|
Estocolmo, Suécia |
A CONSTRUÇÃO DE UM POEMApor Eugénio Lisboa
Para Giulia Lanciani
"Em Dezembro de 1976, saí definitivamente de África,
rumo à Suécia, via Lisboa. Em África começava por essa altura o verão, quente,
espesso, húmido, envolvente e propício a uma lassidão prolongada: anunciador de
vida, sol, alegria, languidez e algum perigo. O Norte, a Escandinávia, para
onde ia e onde cheguei em princípios de Janeiro de 1977, era outro mundo: frio,
coberto, fechado – a neve tudo tapava com a sua beleza branca e anestesiante.
Saía do fulgor da vida para uma espécie de sanatório confortável, bem
organizado e vagamente entorpecedor. Saía um pouco de uma vida intensa
para uma espécie de morte agradável
porque o era sem bem o ser. O contraste foi tão violento que quase obliterou a
minha memória de tantos anos em que estivera tão feliz e tão vivo. Aquela neve branca, aquele
conforto bem arranjado, aqueles alunos bem tratados e vagamente entediados,
toda aquela ordem, todo aquele frio exterior exactamente compensado por um tão
eficaz aquecimento interior, toda aquela facilidade de ir vivendo embora vivendo pouco
– deixavam para trás, num apagamento
súbito, radical e inevitável, todo um passado de aprendizagens, aventuras,
leituras, amizades e paixões: era como se nada daquilo tudo – que era tanto –
tivesse alguma vez existido. A neve, o conforto, a calma – eu ia dizer: a
apatia – de tal modo contrastavam com os tempos de vida, calor, criação e
perigo que vinha de viver, que corria claramente o risco de me esquecer de toda uma parte importante
da minha vida. A vivência desse contraste violento e a consciência dolorosa e
forte desse iminente esquecimento desencadearam em mim uma vontade irresistível
de registar, de imediato, tudo isso: podia, eventualmente, desaparecer, em mim, dentro de mim, mas o texto
ficaria para outros. Mesmo que eu próprio, que tão fortemente o vivera, mais
tarde, ao lê-lo, já o não reconhecesse, ou o não reconhecesse com toda a força
e evidência que em mim tivera, no momento de o viver – e de o escrever.
Que forma dar-lhe?, foi a pergunta que a mim próprio
fiz. Uma carta a um amigo? Uma página de diário? Um pequeno ensaio? Um conto?
Mais ambiciosamente: um romance? Um poema? Logo se impôs, como quase
inevitável, a ideia de um poema; com a sua linguagem concentrada, intensa,
alusiva, metafórica, um pouco (mas só um pouco) enigmática, de algo que se vela
mesmo quando se desvela, opaco e transparente, provocador e sedutor. E logo me
ocorreu um personagem com quem convivera em Moçambique e que, para mim,
personificava esse mundo de “húmida, vegetal espessura” de que vinha para a
“neve que faz mal”: José Craveirinha, de quem fora (e ainda sou) amigo, com
quem conversara quase quotidianamente e sobre quem escrevera (e, na Voz de Moçambique, publicara o primeiro
texto de fundo que, sobre a sua poesia se publicou). Craveirinha seria a
referência, a imagem humana que me sustentaria na elaboração do poema e, mais
ostensivamente, aquele a quem o poema seria dedicado para que melhor se
descodificasse, no poema, o sentido um pouco secreto.
