,
Que dó, que ferocidade,
Preme ali tal sociedade
Nesse culto à negra sorte?
Sentimental, caricato
De rapapés ao terror,
À história do do retrato
Segue-se o extenso relato
De outro crime inda melhor.
E enquanto um diz que são tretas,
E os demais olham inquietos,
E outro, que tem quaisquer letras,
Decifra essas cifras pretas
A um grupo de analfabetos,
Sob o imenso azul perfeito
Como abóbada de igreja,
As mães de filhos de peito
Tremem, sem achar direito
De acusar quem quer que seja…
José
Régio, in
“Fado” , Arménio Amado Editor, Coimbra
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