Vincent Van Gogh, deux- fillettes |
Educação para um Mundo Difícil
“Os
jovens que não sejam completamente frívolos estão preparados para descobrir
que, no mundo de hoje, os seus impulsos de boa vontade fracassam na procura de
uma qualquer linha de acção que possa diminuir os perigos do tempo presente.
Não vou pretender que há uma resposta simples ou fácil para a sua desilusão,
mas penso que uma educação adequada poderia fazer com que esses jovens se
sentissem mais capazes de perceber os problemas e de, criticamente, julgar esta
ou aquela solução sugerida.
Há
inúmeras razões que tornam os nossos problemas difíceis de resolver, senão
mesmo de entender. A primeira diz respeito ao facto de a sociedade e a política
modernas serem governadas por capacidades difíceis que poucas pessoas entendem.
O homem da ciência é o moderno curandeiro. Pode fazer todo o tipo de magia.
Pode dizer "Faça-se luz" e a luz aparece. Pode aquecer-nos no Inverno
e, no Verão, manter fresca a nossa comida. Pode transportar-nos através do ar,
tão depressa como um tapete mágico das “1001 noites”. Promete exterminar os
inimigos em poucos segundos e só nos desaponta quando lhe pedimos para prometer
que os nossos inimigos não nos irão exterminar. Tudo isto é conseguido por meios
que só para uma pessoa num milhão não aparecem como completamente misteriosos.
E enquanto os místicos nos contarem histórias de maravilhas futuras, não
saberemos dizer se é possível ou não acreditar.
Um
outro aspecto que torna o mundo moderno estonteante é o facto de os
desenvolvimentos técnicos terem tornado necessária uma nova psicologia social.
Desde os tempos remotos até ao século presente, o caminho para o sucesso
consistia na vitória em competição. Descendemos de muitos séculos de
progenitores que exterminaram os seus inimigos, ocuparam as suas terras e se
tornaram ricos. Em Inglaterra, este processo deu-se no tempo de Hengist e
Horsa[1]. Nos Estados Unidos, ocorreu nos séculos XVIII e XIX. Somos assim
levados admirar um certo tipo de carácter, nomeadamente, aquele que permite
matar de forma eficaz e sem ressentimentos. Os seguidores mais moderados desta
crença, contentam-se com infligir morte económica em vez de morte física, mas a
psicologia de ambos é muito parecida. No mundo moderno, como resultado do
aumento destas capacidades mortíferas, este processo já não se revela
satisfatório. No mundo moderno, mesmo os vitoriosos sofrem mais do que se não
tivesse havido guerra. Isto é óbvio para os britânicos, que estão a sentir os
resultados de duas vitórias totais em duas grandes guerras,. O que se aplica na
guerra, aplica-se também na esfera económica. Os vitoriosos numa competição não
enriquecem tanto como poderiam enriquecer pela união das duas partes oponentes.
Ora, a apreciação semi-consciente destes factos produz nos jovens inteligentes
um impulso para uma boa-vontade geral, impulso este que é anulado pela
hostilidade mútua dos grupos poderosos. Referimo-nos à boa vontade em geral,
não à boa vontade em particular. Um hindu pode amar a humanidade mas não deve
amar um paquistanês; um judeu pode acreditar que todos somos uma grande
família, mas não se deve atrever a incluir os árabes neste sentimento; um
cristão pode pensar que o seu dever é amar o próximo, mas apenas se o próximo
não for comunista. Perante estes conflitos entre o geral e o particular, é
impossível ter um qualquer princípio claro de acção. Dificuldade que se deve a
uma incapacidade geral para adaptar a natureza humana à técnica. Os nossos
sentimentos são apropriados a nómadas belicosos de regiões desertas. Mas, com a
técnica que hoje possuímos, a menos que os nossos sentimentos se tornem mais
cooperantes, seremos conduzidos ao desastre.
