Eugénio Lisboa: Esprit de Géométrie / Esprit de Finesse*
por Teresa Martins Marques
"Eugénio Lisboa
é um intelectual da mais alta estirpe - “ vário, intrépido e fecundo” expressão colhida no ensaio de Ernesto
Rodrigues sobre o autor, que deu título ao livro de homenagem que recentemente
lhe foi dedicado por muitos dos seus amigos, organizado por Otília Martins e
Onésimo Almeida (Opera Omnia, 2011).
Não é hoje possível estudar, sem passar pelos textos de Eugénio Lisboa , autores como Garrett, Camilo, Eça, Pessoa, Régio, Ferreira de Castro, João de Araújo Correia, Branquinho da Fonseca, Domingos Monteiro, Carlos Queirós, Adolfo Casais Monteiro, Vergílio Ferreira, Eugénio de Andrade, David Mourão-Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, Júlio Conrado, entre os nacionais ou entre ao africanos José Craveirinha, Reinaldo Ferreira, Grabato Dias, Rio Knopfli, Glória de Sant’ Ana, Mário António, Luandino Vieira, Gouvêa Lemos, entre os brasileiros sobretudo Machado de Assis e entre os franceses Montherlant, Gide e Stendhal e tantos outros de língua inglesa ( e ficaríamos aqui muito tempo só para os nomear!) Leiam-se os vários volumes que dedicou ao estudo de Régio e Jorge de Sena, ao Segundo Modernismo em Portugal, à Poesia Portuguesa do Orpheu ao Neo-Realismo ou ainda as colectâneas Crónica dos Anos da Peste I e II, As Vinte e Cinco Notas do Texto, O Objecto Celebrado, Portugaliae Monumenta Frivola, ou os dois recentes volumes de Indícios de Oiro e veremos que não são apenas indícios, mas sim oiro de lei da mais fina crítica e ensaística.
Caso raríssimo nas nossas Letras, só encontrando paralelo em Jorge de Sena, ao conciliar duas grandes vocações - científica e humanística, Eugénio Lisboa revela o esprit de geométrie e o esprit de finesse, entendidos como espírito científico operando por deduções lógicas e a capacidade intuitiva, exercida na observação do real, de ambos deixando abundantes provas em tudo o que escreveu desde o ensaio à poesia. Pascal afirmou no incipit das Pensées que é raro os geómetras serem finos e mais raro ainda que os finos sejam geómetras. Eugénio com rigor e subtileza teoriza a síntese harmoniosa daquelas duas vertentes num texto intitulado «Revisitar as duas culturas» inserto em Portugaliae Monumenta Frivola , seguindo a lição de Snow: “ tão grave pode ser o cientista atómico que nunca teve tempo de ler ou meditar um romance de Dickens, como o professor de literatura inglesa (ou francesa, ou portuguesa) que nunca ouviu falar no segundo princípio da termodinâmica. Ao primeiro faltar-lhe-á alguma dimensão humana e cultural que pode eventualmente torná-lo anestesiado a zonas fundamentais da vida e da decisão profissional que intersectam fundamentalmente o viver e o sobreviver dos outros; ao segundo faltar-lhe-á, para sempre, uma compreensão de outras áreas do conhecimento humano, a qual compreensão (…) o tornariam menos apto a deixar-se passivamente arrastar para aventuras cuja vocação é o apocalipse.''
Eugénio Lisboa, enquanto cidadão, revela a coragem dos que não se demitem. Ele é o vivo exemplo de Honestum conforme Cícero o teorizou na comparação entre Thorius Balbus e Marcus Regulus colocando o cumprimento do dever acima das conveniências, arriscando a liberdade, arriscando a própria vida. Leia-se, neste livro de homenagem o depoimento do jurista Carlos Adrião Rodrigues publicado postumamente, e ficaremos elucidados sobre a actuação de Eugénio Lisboa nos tribunais moçambicanos em defesa dos direitos humanos . Nos tribunais portugueses vi-o eu mesma defendendo a justiça e a decência no caso de um plágio descarado feito a David Mourão-Ferreira. Porque a cultura, segundo a entende, tem de servir para nos tornar melhores:
Num texto daquele mesmo livro pergunta Eugénio: Para que serve a cultura? Que faz ela de nós, que não nos torna melhores? Que faz ela que não nos dá o gosto de um estilo, de uma estratégia de maneiras, que em nós não promove o sentido de uma rigorosa exigência?" E conclui: "Pudesse isto ficar como o emblema do que a verdadeira cultura, fecundando o que em nós há de melhor, deveria afinal produzir: um estilo, uma elegância, um panache, uma bondade, uma doçura de viver. Uma capacidade de desprezar tudo quanto não é essencial. Uma lealdade fundamental para com o nosso eu profundo. Um decidido voltar as costas aos jogos mundanos, aos códigos em voga e às «zonas de influência». E só esse."
