Mar, rio e céu
por Raúl Brandão "É que tudo, até as coisas, num dado momento, foram para mim
seres de uma vida extraordinária; um ser esplêndido, o rio, a que me entrego
dentro de quatro tábuas; o cabedelo cheio de mistério, onde ponho os pés com
terror; o largo, o profundo mar, que me levou alguns dos meus, constante
preocupação dessa gente e que de quando em quando os mata à minha vista. As
figuras em sonhos tornam-se a debruçar para mim, estendendo-me outra vez as
mãos... E é sonhando também que me recordo de certas coisas sem importância: do
jeito que era preciso dar às portas manhosas, para as poder abrir, de uma
expressão de que me separam léguas de esquecimento, de pequenos nadas que duram
um segundo, um olhar ou um sorriso molhado de ternura. Acontece que às vezes
acordo tendo diante de mim intacto um rosto consumido pela terra. Os meus
mortos estão cada vez mais vivos. É saudade, mas não é só saudade. Isto vem de
muito fundo. Os meus actos são guiados por mãos desaparecidas e minha
convivência é com fantasmas. Este cheiro de alcatrão vou levá-lo nas narinas
para a cova; esta paisagem – mar, rio e céu – entranhou-se-me na alma, não como
paisagem mas como sentimento. Ressuscito as horas que perdi debruçado no velho
muro e sinto o grão de pedra onde punha as mãos quando contemplava a engenhoca
do meu vizinho António Luís."
Raúl Brandão, in Memórias, Aillaud Lisboa Bertrand
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