A
educação, ao visar adaptar-se às nossas necessidades actuais, deve conduzir os
jovens à compreensão dos problemas levantados por esta situação. A transmissão
de conhecimento na educação teve sempre dois propósitos: por um lado, fornecer
capacidades científicas e técnicas[2]; por outro, dar algo vago a que podemos
chamar sabedoria[3]. A parte da aquisição das capacidades, torna-se cada dia
mais alargada, e ameaçada cada vez mais, a parte devotada à sabedoria. Ao mesmo
tempo, temos que admitir que, no nosso mundo, a sabedoria é impossível, excepto
para quem percebe quão grande é o papel representado por essas capacidades,
pois são elas a característica distintiva do nosso mundo. Durante a última
guerra, quando jantava com os Fellows da minha faculdade, descobri que os
cientistas estavam quase sempre ausentes mas, nas suas raras aparições,
vislumbrava-se um trabalho misterioso, que poucas pessoas vivas podiam
entender. Foi o trabalho de homens deste género que foi determinante na guerra.
Estes homens formam inevitavelmente uma espécie de aristocracia, já que as suas
capacidades são, e serão, raras pelo menos até que, por algum novo método, se
possam aumentar as aptidões congénitas da humanidade. Por exemplo, há muito
trabalho importante que apenas pode ser realizado pelos que são bons em
matemática avançada. E, a imensa maioria da humanidade nunca será capaz de se
tornar boa em matemática avançada, mesmo que a sua educação fosse direccionada
para esse fim. Os homens não são iguais em capacidades congénitas e qualquer
sistema educativo que assuma o contrário leva ao desperdício desastroso de bom
material.
Mas,
apesar de necessária, a capacidade científica não é de forma alguma suficiente.
Uma ditadura de homens de ciência depressa se tornaria horrível. Seria fácil de
comprovar que a capacidade científica sem a sabedoria pode ser puramente
destrutiva. Por esta razão, se não por outra, é de grande importância que
aqueles que recebem uma educação científica não sejam meramente científicos,
mas adquiram aquele conhecimento que, caso possa ser transmitido, pode apenas
sê-lo através do lado cultural da educação. A ciência permite-nos conhecer os
meios para qualquer fim escolhido mas não nos ajuda a decidir que fins
deveremos perseguir. Se se quiser exterminar a raça humana, a ciência mostrará
como fazê-lo. Se se quiser conseguir que a raça humana seja tão numerosa que
fique à beira da fome, a ciência mostrará também como o fazer. Se se quiser
assegurar prosperidade adequada a toda a raça humana, a ciência dirá o que
fazer. Mas a ciência não poderá dizer se um destes fins é mais desejável do que
o outro. Nem dará aquela compreensão instintiva dos seres humanos que é
necessária se não se pretende que as suas acções despertem uma oposição
violenta que, depois, apenas uma tirania feroz poderia fazer parar. Não se pode
ensinar paciência, não se pode ensinar simpatia, não se pode ensinar o sentido
do destino humano. Na educação formal, e na medida em que estes aspectos podem
ser ensinados, o mais provável é que resultem da aprendizagem da História e da
grande Literatura.
A
familiaridade com a grande literatura foi um dos objectivos da educação
reclamados desde o tempo de Peisistrato[4]. De facto, os atenienses perseguiam
sabiamente este objectivo: aprendiam Homero de memória e eram capazes de
apreciar os grandes dramaturgos, mesmo os seus contemporâneos. Mas os métodos modernos
suplantaram tudo isto. Deram-me, quando era muito novo, um pequeno livro
chamado A Child's Guide to Literature[5]. Neste livro, guiada por alguma
inteligência sobrenatural, as crianças faziam perguntas acerca dos grandes
escritores ingleses, na correcta sequência cronológica, começando por
"quem foi Chaucer?". Lamento dizer que nunca fui muito adiante neste
livrinho. Se tivesse avançado, teria sido capaz de dizer apenas aquilo que os
examinadores esperavam que fosse dito sem ter lido uma única palavra dos
autores implicados. Receio bem que a necessidade dos exames e a extensão
(desnecessária) dos currículos, tenham tornado demasiado comum aquela forma de
estudar literatura. Ora, uma pessoa pode tornar-se melhor por ter lido Chaucer
mas, se não o ler, sabendo apenas as datas e o que sobre ele disseram críticos
eminentes, isso não tornará ninguém melhor do que saber as datas de um qualquer
obscuro desconhecido. O bem que deriva da grande Literatura só aparece em pleno
naqueles que se lhe tornam familiares, que a deixam penetrar na textura dos
seus pensamentos quotidianos. Acho pois admirável que as crianças representem
Shakespeare na escola. Há então uma razão óbvia para ficar a conhecê-lo bem e,
além disso, a tarefa é cooperativa em vez de competitiva. Estou certo que
representar uma das boas peças de Shakespeare é uma forma melhor para adquirir
aquilo que é valioso na educação literária do que uma leitura apressada de toda
a obra. Nas gerações passadas, as pessoas de expressão inglesa tinham o mesmo
tipo de treino em prosa através da familiarização com a Versão Autorizada da
Bíblia mas, desde que a Bíblia se tornou desconhecida, nada de tão excelente
tomou o seu lugar.
