Cátedra Eduardo Lourenço, Universidade de Bolonha , 5
Dezembro 2007
Uma Outra História de
Regressos: Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa
Por Margarida Calafate Ribeiro
Para Eduardo
Lourenço
Para Helder
Macedo
Para mim Portugal acabou.1
Acabou-se Moçambique. 2
Angola deixou de existir. 3
A Guiné apagou-se.Varreu-se do
mapa.4
"Sou
da primeira geração de portugueses da segunda metade do século XX que cresceu
em liberdade. A geração que fez o exame da antiga 4a classe entoando "Uma
gaivota voava, voava", clamando a sua infantil liberdade e respeitando o tom
revolucionário que então se respirava, sem mais Américo Tomás ou Marcelo
Caetano nas paredes da sala de aula. Cresci e passei a minha adolescência a
ouvir o som do rock português clamando que queria ver Portugal na então CEE.
Europa, “sonho futuro” anunciado desde 46, por Adolfo Casais Monteiro, era
agora o sonho futuro dos jovens dos anos 80, filhos daquela geração que lutou
ao longo dos anos 50 e 60 contra a ditadura, a falta de liberdade, a mesmidão
do país onde nada acontecia, como dizia Alexandre O’ Neill; a mesma geração que
teve o azar histórico de participar na grande tragédia da nossa
contemporaneidade que foi a Guerra Colonial em África. Enfim filhos de uma
geração de portugueses que nunca regressou, atormentada pelos fantasmas da
guerra, eternamente se questionando sobre o que fazer a “este preto que cairá
para sempre, a cada segundo, de umbigo roto, no interior de mim…”5, como se
evoca tragicamente na obra de António Lobo Antunes, uma das primeiras vozes
literárias dessa geração educada na Mocidade Portuguesa, destruída nos “cus de
Judas” africanos, que teve os filhos pela Rádio, sujou as mãos e a alma no
naufrágio final do império e que, regressava para filhos que não os conheciam,
para mulheres que já não os entendiam, para um país que tinha vivido sem eles e
que ainda hoje os estranha, assim insistindo para
que a memória da guerra só a eles pertença.
Assisti
e tenho memória dos regressos desses pais que só se conheciam na fotografia e
que de repente estavam em nossa casa, dormiam com a nossa mãe, falavam
vagamente connosco e hesitavam em exprimir o seu carinho. Depois do 25 de Abril
houve também o regresso de muita gente que eu não sabia que também tinha
partido: emigrantes chegados de países europeus, exilados regressando do
estrangeiro e retornados desembarcados de África. Portugal era para todos estes
“regressados” um país imaginado: idílica paz para os soldados cansados da
guerra ou início da “guerra seguinte”; realização de sonhos políticos para os
exilados, porto seguro para exorcização de todas as humilhações passadas nas
terras de emigração; metrópole imaginada e lugar de retorno obrigatório para os
retornados; país de emigração para os “retornados” que nunca tinham partido. Na
escola os colegas vinham de todos os sítios: de França ou da Alemanha, tinham
nascido em África, porque os pais tinham estado lá na guerra ou viviam em África
e de lá tinham vindo, o que os fazia vibrar com a independência de Angola ou de
Moçambique e, contra a vontade dos pais, traziam a bandeira dessa terra que
confusamente diziam também ser a deles, recusando assim o Portugal atrasado que
nós para eles representávamos, mas comungando connosco da vida à solta que então
se vivia. Na escola e em casa a revolução estava em marcha: os nossos pais
adormeciam capitalistas e acordavam nacionalizados, viviam em intermináveis
reuniões e à noite ainda íamos com eles a constantes sessões de esclarecimento,
de onde toda a gente voltava a discutir imenso quebrando-se assim, no nosso
entendimento, o propósito da ida; na escola, à semelhança dos adultos,
organizávamos também a nossa revolução, com as Assembleias Gerias de escola, as
nossas sessões de esclarecimento e as nossas campanhas pelo A ou pelo B, com
vista à eleição dos nossos representantes. Recordo desses tempos o ambiente de
debate que dominava a sala de aula, os nossos malogrados cultivos agrícolas no
que tinha sido o jardim da escola, os Estudos Sociais em vez da História,
Fernão Mendes Pinto em vez de Camões, os trabalhos sobre Karl Marx ou Engels, a
ânsia dos professores em nos darem tudo aquilo a que não tinham tido acesso,em
nos educar como cidadãos responsáveis e democratas, capazes de, como os nossos
pais, apaixonadamente discutir tudo. Como mais tarde me esclareceu Eduardo
Lourenço, em “O Labirinto da Saudade”, nessa época Portugal estava em discussão
6. Eu, tinha sido testemunha." Margarida Calafate Ribeiro
1 Augusto Abelaira, Sem Tecto
entre Ruínas, Lisboa: Sá da Costa, 1982.
2 Lobo Antunes, António, Fado
Alexandrino, Lisboa: Dom Quixote, 1989.
3 Rocha de Sousa, Angola –
Crónica de uma Deriva, Lisboa: Contexto, 1999.
4 Álamo Oliveira, Até Hoje,
Memória de Cão, Lisboa: Ulmeiro, 1986.
5 Lobo Antunes, António, Fado
Alexandrino, Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 40.
6 Eduardo Lourenço, O
Labirinto da Saudade, Lisboa: Dom Quixote, 1982, p. 6
Margarida Calafate Ribeiro é investigadora no Centro de Estudos Sociais e docente nos programas de
doutoramento do Centro de Estudos Sociais/ Faculdade de Economia,
“Pós-Colonialismos e Cidadania Global” e “Democracia no Século XXI”.
Responsável pela cátedra Eduardo Lourenço, do Instituto Camões e da
Universidade de Bolonha.
Os seus actuais interesses de
investigação incluem estudos pós-coloniais, literatura portuguesa e de países
de língua portuguesa, história do império português, em particular o império
africano e as guerras coloniais; mulheres e guerra. Actualmente, coordena os
projectos de investigação “Poesia da Guerra Colonial: ontologia do ‘eu’
estilhaçado” e “Os Filhos da Guerra Colonial:
pós-memória e representações”, financiados pela FCT.
Das suas publicações, destacam-se os livros África no Feminino: as mulheres
portuguesas e a Guerra Colonial (Afrontamento,
2007); Uma História de
Regressos: Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo (Afrontamento, 2004); Atlantico
Periferico. Il Postcolonialismo portoghese e il sistema mondiale, (org. com Roberto Vecchi e Vincenzo Russo) (Reggia Emilia, Diabasis,
2008); Lendo Angola (org. com Laura Cavalcante Padilha) (Afrontamento, 2008); Moçambique: das palavras escritas (org. com Maria Paula Meneses) (Afrontamento, 2008); Fantasmas e Fantasias Imperiais no
Imaginário Português Contemporâneo (org. com Ana
Paula Ferreira) (Campo das Letras, 2003).
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