Fazer um bom uso dos clássicos
Por Eugénio Lisboa
"Os clássicos
são um descanso: pode-se pagar-lhes o tributo que lhes é devido, mesmo sem os
ter lido. Se dissermos que Homero é grande, não corremos o risco de nos virem
perguntar se, por acaso, já o lemos. Ele é grande, por definição, porque é um
clássico, e continua a ser grande, quer o tenhamos lido quer não. A nossa
opinião sobre ele é completamente irrelevante. Se por um bambúrrio qualquer, eu
desse com um verso coxo, na Odisseia,
ninguém me prestaria atenção. Homero é Homero e está tudo dito: quem devia
estar coxo era eu...
Como digo, é
um descanso. Isto mesmo tem sido reconhecido, com alguma maldade, por alguns
escritores anglo-saxónicos (esses eternos questionadores e desmancha-prazeres,
que, mesmo quando aplaudem, não se deixam entusiasmar!) Chesterton, por
exemplo, no seu ensaio “Tom Jones and Morality”, observa, com desenvoltura
escarninha: “Um grande clássico é um homem de quem se pode fazer o elogio sem o
ter lido.” E Mark Twain, depois de ter dito o mesmo, quase palavra por palavra,
em “Pudd’nhead Wilson”, agravou o ultraje, ao observar: “Um clássico é algo que
toda a gente quer ter lido e ninguém quer ler” (“The Disapearance of
Literature”).
Sim, sejamos
sinceros (nada de batota): tirando Vasco Graça Moura e uns especialistas
universitários, quem, entre nós, leu A
Divina Comédia, do princípio ao fim?
V. diz que leu? Mentiroso!
A propósito
de Dante, li, num livro de Paul Morand, sobre a morte, uma história deliciosa e
saboreadamente afrontosa. Conta-se que, estando Lope de Veja em “artigo de
morte”, pediu que lhe levassem ao leito da dita, não um padre mas, antes, um
médico. Chegado este, o grande dramaturgo e poeta explicou o seu problema:
queria saber, tão exactamente quanto possível, o tempo que tinha de vida. É que
tinha uma terrível confissão a fazer, mas esta era tão medonha, tão descomunal,
que só teria ânimo de a fazer, se morresse logo a seguir. Não suportava a ideia
de viver muito, depois de confessar aquela vergonha. O médico compreendeu a
situação e fez um exame meticuloso ao moribundo, no final do qual lhe disse
que, se tinha algo de que se queria aliviar, o melhor era fazê-lo depressa,
porque o fio da vida estava mesmo a quebrar-se... Lope de Veja deu então um
suspiro de alívio e sussurrou: “O que eu quero confessar é que acho o Dante tão
chato!” Dito o que, cheio de sorte, morreu.
Podem
tirar-se desta história várias conclusões, conforme as várias escolas de
pensamento. Eu tiro, sobretudo, uma: a opressão intelectual que exerce sobre as
pessoas a glória pesada dos grandes clássicos é tal, que nem “um monstro da
natureza” como Lope se atreveu a dar, em tempo útil, uma opinião franca sobre
um clássico que supinamente o chateava!
Na sua segurança inabalável, os clássicos confortam mas também aterram! “Que
sentido de segurança, num velho livro que o Tempo criticou por nós!”, suspirava
James Russell Lowell, o poeta romântico, diplomata e abolicionista americano. É
tão bom não termos que pensar nem afrontar opiniões contrárias... Repito: é um
descanso.
A verdade,
porém, é que toda esta indiscutida veneração, por mais que tenha a bênção do
Tempo, me parece intelectualmente pouco saudável. Eu tenho todo o direito de
achar, como achava um grande escritor francês, que a Ilíada é pueril (ele achava-a “idiota”). E não há razão para
alaridos: tenhamos, sobre o assunto, uma sóbria e salutar conversa, eis tudo.
Nisto, subscrevo, de todo o coração, o conselho do velho Lord Chesterfield,
numa das suas cartas ao filho: “Fala dos modernos, sem desprezo, e dos antigos,
sem idolatria; julga-os todos pelo mérito e não pela idade” (sempre o bom senso
terráqueo e irritante destes ingleses, para quem tudo é sempre questionável –
como na ciência!)
A
inquestionada veneração pelo “clássico” pode até ter razões menos nobres: o seu
“estabelecimento” definitivo assegura a carreira de muita gente, mesmo que
alguns não disponham dos verdadeiros recursos necessários a uma fruição
autêntica do que faz o real valor daquele. Os irmãos Goncourt, por exemplo,
numa das “entradas” desenvoltas do seu Journal,
não estiveram com papas na língua: “A Antiguidade foi criada para proporcionar
aos professores o seu pão com manteiga.”
Há, nisto,
admito, algum exagero. Mas há – e é, repito, intoleravelmente opressivo – um
equivalente excesso, na admiração acrítica e beócia de um clássico, só porque,
oficialmente, o é.
