Stella Maris Martínez. Tango da crueldade política em
três tempos
Por Joana Azevedo Viana
O i falou com a defensora-geral da Argentina, tão crítica da
ditadura de Videla como de Menem e da actual oposição
"Ninguém, ou quase ninguém, na Argentina de hoje esquece as
consequências da "ditadura sem armas" mascarada de democracia que
Carlos Menem impôs depois de eleito em 1995. Sobretudo porque a Argentina de
hoje vive na sombra das suas políticas neoliberais, tão ruins para os mais
desfavorecidos como a ditadura militar de Jorge Videla (1976-1983).
"[Menem] era uma pessoa totalmente carente de
escrúpulos morais, não tinha problema em mentir. Foi um período muito cruel,
tudo foi privatizado, veio o FMI, perderam-se todos os direitos laborais. Ele
era um sociopata. Nós lembramos sempre que uma vez ele foi visitar uma povoação
muito pobre do Norte argentino e começou a falar com as crianças sobre como,
dentro de pouco tempo, ia haver naves espaciais para as levar da Terra à Lua.
Com crianças sem comida nem roupa, que para ir à escola tinham de percorrer
quilómetros a pé ou de burro, e ele a falar-lhes de naves espaciais..."
Stella Maris Martínez é a actual defensora-geral da nação
argentina, chefe da espécie de padrinhos e madrinhas dos que não têm maneira de
garantir a sua defesa judicial. Ao contrário de Portugal, em que advogados
privados recebem avenças para defender os mais pobres em tribunal, na Argentina
o Ministério Público é, desde a reforma constitucional de 1994, uma instituição
bicéfala: a primeira cabeça é a procuradoria-geral, em tudo igual à portuguesa;
a segunda é o que chamam "defensoria".
"É como um pequeno gabinete jurídico em que os
advogados fazem carreira no Estado", explica ao i numa breve
passagem por Lisboa, ao lado do marido, o juiz criminal Luís Fernando Niño.
"A diferença é que tem um custo muito menor que o sistema português, que
paga a advogados particulares. Garantimos uma cobertura ampla de defesa penal e
apoio jurídico a todos, ricos ou pobres, que não tenham advogado particular,
porque consideramos que a obrigação do Estado de perseguir os criminosos está
ao nível da obrigação do Estado de garantir uma defesa penal a todos."
A maior parte do trabalho dos defensores públicos é
orientada para os mais indefesos, como os pobres e os indigentes, as vítimas de
violência de género ou institucional, refugiados e migrantes, a quem dão
assistência legal para que possam regularizar a sua situação, mas também
outros, incluindo civis, que hoje estão a ser julgados por crimes cometidos
durante a ditadura.
São cerca de 80% os argentinos que recorrem a este serviço.
Pelo quarto ano consecutivo o sistema foi reconhecido pela Organização de
Estados Americanos por garantir o acesso à justiça nos sectores vulneráveis da
sociedade. "É algo que se aprimorou na gestão dela", diz Luis,
olhando embeiçado para Stella, líder dos defensores públicos desde 2006.
"Se eu tivesse problemas com a justiça, recorreria à defesa pública."
No final de 2012, uma nova lei passou a ditar que todos os
defensores públicos acedam aos cargos através de concurso, lei que "surgiu
para tornar a justiça mais transparente, porque ainda temos muito nepotismo.
Dantes os advogados faziam um exame de acesso mas as notas não interessavam,
porque quem está na defensoria vai escolher os seus filhos e sobrinhos ou os
filhos e sobrinhos dos amigos. Agora, após o exame, há um sorteio, vão entrar
pessoas de todos os estratos sociais, trabalhadores menos burocráticos que os
filhos de juízes que se julgam condes com direitos da nobreza", explica
Martínez.
Esta alteração foi recebida com resistência pelos que lucram
com o estado das coisas. "Um dos meus defensores, quando a lei foi
aprovada e eu lhe disse que agora não se selecciona ninguém, disse-me: 'Se eles
roubarem o expediente, a culpa vai ser sua...' É a ideia que prolifera na
justiça argentina: filho de juiz não rouba, só filho de padeiro. É uma ideia
profundamente antidemocrática, a justiça não se oxigena."
