sexta-feira, 4 de abril de 2014

Entre nós e as palavras

               " No círculo da sua acção, todo o verbo cria o que afirma." Mário Cesariny

Detalhe da pintura de Daniel Maclise, de 1842, chamada A Cena da Peça em Hamlet

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Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam

e podem dar-nos a morte      violar-nos     tirar
 do mais fundo de nós o mais útil segredo
 entre nós e as palavras há perfis ardentes
 espaços cheios de gente de costas
 altas flores venenosas      portas por abrir
 e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício


Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluços
só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Mário Cesariny, in “Pena Capital” , Lisboa, Assírio & Alvim, 1982

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