Dito o que
fica para trás, para desatravancar o que se segue de qualquer aura de veneração
beatífica, não custa aceitar que os clássicos, quando são bons, nos fazem boa
serventia. Há até um bom livro a escrever sobre “o bom uso dos clássicos”. Em
períodos difíceis da minha vida, o filósofo Vauvenargues ou, por exemplo,
Schopenhauer, ajudaram-me a vencer a crise. No seu seminal ensaio sobre Goethe
(“desde dientro”), o imprescindível Ortega y Gasset observa: “Só nos resta uma
maneira de salvar um clássico: desistirmos de venerá-lo e usarmo-lo para a
nossa própria salvação.” As conversas do autor do Fausto com Eckerman “salvaram-me”, de uma vez que estive à beira do
abismo.
Tudo isto, a
propósito de uma leitura que tenho andado a fazer de um clássico: os contos dos
Irmãos Grimm. Aproveito para saudar a bela e exaustiva edição integral dos Contos da Infância e do Lar, com
coordenação científica de Francisco Vaz da Silva e tradução, introdução e notas
de Teresa Aiga Bairos. É esta que tenho andado a ler, devagar e muito mastigadamente,
como gosto de fazer. Recomendo-a do modo mais enfático. No segundo volume,
entre os 91 contos que comporta, escolho um para que alguém – não eu – possa
fazer dele um bom uso. Por outras palavras, para que possa, salvando-se,
salvá-lo (ou, salvando-o, salvar-se)... O conto intitula-se “O velho avô e o
neto” e ocupa apenas três quartos de uma página (e mais uma “Nota” de página e
meia).É curtíssimo, mas um forte teor de sabedoria fecunda pode acolher-se em
modesto espaço... A diarreia verbal quase nunca é o melhor veículo.
No continho
em questão, fala-se de “um homem muito, muito velho que ficou com os olhos
turvos e os ouvidos surdos e os joelhos tremelicantes.” Dou a palavra aos
Irmãos Grimm, para não estar a fazer paráfrases desnecessárias: “Quando estava
sentado à mesa, mal conseguia segurar a colher e espalhava a sopa na toalha e
deixava-a cair da boca. O filho e a nora tinham nojo dele e assim o velho avô
acabou por ter de se sentar num canto atrás do fogão, e eles davam-lhe a comida
numa tigelinha de barro e nem sequer a enchiam. E ele olhava tristemente para a
mesa e vinham-lhe lágrimas aos olhos. Uma vez, as suas mãos tremelicantes não conseguiram
segurar na tigelinha e ela caíu ao chão e partiu-se. A jovem mulher
admoestou-o, mas ele não disse nada e apenas suspirou. Ela comprou-lhe então
uma tigelinha de madeira por dois tostões e era dela que ele tinha que comer.
Estando ali sentados, o pequeno neto começou a reunir uns pedacinhos de madeira
do chão. «O que estás a fazer?», perguntou-lhe o pai. «Estou a fazer uma
tigelita», respondeu o filho, «para dar de comer ao pai e à mãe quando for
crescido». O homem e a mulher entreolharam-se por um momento e depois desataram
a chorar.”
Na muito
documentada “Nota”, que complementa o conto, os organizadores informam-nos de
duas coisas: primeiro, da imensa variedade de versões que há, desta mesma
história, o que testemunha a profundidade da ferida que deixou no imaginário
universal; segundo, que já o poeta medieval Walther (von der Vogelweide) num
seu poema, meditou sobre este tema dilacerante, em versos assim: Os jovens afastaram os velhos / E agora
achincalham os velhos. / Isto não fica esquecido / Até a vossa juventude ser esquecida: / O que
aos velhos fizerdes os vossos jovens vo-lo farão.
Sugiro, pois, ao Círculo de Leitores que ofereça ao ministro Victor Gaspar e ao Primeiro Ministro Passos Coelho exemplares destes admiráveis contos de Grimm, à laia de pepita de sabedoria que ajude a evitar que, um dia, daqui a não muitos anos, eles tenham que “desatar a chorar”. O que aos velhos reformados e à velha e estimada Constituição eles andam repetidamente a fazer, agora, os filhos deles lho farão a eles também. O que eles têm congeminado e continuam a congeminar ultrapassa as marcas do decentemente aceitável. Mas cá se fazem, cá se pagam, como dizem os clássicos, quando acertam – e acertam um número assustador de vezes! " Eugénio Lisboa, em crónica publicada no Jornal de Letras.
Sugiro, pois, ao Círculo de Leitores que ofereça ao ministro Victor Gaspar e ao Primeiro Ministro Passos Coelho exemplares destes admiráveis contos de Grimm, à laia de pepita de sabedoria que ajude a evitar que, um dia, daqui a não muitos anos, eles tenham que “desatar a chorar”. O que aos velhos reformados e à velha e estimada Constituição eles andam repetidamente a fazer, agora, os filhos deles lho farão a eles também. O que eles têm congeminado e continuam a congeminar ultrapassa as marcas do decentemente aceitável. Mas cá se fazem, cá se pagam, como dizem os clássicos, quando acertam – e acertam um número assustador de vezes! " Eugénio Lisboa, em crónica publicada no Jornal de Letras.
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