Reforma democrática Dias antes do encontro com
Martínez e Niño, o governador de Buenos Aires declarou o estado de emergência
na província que alberga a capital. Isto porque, em menos de um mês, pelo menos
12 pessoas apanhadas a roubar na rua foram espancadas pela população em fúria,
em linchamentos que o casal de juristas diz estarem a ser "fomentados e
incentivados" pelos partidos da oposição, a pouco mais de um ano das
presidenciais, nas quais Cristina Kirchner não se vai recandidatar.
"É uma manobra política de um dos possíveis candidatos,
da linha do governo actual mas que pessoalmente está muito mais à direita,
Daniel Scioli [governador de Buenos Aires]. E por um outro, Sérgio Massa, que
foi chefe de gabinete da presidente e que, agora que quer ser competidor, para
se diferenciar tratou de ir buscar a ideia da insegurança."
E fê-lo "num episódio triste": há um ano e meio
que um grupo formado por todos os partidos políticos está a preparar uma
reforma do Código Penal, anteprojecto que seria debatido por esta altura no
país mas que, "por causa das eleições, é impossível, está
contaminado", explica. "Scioli está a convencer as pessoas de que com
a reforma as ruas vão ficar cheias de delinquentes", acrescenta Luis.
Por faltarem "cavalos de batalha" aos candidatos,
"a única coisa que encontram é a idade de imputabilidade criminal. Numa
espécie de confusão entre o paternalismo e a resposta punitiva, outros países
da América produziram reformas para a baixar, como eles querem na Argentina, e
agora estão desesperados... Caso do Paraguai, que baixou para os 12."
Actualmente, a idade para se ser julgado como adulto no país
é 16, mas Scioli, Massa e o seu coro político da ala mais conservadora do
movimento peronista querem que se fixe nos 14, voltando ao tempo da ditadura.
"Eles acreditam que obtêm crédito para a sua versão com comportamentos
irracionais como os linchamentos, dizem que se libertarmos as crianças e
procurarmos outras soluções e alternativas, que passem por políticas sociais e
não por prender menores, as crianças vão ser mortas na rua. É tudo
absurdo."
Tão absurdo como a sentença ditada pelo Supremo Tribunal
"após a câmara de cassação ter dito que não se pode privar as crianças da
sua liberdade e que mandá-las para instituições, ao contrário do que dizem
muitos juízes, não é uma forma de as proteger". Em vez de seguir a ordem
para libertar menores de 16 anos encarcerados, o Supremo "ditou uma
sentença terrível, dizendo que se as crianças fossem libertadas era provável
que a polícia as matasse. É isto mesmo que se lê na sentença!"
Adultos à força Como defensora-geral, e apesar de ter
o Estado como "patrão", Martínez tem o poder de litigar contra a
Argentina no Tribunal Interamericano de Direitos Humanos e noutras instituições
internacionais. Esse poder tem--no exercido precisamente para defender menores.
"O ano passado ganhei um caso contra a Argentina porque houve juízes que
impuseram prisão perpétua a dois menores. E agora esta ideia de baixar a idade
de imputabilidade é absurda, até porque os crimes graves cometidos por menores
são mínimos, irrelevantes. Só que quando um jovem comete um desses crimes isso
é aumentado política e mediaticamente. Como a campanha da insegurança, é mais
mediática que real."
O actual cenário, de inflação a subir em flecha, que na
quinta-feira levou à paralisação da função pública em greve geral, e com
discursos políticos que "injectam violência na sociedade", é uma
receita para o desastre: uma das 12 pessoas linchadas nas últimas semanas
morreu e a ideia generalizada de insegurança está a levar a que muitas que não cometeram
qualquer crime sejam também espancadas. Matar antes de ser morto.