No mesmo momento em que tudo isto congeminava, lia, um
pouco ao acaso, textos de Pessoa recolhidos por David Mourão-Ferreira no livro O Rosto e as Máscaras. Muito em
particular, o poema “O último sortilégio”, de que um ou outro verso serviu,
para mim, de motor de arranque. Pessoa perturba-me, às vezes repele-me, mas
frequentemente estimula-me. Quem tem um verso (que provoca) e uma vontade
irresistível de “fixar” qualquer coisa – tem um poema. A angústia de ter de
escrever, que precede o acto de realmente escrever começou a ser rapidamente
substituída pela convicção (forte) de que o poema estava garantido. Uns versos propiciadores (ou fracções de versos) – os de
Pessoa -, uma vivência forte e quase intolerável, que se não podia perder nas
fragilidades da memória, uma referência aglutinadora e simbólica (José
Craveirinha), eis os principais fermentos de que dispunha para consumar a
alquimia do poema. Enquanto o não realizasse não teria paz. A neve de um lado a
e a verde espessura do outro criavam um diferencial propiciador que o medo do
esquecimento (obliteração) ajudava a mover-se em direcção ao poema. Começava a
sentir-me melhor, por outras
palavras, quase indiscretas, começava a sentir que estava quase salvo. Certas palavras começaram a
impor-se: “neve”, “mineral”, “gelado”, para simbolizarem o exílio, a emigração
arrefecedora que me caíra em sorte; ou, do outro lado, a “chuva” que
“fecundava” a “terra de ouro” e propiciava a “vegetal espessura” de um mundo
que ficara para trás... Com esta vontade forte de me salvar, de me não deixar
esquecer, apoiado no arranque que me
propiciavam um ou dois versos de Pessoa (também, para mim, símbolo de um certo
frio de que às vezes fujo), munido de
alguns vocábulos que na minha cabeça e na minha sensibilidade se impunham
obsessivamente, o poema, dentro de mim, construía-se. Construía-se no sentido
de lhe faltar só o que era realmente importante: uma linguagem articulada capaz
de produzir, nas palavras de Valéry, “algo de novo e de capital importância”
(nem que só para mim). E construía-se com uma estranha pressa, como se tivesse
receio de se desvanecer pelo caminho se rapidamente se não deixasse agarrar. E foi assim que, numa tarde branca mas sem
luz, numa Estocolmo onde lambia feridas arranjadas num paraíso que acabava de
perder, foi assim, digo, que, numa espécie de transe e com uma rapidez
improvável, compus o poema que abaixo transcrevo e mais tarde (oito anos mais
tarde) viria a incluir no meu primeiro livro de poesia. Parecia-me que tinha
encontrado, para a minha obsessão, uma articulação necessária e a música
adequada, uma espécie de balanço inevitável capaz de me salvar e salvar um
pouco de um passado intenso que aquela peculiar e fria latitude ameaçara
obliterar.
NO TEMPO EM QUE, FERNANDO
Era terra de sol e alegria,
de húmida, vegetal espessura:
ali a minha voz acontecia,
com o ritmo do sangue e da negrura.
Agora, a neve branca cobre a estrada,
com seu manto de noite e solidão.
Já, se o círculo traço, não há nada,
se não fora gelada vibração.
Era terra de ouro fecundada,
força macha, leal, apetecida.
Era chuva, magia visitada,
era sal, sugestão de força ardida.
Agora é só o branco que faz mal
ao filho cujo sal já emigrou.
A vida, agora, é lisa, mineral,
o coração, gelado, sossegou.
Estocolmo, 31.0l.77
P.S. - Quando falo em “salvar-me”, estou consciente da modesta relatividade
da minha salvação. Salvar-se, na memória dos outros, salvam-se, de facto, muito
poucos. Os prodígios não estão ao alcance de todos. Já Borges lembrava, com o
acerado da sua lucidez, que “A arte é essa Ítaca/De verde eternidade, não de
prodígios”.. Conseguir, a modéstia de uma “verde eternidade”, que só muito de
vez em quando viesse a ser capaz de captar a atenção momentânea e errática de
algum vasculhador de bibliotecas num futuro remoto e nebuloso seria já
compensação que bastasse para o esforço urgente de registo a que me senti
chamado naquele dia de inverno branco, não demasiado longe do Polo Norte."
Crónica de Eugénio Lisboa
Nota de Livres Pensantes -. Eugénio Lisboa acaba de parafrasear Jorge Luis Borges para, na sua sempre recatada humildade, auspiciar atingir a modéstia de uma verde eternidade. Não o conseguiu . Foi mais longe. O talento e a monumentalidade rica da sua produção literária ao longo da vida levaram-no ao mais alto patamar da eternidade, onde o verde é sempre florescentemente prodigioso, ou seja, à grande Arte de Prodígios.
Sem comentários:
Enviar um comentário