Começar (cont.)
por Eugénio Lisboa
“Lembro‑me, lembro‑me...de um mês que passámos na praia, num daqueles chalets
baratos, de aluguer, logo no começo da estrada que levava ao Palmar. O meu
irmão Fernando fora operado e o médico aconselhara um mês de praia, para
recuperar. Como os casinhotos pertenciam à Câmara, o preço era baixíssimo e a
minha mãe lá faria a ginástica financeira
necessária para aguentar o barco a flutuar (mal). O meu pai ia todos os dias
aos Correios e voltava à noite (ele nunca soube o que fossem férias e rosnava
quando os seus subordinados as pediam). A vida no pequeno chalet era
também uma experiência: não havia quartos, dormíamos todos no chão e gostávamos!
Passávamos o dia na praia e grande parte dele dentro de água. Haveria tubarões?
Mesmo que houvesse, achávamos que se não viriam meter connosco. Comíamos
com um apetite voraz, depois de passeios pelo Palmar, que era, para nós, uma
espécie de reinvenção do Paraíso. O oceano atraia‑nos e, ao mesmo
tempo, amedrontava‑nos. Certo dia, de
maré viva, ficámos dentro do chalet, transidos, perante aquela ameaça monstruosa,
mesmo ali em frente, a dois passos de nós. E acabaria por chegar‑nos a notícia de dois irmãos que se tinham metido num
barco, para irem à pesca, a cavalo naquelas ondas gigantescas. Acabaram
devorados por uma onda maligna e monstruosa. O pavor da notícia quase destruiu
a magia das férias. De repente, a praia, o chalet, a alegria das
refeições, a vitalidade dos corpos – tudo se iluminou de uma luz sinistra. Nada
era seguro, nada duraria, éramos umas pobres jangadas mal aviadas e vulneráveis
à violência infame do oceano encolerizado. A vida aconchegada com a família e
os amigos era boa mas estava ameaçada.
Sem comentários:
Enviar um comentário