"Abril e tempos diferentes"
Por Fernando Guimarães,
"Manuel Alegre acaba de publicar uma antologia de poemas seus que “falam de Abril”. Trata-se de uma poesia de intervenção, pois nela há uma referência ao “vento revoltado” que pode passar pelo ano de 1383, no tempo do Mestre de Avis que é evocado num dos poemas, ou, agora com maior incidência e força, pela revolução de 1974.
Talvez esta palavra revolução possa remeter-nos para a geração de 70, se nos lembrarmos que Antero de Quental escreveu para acompanhar as suas Odes Modernas um breve ensaio ou nota “sobre a missão revolucionária da poesia”, não se esquecendo de aí se referir a Proudhon. No entanto esta geração, muito sensível a um ideal humanista, nunca fez uma verdadeira distinção entre política e ética; Antero declara mesmo que o seu livro pretende “dar à poesia contemporânea a cor moral”.
Uma recidiva dessa intenção de natureza interventiva, agora com um acento político mais carregado que levou a falar-se e, “novo humanismo”, surgirá na passagem dos anos 30 para os 40 com a geração neorrealista. Com ela a referência a Proudhon deslocar-se-á, sob uma forma que, nessa altura, tinha de ser mais ou menos secreta ou disfarçada, à dialéctica marxista.
Na poesia de Manuel Alegre ocorre, como não podia deixar de ser porque os tempos são diferentes, um desvio em relação a estas duas movimentações. Este desvio principia a desenhar-se e acaba por ganhar corpo nos anos 50 e 60, nomeadamente com Egito Gonçalves, que soube trazer para a sua poesia certo imaginário surrealizante sustentado metaforicamente, com Vítor Matos e Sá, cuja poesia assume um sentido humanista, o qual se amplia também através de um exigente desenvolvimento metafórico no seu livro de 1962 “O Amor Vigilante e, finalmente, com os poetas reunidos em Poesia 61 que, ao aludirem – sobretudo se tivermos em vista dois livros, Barcas Novas de Fiama Hasse Pais Brandão e Aves de Gastão Cruz – a um “tempo de armas”, se afastam dessa expressividade metafórica na medida em que procuram atingir, como dirá Gastão Cruz, “uma consciência linguística vigilante” centrada na imagem ou, mesmo, na palavra que tende a isolar-se sob a forma de signo.
Tudo isto não podia deixar de se fazer sentir com mais força já no decorrer dos anos 60, quando, entre 1963 e 1965, saem numa colecção de poesia intitulada “Cancioneiro Vértice” (publicado pela revista Vértice) três livros de Fernando Assis Pacheco, José Carlos de Vasconcelos e Manuel Alegre. O de Manuel Alegre, intitulado Praça da Canção , sai precisamente em 1965.
Podemos desde já dizer que a poesia de Manuel Alegre procura ir ao encontro do canto. Repare-se no título do seu primeiro livro que o segundo confirma: O Canto e as Armas . Ou leia-se esta passagem de um poema seu: “Rasga os silêncios e canta / vestida de terra e lua / solta o vento na garganta / desce à rua.”
Eduardo Lourenço fala mesmo de “nostalgia da epopeia”. Ora, ao longo dos seus livros de poesia, Manuel Alegre traça uma narrativa que, todavia, não deixa de se orientar para um sentido poético. Daí decorre uma disponibilidade de sentidos que advém de um reiterado e, ao mesmo tempo, inventivo recurso não só à imagem mas também à metáfora. Cria-se assim nos seus poemas uma situação que seria a da ambiguidade? Efectivamente isso não acontece, porque acaba por prevalecer o épos, a narrativa.
As epopeias, a poesia épica, desde a Ilíada a Os Lusíadas , não raro nos apresentam a narrativa da luta, dos combates. Por isso se fala na poesia de Manuel Alegre em “Povo levantado”, em “ver florir as armas”, no “herói que não se rende”. Mas, em última análise, este sentido de luta procura uma “pureza inicial”, a qual dir-se-ia que persegue ou se confunde com o “poemarma” – sendo este o título de uma das suas poesias – ou as “armas harpas”, como se lê neste belo poema: “Quem poderá domar os cavalos do vento / quem poderá domar este tropel / do pensamento / à flor da pele? // Quem poderá calar o sino triste / que diz por dentro do que não se diz / a fúria em riste / do meu país? // Quem poderá probir estas letras de chuva / que gota a gota escrevem nas vidraças / pátria viúva / a dor que passa? // Quem poderá prender os dedos farpas / que dentro da canção fazem das brisas / as armas harpas / que são precisas?”
Há um aspecto importante que se revela na poesia de Manuel Alegre. Ele consiste naquelas derivas expressivas próprias de um envolvimento metafórico, mesmo quando, por vezes, acaba por as desconstruir, como ocorre na tal poesia “Poemarma”, que se pode ler no presente livro e em que se retoma um certo imaginário surrealista. Eis o seu início: “Que o poema tenha rodas motores alavancas / que seja máquina espectáculo cinema. / Que diga à estátua: sai do caminho que atravancas / Que seja um autocarro em forma de poema.”
País de Abril ajuda-nos a ver como se procurou ir ao encontro de uma consciência expressiva vigilante que, no entanto, se tornou diferente da “consciência linguística vigilante” que nos anos 60, como se disse atrás, foi tão valorizada. A poesia afinal pode sempre encontrar tempos que são outros…" Fernando Guimarães, in Crónica de Poesia, JL(2/04/2014)
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