Estamos claramente no
reino de uma ética que separa inequivocamente as águas das verdadeiras e das
falsas riquezas. Apontando a ansiedade de um Robert Frost face aos prémios que
não chegaram, corroborando Stendhal no desprezo perante as condecorações, o
Autor inscreve-se numa zona de exigência moral estóica que assume os riscos de
quem provoca deliberadamente a má consciência nos outros. Abençoado seja o
Autor pela sua coragem. Para isto serve também a sua cultura e o seu
desassombro que se vêem reiterados no segundo texto dirigido contra os críticos
polissémicos que , “são atraídos pelo
livro «fascinante» como as moscas são atraídas por aquilo que as atrai.”
O discurso crítico eugeniano, como apontou Aníbal Pinto de Castro, é marcado
pelo desassombro, aliado a uma indiscutível vocação pedagógica, mas não
professoral, que sobremaneira o humaniza, tornando-se uma das melhores
estratégias de sedução do ensaísta. E cito as suas palavras bem reveladoras do
altíssimo conceito em que tinha o autor de Crónica
dos Anos da Peste:
"(...) o discurso crítico de Eugénio Lisboa, pelo sólido suporte cultural dos seus juízos, pela fundamentação que os autoriza, pela sua convicção, pela sua honestidade e pela simplicidade do seu enunciado, reúne com grande segurança e longo alcance pedagógico, particularmente relevante num país onde tudo quanto é sério se não lê ou se não ouve, a finura de um Moniz Barreto à argúcia humanística de que Montaigne dera o primeiro grande exemplo nas páginas dos «Essais»".
Se Vladimir Nabokov e Eugénio Lisboa tivessem podido conhecer-se estou em crer que muito teriam para conversar, pois o retrato ideal de leitor, tal como Nabokov o traçou, poderia ter tido por modelo o autor d’ O Objecto Celebrado:
"O melhor que um leitor possa ter ou cultivar é uma compósita mistura de temperamento artístico e de temperamento científico. O artista, só por si, tem tendência, no seu entusiasmo, a ser demasiado subjectivo na sua atitude em relação ao livro, e uma certa reserva científica virá então temperar, muito a propósito, o ímpeto da intuição. Se, todavia, alguém quiser lançar-se na leitura, sendo totalmente desprovido tanto de paixão como de paciência - a paixão do artista, a paciência do cientista -, esse alguém dificilmente poderá apreciar a grande literatura".
É justamente esta mistura compósita de temperamento
artístico e científico que faz de Eugénio crítico, ensaísta ou poeta a mais
viva imagem da sensibilidade inteligente. Ele conquista a adesão do leitor
através da riqueza e originalidade do seu pensamento, matéria intensa de
inteligência, servida por uma linguagem sur
le vif que, às vezes, se trava de razões com o autor criticado, podendo
variar o tom desde a bonomia dialogante até à verdadeira estocada irónica,
quando o contendor fez por merecer e não percebe de outra forma. Mestre
admirável na arte da citação, esta surge sempre no momento oportuno, ora como
forma de homenagem intertextual reforçativa de um ponto de vista, ora servindo
suculentamente uma argumentação subtilmente irónica.
A coloquialidade do seu discurso ensaístico , torna-se
marca distintiva do texto, chegando por vezes a ouvir-se nitidamente a voz
quase "física" do autor. Como
todos os que se atrevem, Eugénio Lisboa sabe que, quando a prudência está em todo o lado, a coragem não está em parte
nenhuma e é esse o momento em que Eugénio vai prestar o que, não sem ironia,
designa como homenagem da
divergência.
Partindo do princípio de que não é possível a duas pessoas que não desistem de pensar estarem sistematicamente de acordo, Eugénio teoriza e pratica o respeito ideológico pela diferença, considerando-a como a melhor forma de homenagem que se pode render ao pensamento alheio. A nossa praça literária não está muito habituada a estas formas de homenagem e é por isso que, vozes como a de Eugénio Lisboa, constituem a própria Liberdade por antonomásia. Lemos em O Objecto Celebrado:
Toda a divergência (…)deve ser acarinhada, porque muito simplesmente alarga fronteiras da vida. Unamo-nos, dizia, por tudo quanto nos divide"(p.193-4).
