Em África
por Eugénio Lisboa
" Em África ,
tudo se dilata com o calor, inclusivamente a dimensão do tempo e do espaço,
isto é, há muito espaço e muito tempo. A África é enorme, nunca mais acaba, e
os dias vão durando por ali fora e dão tempo para tudo e ainda sobra tempo. Trabalha-se
devagar, mexemo-nos devagar, amamos devagar ( nem sempre). A vida, ali, dura
mais, mesmo quando dura pouco.
Quando as férias grandes
começavam, tínhamos, à nossa frente, uma vasta planície de tempo a preencher,
mesmo que fosse a não fazer nada. A partir do 5º ano do liceu, eu possuía já
uma pequena biblioteca e ia comprando um outro livro que namorava longamente,
antes de o poder comprar. Mas, até ao terceiro e mesmo ao 4º ano, a leitura não
era muito variada. Lera alguma coisa, mas não encontrara ainda nenhum dos meus
grandes amores literários. O Garrett o Herculano e o Júlio Dinis
tinham-me cativado muito, mas não lhes chamaria "grandes amores
literários".
(…)
Julgo que foi , por esta
altura, que meu pai me trouxe, completamente amarfanhado pela água que apanhara
no porão do navio, entre Lisboa e Lourenço Marques, na edição da "
Inquérito", em belíssima tradução de José Marinho, o romance de Stendhal
, Vermelho e Negro ( Le Rouge et le Noir , no
original). Foi, em mim, um autêntico terramoto! Apaixonei-me perdidamente
pela Senhora de Rênal e foi um amor que nunca me abandonou : a Senhora de Rênal
ficou sempre a pertencer ao meu mundo mais privado. Cá fora, na arena, eu
andava com fumaças de dominar e meter na ordem as Matildes de la Mole que
inundavam o mercado...Mas as Matildes eram só para o toureio; a Senhora de
Rênal era para o amor de facto. Nada de confusões! Li, reli, tresli o livro de
Stendhal, com uma paixão nunca saciada. Nenhum outro livro me pareceu viável
, imediatamente depois daquele.. Eu bem pegava neles, bem tentava
lê-los: tinham todos o horrível defeito de não serem o Vermelho e
Negro. Como se podia ser outra coisa? Algo de semelhante se passaria,
pouco depois, quando li, pela primeira vez, em tradução portuguesa, todo o
teatro de Oscar Wilde. Foi um fascínio deparar, pela primeira vez, em todo o
seu esplendor, com a arte da conversação. Como se poderia não falar
assim? Como era possível continuar a viver, sem se possuir, pelo
menos, o brilho dos lordes conversadores do teatro de Wilde? Valia a
pena viver, se não se podia ter tal brilho, na conversa de todos os dias ? Ser
menos do que Oscar Wilde era programa de vida que se visse? O brilho, àquele
nível, seduz mas também angustia. É um valor que se não absorve pacificamente
ou que eu, pelo menos, não absorvia pacificamente. Nas conversas com colegas e
familiares, apetecia-me ensaiar o paradoxo faiscante. Demolir tudo,
desassossegar aquela sociedade amolengada e conformista, sob o calor
subtropical..."
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula, Memórias - I
- Lourenço Marques ( 1930-1947), Editora Opera Omnia, Novembro de 2012, pp.95, 123, 124,
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