quarta-feira, 17 de julho de 2024

Um mundo para mim II


Chalets da Praia da Polana, Lourenço Marques

Começar (cont.)
por Eugénio Lisboa
“Lembro‑me, lembro‑me...de um mês que passámos na praia, num daqueles chalets baratos, de aluguer, logo no começo da estrada que levava ao Palmar. O meu irmão Fernando fora operado e o médico aconselhara um mês de praia, para recuperar. Como os casinhotos pertenciam à Câmara, o preço era baixíssimo e a minha mãe lá faria a ginástica financeira necessária para aguentar o barco a flutuar (mal). O meu pai ia todos os dias aos Correios e voltava à noite (ele nunca soube o que fossem férias e rosnava quando os seus subordinados as pediam). A vida no pequeno chalet era também uma experiência: não havia quartos, dormíamos todos no chão e gostávamos! Passávamos o dia na praia e grande parte dele dentro de água. Haveria tubarões? Mesmo que houvesse, achávamos que se não viriam meter connosco. Comíamos com um apetite voraz, depois de passeios pelo Palmar, que era, para nós, uma espécie de reinvenção do Paraíso. O oceano atraia‑nos e, ao mesmo tempo, amedrontava‑nos. Certo dia, de maré viva, ficámos dentro do chalet, transidos, perante aquela ameaça monstruosa, mesmo ali em frente, a dois passos de nós. E acabaria por chegar‑nos a notícia de dois irmãos que se tinham metido num barco, para irem à pesca, a cavalo naquelas ondas gigantescas. Acabaram devorados por uma onda maligna e monstruosa. O pavor da notícia quase destruiu a magia das férias. De repente, a praia, o chalet, a alegria das refeições, a vitalidade dos corpos – tudo se iluminou de uma luz sinistra. Nada era seguro, nada duraria, éramos umas pobres jangadas mal aviadas e vulneráveis à violência infame do oceano encolerizado. A vida aconchegada com a família e os amigos era boa mas estava ameaçada.
O poeta americano Carl Sandburg diz, do mar, uma coisa terrível, que eu, naquela altura, não conhecia, mas que exprime muito bem aquilo que então sentia: “O mar”, dizia ele, “fala uma língua que as pessoas bem educadas não repetem. É um calão de colossal hiena, sem respeito por ninguém.” Olhava‑se para aquelas ondas gigantes e percebia‑se que, com aquilo, não havia diálogo possível. Nem pedido humilde nem oração (para os crentes) que pudesse valer. Aquilo saía para fora da nossa compreensão. Tinha aparecido de repente, sem aviso, uma massa gigantesca e boçal, feroz e impiedosa. Vinha de propósito para nos desarrumar certezas e, desapiedadamente, destruir o prazer de existir. O Índico zangado e de dimensões obscenas foi uma das mais cruéis revelações da minha infância. Quando aquilo acabou, dirigi‑me à praia, tacteando a areia a medo e a olhar o mar com ar desconfiado: e se aquilo, inesperadamente, se zangasse de novo? E eu nem tivesse tempo de fugir? Perdera, de todo, a confiança.
Outra experiência, ainda durante o período do Largo Albasini, contribuiu para reforçar a intuição que já tivera da nossa vulnerabilidade e efemeridade. Como disse, a nossa casa situava‑se a um nível mais baixo que o do Largo e das ruas. A suster as terras, tinham construído um muro de betão: entre o nível mais alto e o nível mais baixo, junto ao muro, havia um desnível de um pouco mais de um metro. Um dia, encontrava‑me eu e os meus irmãos sentados em cima do muro, a vermos a banda passar, quando, subitamente, vindo da Latino Coelho, em direcção ao Largo, vimos um motociclista, conduzindo a uma velocidade desvairada. Entrou no Largo, descontrolado, e, para nosso pavor, vimo‑lo dirigir‑se para cima de nós.Mal tivemos tempo para saltar para o nível mais baixo e vê‑lo passar por cima das nossas cabeças, indo‑se estatelar contra uma pequena árvore, que logo ficou cheia de sangue. Escapáramos por um triz, mas podíamos perfeitamente não ter escapado. A nossa infalibilidade de seres protegidos saía dali completamente esfacelada. Confirmávamos, mais uma vez, que a vida afinal era uma lotaria e não era garantido que nos saísse sempre o bilhete premiado...”
Eugénio Lisboa, in “Acta Est Fabula Memórias – I  - Lourenço Marques (1930- 1947)” , Opera Omnia Editora, Novembro de 2012 , pp. 34-35

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