Sentimos nestas palavras uma sagesse que aproxima quem as profere da família de um Cleantes, de um Crisipo, de um Marco Aurélio, citado na epígrafe de abertura deste livro: "Tudo passa num dia, o panegírico e o objecto celebrado". O espírito de divergência sendo aquilo que distingue, será também o que celebriza pela via do desassombro que permite contestar o outro e pela via da humildade e da modéstia que obriga, reciprocamente, a aceitar a contestação do Outro. O discurso crítico escrito sob o signo de todas as certezas pouco terá a ver com o ensaio como acção de pensar e como pensamento em acção, conforme o praticaram Plutarco, Marco Aurélio ou Montaigne. Vem de muito longe a admiração do autor do Objecto Celebrado pelos mestres do ensaísmo. Plutarco é, aliás, o primeiro duma lista de leituras de Eugénio enquanto jovem que nos é fornecida na belíssima crónica intitulada "Antigamente um Quarto” verdadeira poética do espaço e da memória, guia ao mundo iniciático da adolescência, onde a literatura se torna uma apaixonante experiência, feita de segredo e de silêncio, o "solo fértil" como escreveu Glória de Sant'Ana. Solo fértil para a sua própria poesia- A Matéria Intensa- que deu à luz em 1985 sendo coetânea de bom número de ensaios do Objecto Celebrado. A Matéria Intensa é, pois, irmã deste Objecto, filha do mesmo Sujeito, isto é, da mesma voz que em modos diferentes nos revela o Mundo.
A lucidez, a argúcia, o desassombro e o escrúpulo são algumas das qualidades de Eugénio Lisboa enquanto crítico e ensaísta, salientadas justamente por David Mourão-Ferreira na recensão que dedicou à primeira edição de A Matéria Intensa[1] e onde apontou a natureza celebrativa daquele primeiro livro de poesia no qual surgem glorificadas algumas figuras da história romana (Pompeu, Catão, Petrónio, Marco Aurélio), uma, também, da história nacional (Henrique de Sagres), outra da mitologia grega (Atena) vários poetas e artistas (Camões, Pessoa, Sena, Picasso, Reinaldo Ferreira), mas também vultos anónimos e até cidades tomadas nomeadamente como metaforização da condição humana.
A poética do espaço e da memória que o ensaísta põe em
relevo na poesia de Glória de Sant'Ana ou de Mário António é também subtilmente
revelada no seu poema em prosa «Recurso
aos Lagos» . Talvez não passem de simples desejos de espíritos
organizadores as comportas de género erguidas por Brunetière e seus
descendentes já que os artistas costumam divertir-se a voar por cima delas para
continuarem a dar trabalho aos teóricos dos Estudos Literários.
Independentemente do modo, a transposição do sujeito para o objecto - celebrado, invectivado ou simplesmente contemplado - é idêntica, o recurso aos lagos não é mais do que o recurso à palavra, ao gosto das palavras transformado em matéria intensa: «os lagos são belos mas indiferentes. Suspeito mesmo que nos fitam sem nos verem. Por fim, penso que sou injusto: o mal não está neles, está em mim. Se só a minha ferida fica imune ao bem que os lagos a tudo fazem, é porque eu a preservo. Lemos mais adiante: Se o meu mal há-de ser a minha morte ele é também aquilo que me enobrece. Por isso o cultivo fingindo que o trato. Do fracasso da cura, acuso os lagos. Que estão, é claro, inocentes.»
Poesia feita de lucidez e autognose em palavras bebidas
nos lagos "como quem se cura",
poção mágica de palavras feita .
