Eugénio Lisboa |
EUGÉNIO LISBOA (1930-2024)
por Guilherme d'Oliveira Martins
"Conheci Eugénio Lisboa em Londres, sempre com o mesmo rigor e afabilidade, com a amável presença de Maria Antonieta, sua mulher. Conferencista exemplar, era claríssimo até no modo como pronunciava as palavras, assinalando com naturalidade cada sílaba, cada frase, com a preocupação de deixar nítidas as ideias que exprimia. Tinha um sentido de humor único, não perdendo oportunidade para recordar um episódio burlesco. Engenheiro eletrotécnico de formação, no IST, entregou-se, ao longo da vida à literatura com uma dedicação digna de nota. Muitas vezes disse que no pelouro crítico só há uma regra, que considerava de ouro: ler, ler e ler. “Ler com atenção despreconcebida. Ler, aguardando sem a malícia de um programa prévio. Sem querer enfiar pelo texto abaixo a incompetência do método pré-fabricado. É o texto, a sua natureza, a sua força específica, a sua originalidade própria, a sua frescura intrépida – que nos hão de sugerir o método (se algum) mais adequado” (As Vinte Cinco Notas do Texto, INCM, 1987). Afinal, a clareza é a boa fé dos filósofos. E costumava lembrar António Sérgio, quando este pedia que não se fizessem confusões. “Um eclipse do Sol é uma escuridão, mas a teoria dos eclipses é uma doutrina clara”.
Eugénio Lisboa era um leitor permanente e insaciável – vário, intrépido e fecundo. Estou a ver a sua caligrafia cuidada, em cadernos de linhas, e a ordenação de citações oportunas, escolhidas com elevado critério. Não é possível compreendermos o que se chamou segundo modernismo, da revista “Presença”, sem recorrer a quem melhor conheceu e melhor estudou esse singular encontro cultural. Leu e estudou o seu amigo José Régio melhor do que ninguém, e como exímio intérprete entendeu bem os contributos de Adolfo Casais Monteiro, Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões. Percebeu cedo a originalidade do grupo e concordaria com a exceção à ideia de que o Português não é nada inclinado ao conhecimento de si próprio: “gosta muito de falar de si, mas daí a conhecer-se vão mundos”. Contudo, se se seguisse tal simplificação teríamos de concluir que “Antero, Pessoa e Pascoaes, por exemplo, não existiram, ou não foram portugueses, porque o mais significativo da poesia e da personalidade deles – aquilo que mais centralmente os devorou – é muito pouco característico do Português, tal como em média o conhecemos”.
Autor é aquele que acrescenta e foi esse o critério fundamental de Eugénio Lisboa na busca da literatura relevante. Lembremos o conselho que deu a António Osório, em boa hora, para que publicasse a sua inconfundível e sublime poesia. Por outro lado, a admiração que reservou a Jorge de Sena permite-nos aquilatarmos da originalidade e da força de um autor que sempre se considerou menos reconhecido do que deveria, mas que com a passagem do tempo e a limpeza dos caminhos assumiu o lugar essencial, como o crítico sempre considerou. Eugénio citou a propósito de outro intelectual marcante, o Padre Manuel Antunes, Charles Lamb, que disse: “Gosto de me perder no espírito dos outros homens”. Foi assim que aconteceu com ele próprio, numa obra plena de referências e de análises argutas e inteligentes assentes na busca incessante da eterna sabedoria do pensamento e da escrita. Montherlant, Reinaldo Ferreira ou Rui Knopfli também o ocuparam especialmente. Era um cosmopolita, com uma costela anglo-saxónica, criada na experiência moçambicana e na presença em Londres. Ao folhearmos números antigos da revista “Colóquio – Letras”, encontramos sempre o leitor atual, exigente e insaciável, a descobrir aquele pormenor essencial que passaria despercebido ao leitor ocasional. Não esqueço ainda a ação que desenvolveu na Comissão Nacional da UNESCO, sempre atento aos vários domínios da organização: a educação, a cultura, a ciência, o património e a comunicação. E as suas memórias em Acta est Fabula são imperdíveis, um autêntico néctar para a leitura do mundo."
Eugénio Lisboa era um leitor permanente e insaciável – vário, intrépido e fecundo. Estou a ver a sua caligrafia cuidada, em cadernos de linhas, e a ordenação de citações oportunas, escolhidas com elevado critério. Não é possível compreendermos o que se chamou segundo modernismo, da revista “Presença”, sem recorrer a quem melhor conheceu e melhor estudou esse singular encontro cultural. Leu e estudou o seu amigo José Régio melhor do que ninguém, e como exímio intérprete entendeu bem os contributos de Adolfo Casais Monteiro, Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões. Percebeu cedo a originalidade do grupo e concordaria com a exceção à ideia de que o Português não é nada inclinado ao conhecimento de si próprio: “gosta muito de falar de si, mas daí a conhecer-se vão mundos”. Contudo, se se seguisse tal simplificação teríamos de concluir que “Antero, Pessoa e Pascoaes, por exemplo, não existiram, ou não foram portugueses, porque o mais significativo da poesia e da personalidade deles – aquilo que mais centralmente os devorou – é muito pouco característico do Português, tal como em média o conhecemos”.
Autor é aquele que acrescenta e foi esse o critério fundamental de Eugénio Lisboa na busca da literatura relevante. Lembremos o conselho que deu a António Osório, em boa hora, para que publicasse a sua inconfundível e sublime poesia. Por outro lado, a admiração que reservou a Jorge de Sena permite-nos aquilatarmos da originalidade e da força de um autor que sempre se considerou menos reconhecido do que deveria, mas que com a passagem do tempo e a limpeza dos caminhos assumiu o lugar essencial, como o crítico sempre considerou. Eugénio citou a propósito de outro intelectual marcante, o Padre Manuel Antunes, Charles Lamb, que disse: “Gosto de me perder no espírito dos outros homens”. Foi assim que aconteceu com ele próprio, numa obra plena de referências e de análises argutas e inteligentes assentes na busca incessante da eterna sabedoria do pensamento e da escrita. Montherlant, Reinaldo Ferreira ou Rui Knopfli também o ocuparam especialmente. Era um cosmopolita, com uma costela anglo-saxónica, criada na experiência moçambicana e na presença em Londres. Ao folhearmos números antigos da revista “Colóquio – Letras”, encontramos sempre o leitor atual, exigente e insaciável, a descobrir aquele pormenor essencial que passaria despercebido ao leitor ocasional. Não esqueço ainda a ação que desenvolveu na Comissão Nacional da UNESCO, sempre atento aos vários domínios da organização: a educação, a cultura, a ciência, o património e a comunicação. E as suas memórias em Acta est Fabula são imperdíveis, um autêntico néctar para a leitura do mundo."
Guilherme d'Oliveira Martins, em Raiz e Utopia, blog do Centro Nacional de Cultura, em 24.04.2024
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