Crónicas
da Infâmia
2 – Do ( Des)amor
Portugal foi sempre o meu
país e a minha pátria. Todavia, creio
que país e pátria já não são coincidentes, nem tão pouco complementares. Não
sei se alguém o afirmou. Digo-o, apenas
porque senti.
Um país preenche e ilustra um mapa. Uma pátria habita e adorna um coração.
A guerra começa quando se
pretende apô-los e se descobre que essa
pátria não veste aquele país e esse país não tem corpo para aquela pátria.
Ficar sem pátria é,então, ter um coração apátrida. São os laços que se
quebram num coração que passa a sobreviver sem essas amarras.
Assim ficou o meu coração.
Apátrida de um país que me dá a nacionalidade. Apátrida de um país que me
inclui na população residente. Apátrida de um país que existe ausente de mim. E
nessa ausência, tento descobrir o que fez deste Portugal um país de tantas pátrias expatriado. Confirmo,
atónita, que foi também uma outra
ausência. A maior talvez, porque é uma ausência vital - a ausência do amor. Sem
ele, a infâmia vinga.
O amor, sentimento exigente,
volatilizou-se adquirindo uma forma
estranha que enviesa os dias e as gentes deste país. Arredou-se, em degeneração profunda, dando lugar ao
(des)amor.
(Des)amor que se implantou sem
que fosse regulamentado, exigido, recomendado.
(Des)amor que se infiltrou
sem pedir licença, mas entrando , invadindo, espalhando-se , qual erva daninha
que brota sem ser semeada.
(Des)amor que reina, que
dispõe, que exige, que quebra, que anula, que separa, que mata.
(Des)amor, a nova infâmia deste canhestro e ancestral país.
As loas que, ao longo do
tempo, os poetas foram tecendo ao amor,
jazem, agora, nas obras maiores de
Camões, de Shakespeare ,de Neruda ou de tantos
outros grandes poetas.
E se o (des)amor
grassa e prospera pelo mundo, porquê invocar a infâmia?
Impossível não invocar a
infâmia, quando se entra num Hospital apinhado de doentes nos corredores da
urgência.
Impossível não invocar a
infâmia, quando se não tem pão para matar a fome de um filho.
Impossível não invocar a
infâmia, quando se abandonam quatrocentos mil desempregados à sorte de uma
anunciada penúria extrema.
Impossível não invocar a
infâmia, quando se coloca um pai, uma mãe, um avô, uma avó num Lar de idosos. Nesta
situação, não se invoca apenas a infâmia,
confirma-se a dolosa evidência do
(des)amor. Basta entrar nesses Lares, áridos ou confortáveis, para verificar
que são os armazéns dos idosos. A dor magoa-nos sem reserva e sem
defesa. Perante nós, desfia–se, em terrível surpresa, o verdadeiro estiolamento
da família. São os pais , os avós,
abandonados, espoliados por filhos e por netos que foram desejados e
amados na teia dos laços familiares, no
seio de uma família que todos incluía. E ei-los , empurrados para o
último e mais confrangente lugar da degradação do amor: a sepultura dos vivos.
A finitude da vida
apresenta-se na sua forma mais vulnerável e mais trágica . Roubar o tecto de
uma vida inteira para um chão que não se
ajusta aos pés gastos por outros soalhos é invocar a morte e exercer uma despudorada violência em nome de uma solução sem qualquer outra
alternativa.
Os lares deste país estão
cheios de idosos, esquecidos, rejeitados, prostrados a um destino que não
escolheram. O olhar de cada um perde-se na memória de um tempo que já não
existe e de outro que se estiola. Feriu-me, logo que entrei num Lar.
No último que visitei, fui
ao encontro de uma das mulheres mais notáveis do combate ao antigo regime
fascista: Cândida Ventura.
Mulher corajosa, mulher
histórica com um passado relevante e de referência na luta pela defesa da
Liberdade. Uma das primeiras mulheres comunistas a atingir o topo da hierarquia
marxista. Presa , exilada , viveu anos de clandestinidade ao longo da sua
militância partidária. Ei-la , aos 95 anos, clandestina, confinada e esquecida num Lar.
Inteligente, activa , em
pleno uso de todas as suas faculdades
mentais, rejeita viver emparedada num Lar. Retirá-la , é- me impossível.
Denunciar esta atrocidade é minha obrigação.
Cândida
Ventura está viva, mas impossibilitada de viver a sua própria
vida. Como ela , vivem milhares de idosos deste país.
País que deixou o meu
coração apátrida.
Haverá infâmia maior?
Praia da
Rocha, 4 de Fevereiro de 2014
Maria José Vieira de Sousa
Sem comentários:
Enviar um comentário