terça-feira, 30 de abril de 2024

O calembur de Artur Corvelo


O CALEMBUR DE ARTUR CORVELO
(A propósito de críticos de vistas curtas)
por Eugénio Lisboa
"Uma das criaturas mais irritantes que habita debaixo da Via Láctea é o chato “recta-pronúncia”, isto é, o indivíduo que, posto na frente do poema mais sublime, do romance mais empolgante ou da construção filosófica mais esplendorosa, em nada repara a não ser num insignificante deslize gramatical ou numa distraída redundância. Em Lourenço Marques, onde vivi, havia uma dessas criaturas, excelente pessoa, de resto, de uma inocência de criança que ainda não conheceu os males do mundo, bondoso, afável, mas chato como a potassa. Diante de um livro qualquer que nos tivesse deslumbrado, lá se punha ele, atormentado, a caçar deslizes, incongruências, maneiras inaceitáveis de dizer: totalmente alheio ao miolo do livro, à sua riqueza estética e de conteúdo, à sua frescura de visão, à magistral manipulação da língua ou à destreza narrativa. Mas um dia, estávamos nós – um grupo que se reunia, com frequência, no Café Nicola, na Praça 7 de Março de Lourenço Marques – em amena conversa, dizendo todo o mal que podíamos do Estado Novo, eis que nos aparece o Camilo Sequeira, o tal purista da língua portuguesa, empunhando um “paperback” inglês, que acontecia ser um romance indiano, muito elogiado, na contracapa, pelo egrégio Graham Greene. Já não era pequena surpresa ver o inocente notário andar a ler um romance de um autor indiano, mas o mais surpreendente era ouvi-lo dizer que o livro era de um interesse enorme. Desfazia-se, literalmente, em encómios ao enorme prazer que lhe trouxera a leitura daquele livro exótico. Ficámos todos perplexos e um de nós não se conteve que não perguntasse: “Mas, ó Camilo Sequeira, o que é que tanto o cativou nesse livro?” A resposta veio inundada de sorrisos embevecidos: “É que, imaginem Vocês, eles, lá na Índia, dão exactamente os mesmos erros que nós, a escreverem!”
Esta obsessão com uma pequena suposta verruga perdida na vasta e compacta massa literária de uma obra, faz-me recordar uma das cenas mais comicamente sinistras do romance de Eça, A CAPITAL. Refiro-me ao jantar destinado a assinalar, num hotel de Lisboa, o aparecimento de um livro de poesia, a estreia poética de Artur Corvelo, que descera, da província, à capital, em busca de glória. Porém, quando esperava ouvir da boca daqueles “intelectuais” palavras alevantadas e sublimes sobre o seu livro, tudo quanto ouviu, repetidamente, foram elogios hilariantes a um calembur que um dos celebrantes descobrira no seu livro. E, durante todo o jantar, não se falou em mais nada a não ser no delicioso calembur de Corvelo.
Ora este é o modelo de crítica que praticam por aí alguns Camilos Sequeiras da Praça Literária lisboeta. Incapazes, por falta de verdadeira cultura, de meterem a mão na massa profunda dos textos, esgatanham-nos, na busca desesperada de um calembur, que os ajude a fingirem que estão a pairar por cima da obra que vandalizam sem pudor. Encontrar calembur ou não encontrar calembur num texto que os ultrapassa, eis a questão. E esta gente tem seguidores! E esta gente pontifica! E esta gente existe e deixa descendência! Esta gente descobriu uma forma preguiçosa, mas rendosa de viver e operar: rebuscar, até encontrar, o calembur que lhes garanta o pão e a fama! O calembur de Corvelo é a boia de salvação de quem, diante de um texto, não sabe o que dizer.
De propósito, não vou aqui dizer o nome do mais representativo destes críticos calembúricos: ele sabe a quem me refiro. Mas este meu texto é também uma safada armadilha: se ele reage, é porque enfiou a carapuça. Se não reage, é porque é cobarde. O diabo que escolha!"
                                                        30.03.2021
Eugénio Lisboa

P. S. – Aproveito para recomendar a quem  não leu o romance de Eça de que acima falo: A CAPITAL. Considero-o o mais admirável exemplo de humor negro, de toda a nossa literatura.
Um verdadeiro exercício de crueldade obstinada de um autor sobre o seu leitor. Completamente fora do alcance do crítico calembúrico.

Sem comentários:

Enviar um comentário