"O Sermão de Santo António aos Peixes foi pregado em 13 de Junho de 1654 em São Luís
do Maranhão, três dias antes de embarcar escondido para Portugal no
auge da luta dos jesuítas contra a escravização dos índios pelos colonizadores,
procurando o remédio da salvação dos Índios. O sermão revela toda a ironia,
riqueza nas sugestões alegóricas e agudo senso de observação sobre os vícios e
vaidades do homem, comparando-o, por meio de alegorias, aos peixes."
Sermão de Santo António aos peixes
“Notai,
peixes, aquela definição de Deus: Rector maris atque terrae: Governador
do mar e da terra, para que não duvideis que o mesmo estilo que Deus guarda com
os homens na terra observa também convosco no mar. Necessário é logo que olheis
por vós e que não façais pouco caso da doutrina que vos deu o grande doutor da
Igreja Santo Ambrósio, quando, falando convosco, disse Cave nedum alium
insequeris, incidas in validiorem (1). Guarde-se o peixe que
persegue o mais fraco para o comer, não se ache na boca do mais forte, que o
engula a ele. Nós o vemos aqui cada dia. Vai o xaréu correndo após o bagre,
como o cão após a lebre, e não vê o cego que lhe vem nas costas o tubarão com
quatro ordens de dentes, que o há-de engolir de um bocado. E o que com maior
elegância vos disse também Santo Agostinho: Proedo minorisfit proeda majoris
(2).
Mas
não bastam, peixes, estes exemplos, para que acabe de se persuadir a vossa
gula, que a mesma crueldade que usais com os pequenos tem já aparelhado o
castigo na voracidade dos grandes. Já que assim o experimentais com tanto dano
vosso, importa que daqui por diante sejais mais repúblicos e zelosos do bem
comum, e que este prevaleça contra o apetite particular de cada um, para que
não suceda que, assim como hoje vemos a muitos de vós tão diminuídos, vos
venhais a consumir de todo. Não vos bastam tantos inimigos de fora e tantos
perseguidores tão astutos e pertinazes, quantos são os pescadores, que nem de
dia nem de noite deixam de vos pôr em cerco e fazer guerra por tantos modos?
Não vedes que contra vós se emalham e entralham as redes; contra vós se tecem
as nassas; contra vós se torcem as linhas; contra vós se dobram e farpam os
anzóis; contra vós as fisgas e os arpões? Não vedes que contra vós até as canas
são lanças e as cortiças armas ofensivas? Não vos basta, pois, que tenhais
tantos e tão armados inimigos de fora, senão que também vós de vossas portas
adentro o haveis de ser mais cruéis, perseguindo-vos com urna guerra mais que
civil, e comendo-vos uns aos outros? Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha
fim algum dia esta tão perniciosa discórdia; e pois vos chamei e sois irmãos,
lembrai-vos das obrigações deste nome. Não estáveis vós muito quietos, muito
pacíficos e muito amigos todos, grandes e pequenos, quando vos pregava Santo
António? Pois continuai assim e sereis felizes.
Dir-me-eis
(como também dizem os homens) que não tendes outro modo de vos sustentar. E de
que se sustentam entre vós muitos que não comem os outros? O mar é muito largo,
muito fértil, muito abundante, e só com o que bota às praias pode sustentar
grande parte dos que vivem dentro nele. Comerem-se uns animais aos outros é
voracidade e sevícia, e não estatuto da natureza, Os da terra e do ar, que hoje
se comem, no princípio do mundo não se comiam, sendo assim conveniente e
necessário para que as espécies de todos se multiplicassem. O mesmo foi (ainda
mais claramente) depois do dilúvio, porque tendo escapado somente dois de cada
espécie, mal se podiam conservar, se se comessem. E finalmente no tempo do
mesmo dilúvio, em que todos viveram juntos dentro na Arca, o lobo estava vendo
o cordeiro, o gavião a perdiz, o leão o gamo, e cada um aqueles em que se
costuma cevar; e se acaso lá tiveram essa tentação, todos lhe resistiram e se
acomodaram com a ração do paiol comum, que Noé lhe repartia. Pois se os animais
dos outros elementos mais cálidos foram capazes desta temperança, por que o não
serão os da água? Enfim, se eles em tantas ocasiões, pelo desejo natural da
própria conservação e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós
também; ou fazei a virtude sem necessidade, e será maior virtude.