José Régio é uma das saudáveis obsessões eugenianas que não tem cura. É verdadeiramente surpreendente que, por mais que Eugénio escreva sobre Régio, nenhum deles se esgota. Relativamente ao Príncipe com Orelhas de Burro, e a esta leitura que dele faz Eugénio Lisboa, recordo-me de ter ouvido dizer a David Mourão-Ferreira que ela "é a mais fina das leituras desta obra de Régio". Trata-se, com efeito, de uma súmula filosófica sobre o sofrimento como via de acesso - ad augusta per angusta - ao conhecimento, à perfeição inconciliável com a vida que é o seu preço. Círculo em devir, simultaneamente vicioso e salvífico que atinge a perfeição na morte. Como diz Eugénio: "Romance da vida. Da vida que devém morte que devém vida". Será ainda a morte salvífica, "concentração de virtude", que está reservada aos mortos, no poema que abre A Matéria Intensa:
"Os mortos mais do que os vivos, estão
vivos. / Surgem, fortes, intensos, aparecem / depurados e cheios de
motivos.Visitam-nos e acham que merecem / todo o rigor da nossa atenção. / A
morte deu-lhes, pensam, nova vida; / vê-se neles uma concentração / de virtudes
- de vida reflectida. / Os mortos ensinam-nos a viver / dão um valor novo ao
que nos rodeia, / dão ao quotidiano acontecer / um brilho vivo que nos
incendeia. / Os mortos acendem, em nós, a chama / de uma nova vida. Julgo que
pedem / que olhemos fundo a luz que se derrama. / Exigem. Clamam. Os mortos não
cedem."
Naturalmente porque são a perfeição que nós lhes emprestamos ao pensá-los. Os mortos vivem dos vivos, como os textos vivem dos críticos como Eugénio Lisboa, que ressuscita o príncipe Leonel, em cada uma das suas palavras, transformando-as em matéria intensa da poesia que também se faz em prosa. Outra obsessão de férteis consequências é Fernando Pessoa. Repare-se nomeadamente nas três leituras insertas em O Objecto Celebrado: na primeira, intitulada "Uma tranquilidade violenta - Fernando Pessoa e a rotura modernista," escrita aquando do cinquentenário da morte do poeta, Eugénio chama a atenção, desde o primeiro parágrafo, para a sua intenção de examinar criticamente "alguns confortos estabelecidos": O ensaio começa por clarificar o conceito de leitura e cita desde logo Pessoa: "A mór parte da gente não sabe ler e chama (ler) a adaptar a si o que o autor escreve, quando para o homem culto, compreender o que se lê é, ao contrário, adaptar-se ao que o autor escreveu". Subtil diferença, com enormes consequências. Eugénio, em vez de adaptar a si Fernando Pessoa, vai adaptar-se a ele, isto é, tentar perceber a sua zona de penumbra, dizendo desde logo para que não restem dúvidas: «como todo o grande espírito, Fernando Pessoa contradisse-se prodigiosamente». Vai Eugénio demonstrar, como um homem de ciência que é, através de um levantamento de excertos muito completo, que não tem razão de ser o lugar-comum que faz de Pessoa um campeão de uma suposta rotura modernista, procurando mostrar que Pessoa se sentia «herdeiro» e «descendente» de uma herança que renovou e acrescentou, e não pioneiro espantado e deslumbrado de um caminho totalmente desligado dos caminhos que o precederam. Também em Matéria Intensa encontramos em diversos poemas um frequente diálogo com a figura de Pessoa, uma figura humanizada na própria grandeza que não foge às vicissitudes da humana condição. Num desses poemas que ostenta o seu nome no título ele é apresentado como
"Poeta do
silêncio e da elipse / assexuado bicho astral / mistério intangível do eclipse
/ filho da neve que faz mal / anarquista sorrindo em itálico / abúlico gigante
encalhado / artesão do verbo metálico / arquitecto do inacabado (...)" Terminando
desta forma bem significativa, a qual joga com a ambiguidade da forma verbal "saturo" que marca o fascínio,
mas não uma beata devoção: "teus
versos leio e me saturo /de seu claro e mortal mistério."
Esta relação Eugénio / Pessoa é realmente das mais curiosas e encontrará o seu cume no terceiro texto inserto neste Objecto que se intitula "Um Estrangeiro na Terra". Trata-se de uma verdadeira obra-prima da arte de recriar uma obra dando-lhe corpo, voz e fabricando em corpo e alma, se posso dizê-lo, um ente compósito feito dos mil pedaços do que, com humor, Eugénio costuma designar a "paróquia heterónima". Este texto, repassado de finíssima ironia, constitui-se como imaginário monólogo interior de um ser trágico, grandioso, afirmando os seus limites, desmistificando o mito em que se tornou, sofrendo a dor de a não sofrer, ou de não ousar sofrê-la. Um ser de excepção, criado por um texto de excepção, construído com trechos de excepção. Um ente estrangeiro, no sentido camusiano do termo, que se confronta com o espanto de que é feito o seu estranhamento, na hora estranha em que estranha morrer o que não viveu, mas que vive e se eterniza sentindo-o quem o lê:
"Morto, vou finalmente ter uma espécie de vida. Vivo, fui uma espécie de morto. Ser é sempre o contrário de realmente ser. Os deuses riem-se, tirando-nos até o que parece que dão. Na vida, morremos, que é o que viver quer dizer. Na morte, vivemos de uma maneira de que só os outros se apercebem - a nossa morte definitiva é a nossa vida - para - uso - deles."