Em
oposição à Literatura, no ensino da História a escassez pode ser de grande
utilidade. Para aqueles que não vão ser historiadores profissionais, aquilo que
nos Estados Unidos da América se chama um survey course pode, se bem feito, dar
um sentido valioso do processo mais vasto no qual ocorrem os acontecimentos
próximos e familiares. Esses cursos deveriam lidar com a História do Homem, não
com a História deste ou daquele país, muito menos com a de cada um. Deveria
começar com os factos mais antigos, conhecidos através da Antropologia e da
Arqueologia, e dar sentido à emergência gradual daquilo que, na vida humana, dá
ao Homem o lugar que merece. O ensino da História não deveria apresentar como
heróis mundiais aqueles que dizimaram o maior número de "inimigos"
mas, pelo contrário, aqueles que se notabilizaram na expansão do capital
mundial de conhecimento, beleza e sabedoria. Um tal ensino, deveria mostrar o
estranho poder de ressurgimento daquilo que é valioso na vida humana, poder
esse que desafiou o tempo, a selvajaria e o ódio, mas que, ainda assim, emerge
de novo na primeira oportunidade possível, como a erva no deserto depois da
chuva. Enquanto a juventude possui alguma plasticidade de desejos e esperanças,
deveria ser desviada do desejo de vencer os outros seres humanos e despertada
para a vontade de vencer aquilo que, até agora, encheu a vida do homem de
sofrimento e tristeza – quer dizer, vencer as forças da natureza relutantes em
dar os seus frutos, as forças da ignorância militante, as forças do ódio e a
profunda subjugação ao medo, herança da original impotência da humanidade. Tudo
isto deveria e poderia ser dado por um survey em História. Tudo isto, se entrar
na textura diária do pensamento humano, tornará os homens menos precipitados e
loucos.
Uma
das maiores capacidades que a educação pode e deve dar é o poder de vislumbrar
o geral no particular; o poder de sentir que, apesar de isto estar a
acontecer-me a mim, é muito parecido com o que acontece aos outros, com o que
aconteceu durante séculos e com o que pode continuar a acontecer. É fácil
sentir que a desgraça de cada um, as injustiças que sofremos ou as
malevolências de que somos alvo são especiais e peculiares. Isto aplica-se não
só ao próprio, como à sua família, classe, nação, ou mesmo continente. Porém,
em resultado da educação, é possível ver esses acontecimentos com justiça
imparcial. De outro modo, é improvável alcançar jamais essa imparcialidade.
A
Educação pode conseguir tudo isto. Tudo isto deve ser feito pela educação. Pouco
disto é feito pela educação.” Bertrand Russel, in "Fact and Fiction",
Londres: George Allen & Unwin Ltd, 1961
[1]
Nomes dos dois irmãos que, de acordo com a tradição, lideraram a invasão Jutish
à Bretanha e fundaram o reino de Kent. (The Columbia Encyclopedia, Sixth
Edition. 2001, N.T.)
[2]
Skill em inglês (N.T.)
[3]
Wisdom, em inglês (N.T.)
[4]
Peisistrato (605-527 B.c.), estadista ateniense, filho de Hipócrates. Foi
responsável pela proeminência de Atenas no mundo grego ao unificar a região da
Ática e ao melhorar rapidamente a prosperidade ateniense. Enalteceu o prestígio
cultural de Atenas com grandes festivais e construiu fontes e templos (como o
grande templo de Zeus em Atenas). (N.T.)
[5]
Guia de Literatura para as Crianças (N.T.)
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