Outra
coisa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima, em muitos de
vós, é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens
experimentam os que navegam para estas partes. Toma um homem do mar um anzol,
ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por
um cabo delgado até tocar na água, e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e
fica preso e boqueando, até que assim suspenso no ar, ou lançado no convés,
acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta?
Enganados por um retalho de pano, perder a vida! Dir-me-eis que o mesmo fazem
os homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército,
metem-se os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e por
quê? Porque houve quem os engodou, e lhe fez isca com dois retalhos de pano. A
vaidade, entre os vícios, é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana
os homens. E que faz a vaidade? Põe por isca nas pontas desses piques, desses
chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito
de Malta, ou verde, que se chama de Avis, ou vermelho, que se chama de Cristo e
de Santiago; e os homens, por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito,
não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois disso, que sucede? O mesmo
que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali ou noutra ocasião, ficou morto e os
mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros. Por
este exemplo vos concedo, peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto
que me parece que não foi este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque
cá no Maranhão, ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos nem esta
ambição de hábitos.
Mas
nem por isso vos negarei que também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo
engano, menos honra da e mais ignorantemente. Quem pesca as vidas a todos os
homens do Maranhão, e com quê? Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um
mestre de navio de Portugal com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e
quatro sedas, que já se lhe passou a era e não tem gasto. E que faz? Isca com
aqueles trapos aos moradores da nossa terra; dá-lhe uma sacadela e dá-lhe
outra, com que cada vez lhe sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que o querem
parecer, todos esfaimados aos trapos; e ali ficam engasgados e presos, com
dívidas de um ano para outro ano e de uma safra para outra safra, e lá vai a
vida. Isto não é encarecimento. Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça ou na
cana, ou no engenho ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva?
Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem
os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas,
nem as jóias. Pois em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo com
que saem à rua. E para isso se matam todo o ano!
Não
é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro está
que sim; nem vós o podeis negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por
dois retalhos de pano quem tem obrigação de se vestir; vós, a quem Deus vestiu
do pé até à cabeça, ou de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de
escamas prateadas e douradas, vestidos que nunca se rompem nem gastam com o
tempo, nem se variam ou podem variar com as modas, não é maior ignorância e
maior cegueira deixares-vos enganar, ou deixares-vos tomar pelo beiço com duas
tirinhas de pano? Vede o vosso Santo António, que pouco o pôde enganar o mundo
com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de que aquela idade
tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia de cónego
regrante; e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito
custosa aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com
aquela corda e com aquele pano pescou ele muitos, e só estes se não enganaram e
foram sisudos.
(1) «Tem cuidado, não caias nas mãos de um mais potente, quando vais em
perseguição de um outro.»
(2) «O ladrão do menor acaba por ser vítima do maior.»
Padre
António Vieira, in “Sermões”,Círculo dos Leitores
Padre António Vieira
"De padre António Vieira disse Fernando Pessoa ser o «imperador da língua portuguesa». Jesuíta, orador e escritor, nasceu em Lisboa em 1608, e morreu em 1687, no Brasil, mais propriamente na Baía. Ordenado sacerdote em 1635, lutou empenhadamente pela realização de reformas económicas e sociais. Na sua oratória, conjugou visão e pragmatismo, como seria de esperar de um homem de acção. Com uma construção literária e argumentativa notáveis, os seus sermões revelam uma intensa ligação com a vida pública, o que resulta numa prosa eminentemente funcional mas que não perde nunca o nível de universalidade necessário a toda a obra de arte perdurável. Possuidor de uma inteligência poderosíssima, padre António Vieira arquitectou mundos à medida dos seus sonhos e deixou-nos como legado uma obra que se afirmaria como um dos paradigmas da prosa portuguesa." Leya
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