"Olhe o que se passou no outro dia: duas pessoas que
iam de moto tentaram roubar uma senhora e fugiram. Muita gente começou a
correr, mas perdeu-os de vista e capturaram outro casal, os dois de pele
escura, e deram-lhes uma tareia. Quando a vítima chegou lá disse: 'Mas não
foram eles!' Foi por causa da pele deles. Isto é tão grave....", diz
Martínez, de costas curvadas por 40 anos de casos destes, mas com a garra de
quem não teme falar das coisas como são.
Para a defensora-geral, o que falta no debate público é
assumir que, "hoje, os jovens são filhos do neoliberalismo e os seus pais
filhos ou do neoliberalismo ou da ditadura". Pedimos-lhe uma explicação,
ao que aponta para os pés do jovem fotógrafo: "Como se chama isto?"
"Ténis." "Por exemplo há uma obsessão com ténis", diz.
"E com iPhones, todo o tipo de objectos", acrescenta Luis. De volta a
Stella: "É muito comum essas crianças roubarem roupa, porque a mensagem
[de Menem e do sucessor Fernando de La Rua] foi muito dura: 'Para que valhas
alguma coisa, tens de ter isto e aquilo. Só vale como pessoa aquele que tem
estes objectos'. Foram dez, doze anos desta mensagem..."
Hoje a Argentina parece encaminhar--se para a terceira vaga
de políticas que viram a cara aos direitos mais básicos do ser humano, é o que
parece crer a advogada. "Houve dois períodos na nossa história que foram
muito destinados a quebrar a coesão social, o primeiro a ditadura, o segundo
com Menem. A mensagem era que todos são inimigos, a solidariedade é uma mera
palavra, a ideia proliferada de que 'Eu não tenho de olhar para o lado, não
tenho de ajudar o outro, se as pessoas são pobres é porque não sabem melhor ou
não querem ser ricas ou não se sacrificam...'"
Em plena recuperação dos laços e da justiça social, a
contaminação dos debates públicos pelos interesses políticos parece estar a
lançar os argentinos para a terceira vaga de crueldade política, num país que
tem a mais alta taxa de roubos da América do Sul, onde se usa e abusa da prisão
preventiva (mais de 60% da população prisional da Argentina não foi julgada nem
condenada), em que as sentenças são dadas como "forma de vingança" e
não para "ajudar as pessoas a reconstruírem a vida e a não voltarem ao
crime". Onde, para fugirem ao pesadelo da prisão, as pessoas inocentes
aceitam assinar documentos dando--se como culpadas para poderem ser libertadas.
"Fui eu o primeiro juiz a declarar a
inconstitucionalidade dessa medida, porque, a par do abuso da prisão
preventiva, fazê-las assinar isto é extorquir as pessoas!", diz Luis,
antes de Stella explicar que, "quando nós, defensores, vamos falar com
elas e lhes dizemos que podemos defendê-las em julgamento e elas nos pedem
garantias de que vão ser declaradas inocentes, nós não podemos dar essa
garantia, mas sabemos - e dizemos - que têm boas hipóteses, e depois elas
perguntam quando vai ser o julgamento, e na Argentina os julgamentos são muito
longos, a justiça é lenta, então dizemos que não sabemos e a pessoa diz: 'Não.
Eu não sei se amanhã vou viver, não sei se amanhã não me matam na prisão,
prefiro assinar qualquer coisa e sair em liberdade...'"
Vem assim mesmo de rajada, como todas as críticas que a
advogada desbobina, às vezes atropelando-se, nunca incoerentemente. "É uma
barbaridade. E este projecto interpartidário de reforma [do Código Penal], que
é bom e sério, é só mais uma vítima da ausência de debate sério."
Sem saber que faz mais uma comparação com Portugal, remata o
assunto sem optimismo: "O problema é que no meu país é impossível falar
tranquilamente a partir do terceiro ano de governação. Neste momento só nos
resta esperar, tentar travar reacções mais ruins e acalmar. Agora não há
racionalidade e depois das eleições... não sabemos. Não sabemos quem vai ser
eleito, tão-pouco sabemos o que se vai passar a seguir. Só nos resta
esperar." Joana Azevedo Viana, publicado
em 12 Abr 2014 - 05:00, Jornal i
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