Esta vida para uso alheio é ainda um duplo ilusionismo de quem diz o que imagina que os outros diriam. Ainda aqui "os ilusionistas do verbo vendem música e sedução por pensamentos". No livro de poesia de Eugénio, que tenho vindo a citar em paralelo, figura um poema intitulado «Marco Aurélio» o qual coloca o imperador estóico naquela mesma situação limite do "fantasma pessoano", todavia em substancial diferença, pois que a angústia deste último é naquele serenidade, "discreta melancolia" de quem sabe que tudo passa um dia, como se lê na epígrafe que abre O Objecto Celebrado. Mas o que poderá ser afinal objecto de celebração se tudo passa um dia? Talvez a consciência crítica dessa passagem possa ser celebrada através da palavra - objecto da Literatura.
O segundo livro de poesia de Eugénio Lisboa com um título colhido em Milton -O Ilimitável Oceano, sendo poesia do melhor quilate, tem ainda a vocação do ensaio desde logo na sua estrutura conforme os tratados clássicos: abre com um Prólogo, tem o seu desenvolvimento na secção principal - «Os Argonautas», segue-se-lhe o Epílogo e termina com Algumas Conclusões. É acção de pensar, mas é também acção de concretizar experimentando, pondo à prova uma ideia nova: a de historiar - e observe-se a rigorosa ordem cronológica das figuras historiadas -, mas também de celebrar os vultos canónicos da ciência ocidental, sendo esta uma outra forma de homenagem em Eugénio Lisboa- a homenagem da convergência.
O Ilimitável Oceano continua A Matéria Intensa não apenas como resultado da procura da palavra exacta, mas ainda como prolongamento da natureza celebrativa referida por David Mourão-Ferreira e transposta agora para as figuras cimeiras da História da Ciência da Civilização Ocidental: Thales de Mileto, Anaxágoras, Pitágoras, Empédocles, Demócrito, Euclides, Teodoro - o Engenheiro-, Arquimedes, Ptolomeu, Bartolomeu Dias, Copérnico, Galileu, Kepler, Descartes, Pascal, Newton, Bohr, Einstein, Oppenheimer e Carl Sagan (subentendido nos títulos dos poemas finais – “O Inverno Nuclear” e “O Outro Inverno Nuclear”). Entre estes argonautas do Conhecimento navega um português – Bartolomeu Dias - a mostrar que o importante na vida é dobrar o “Assombro”, desflorar o mistério, procurar como o astrónomo o“surto de algum medo” (p.17) para afinal descobrir a não-razão do medo, para tomar a coragem como meio e fim: ”Dobrado o Assombro, foi que tu viste / não ser o mar diferente. Então, voltaste. / Desflorado o mistério, não existe /motivo para novo esforço: cessaste.”(p.37)
Do lado da Arte apenas um nome-sinédoque - Van Gogh - símbolo do artista devorado pela sede de infinito, diríamos que a procurar exactas as cores de que precisa nas estrelas, exactamente como o poeta, para lançar mão ao infinito: “Devora-me a sede de infinito./ Que vou fazer? Como resolvê-la?/ Decido: saio para a noite e fito / o espaço nu, a luz duma estrela”.(p.51) A exactidão de Van Gogh assemelha-se à do poeta: não se trata de procurar qualquer fidelidade ao real, mas antes de obter uma transmutação da cor (na tela, no corpo do poema) para a exprimir na plenitude da sua força pictórica e poética. Quadro e poema que não mais obedecem ao cânone do “miroir qu’on promène le long d’un chemin”, conforme a epígrafe de Saint-Réal que abre o cap. XIII de Le Rouge et le Noir (e a senhora de Rênal não pode ser esquecida, pour cause…), mas que inventam um caleidoscópio de espelhos - realidade e virtualidade consubstanciadas. A poesia será, pois, ilimitável oceano, paraíso perdido, prometaico pecado original de quem se arroga o direito de roubar o fogo aos deuses.
O livro de Eugénio Lisboa, enquanto exemplo da interacção entre o pensamento humanístico e o pensamento científico, é poesia, entendida aqui na linha dualista de Octávio Paz – “filha do acaso; fruto do cálculo” (observe-se o rigor métrico destes poemas)[2] Como Thales de Mileto (p. 19) o poeta tenta comprender as leis do universo sem aos deuses recorrer : “descobrir é um reverso”.O desconhecido será o que está do lado oposto ao que se observa, mas também o que reverte, o que volta ao ponto de partida – soma de verso e anverso, soma de poesia e de história da ciência, natureza anfíbia deste livro de Eugénio Lisboa que, como Anaxágoras pergunta “Qual o fim da vida?” e responde: “O sol, a lua, os céus investigar”(p.21). Ainda aqui a metáfora do Conhecimento como busca de exactidão, de procura de sentido – do Noûs da obra do próprio Anaxágoras – algo aparentado com o Infinito, a um tempo pensamento e vontade, inteligência eterna, «everything» como dizem os físicos teóricos, Deus, como dizem os crentes, desconhecido inventável como dizem os poetas, sagrado Tetraktys de Pitágoras, raiz e fonte da criação:
“Do número, tudo nascia / outros números, a verdade, / a curva que o astro seguia, / a beleza, em vida, a cidade.” E como não há bela sem senão: “Só dentro de ti não cabia / raiz de dois ser realidade”(p.23).
Modelo de Lucrécio e Hölderlin, Empédocles, que acreditava no princípio do amor e do ódio, da atracção e da repulsa, é ele mesmo símbolo do poeta romântico, do homem dividido: “Julgava-se um deus? Pensavam que o era? / Com argumentos seus / e o uso de uma esfera, / ao ar deu existência. / Mostrando o invisível, / na sua transparência, / ele disse o indizível: / Crê só na experiência. // E teve morte ardente, / saltando à lava quente.” (p.25)
Crê-se que Demócrito terá dito: «Prefiro entender o que
sei / a poder ser, na Pérsia, rei.» (p.27) E se o disse, fez bem em
dizê-lo, porque esse seu saber entender fez dele na história do
pensamento grego o materialista mais consistente, sendo-lhe atribuída a
primeira teoria do atomismo. Diz-se que possuía avultados bens por herança, mas
terá acumulado riqueza de maior monta, tornando-se, segundo Diógenes de Laércio,
o homem mais culto do seu tempo. Consta que Platão lhe chamou filósofo burlão e
os discípulos deste terão queimado as obras de Demócrito na praça pública.
Demócrito é ainda considerado o símbolo da incomodidade do pensamento seja ele
oriundo de poetas ou de cientistas. A síntese expressa nos dois versos do poema
de Eugénio Lisboa não poderia, pois, ser mais apropriada.
É próprio dos poetas perscrutarem os segredos à maneira de Arquimedes: a impulsão da inspiração será igual ao peso do volume da imaginação deslocada? Suponho que ninguém saberá responder, nem mesmo o soube o físico de Siracusa. Sobre ele escreveu Eugénio Lisboa: “Nos líquidos perscrutou /o segredo vertical / de uma força que achou:/ descobrir é casual, / quando muito se pensou. (p. 33)
A busca da “mortalidade adiada” tem sido um dos principais intentos dos poetas. Assim com o astrónomo Ptolomeu sentindo que se eleva acima da sua humana condição: “Como todos, sou mortal:/ minha vida é um dia./ Mas quando sigo, fatal, / no céu que nos alumia, /a multidão das estrelas, /em seu curso circular, /sinto deslumbrado nelas, /meus pés do chão, levantar”. (p. 35) E para marcar que é a “forma de olhar” que faz verdadeiramente a diferença, diz-se de Copérnico: “O céu que viste era o céu / de Ptolomeu. Mas diferente / foi a forma de o olhar. / No modo de julgar, teu, / a Terra, astro movente, / demitiu-se de pensar /que era o centro do mundo: / assim ver, que abalo fundo!”(p.39) A ousadia, a coragem que implica remar contra a maré, contribuir para a mutação de paradigma encontramo-la nos poetas tal como nos cientistas. É a mesma a humildade e altivez no ousar, idênticas nos objectivos, diferentes nos métodos, as formas de perscrutar o movimento do mundo. É “cândido o olhar” do poeta à semelhança do de Galileu: “As leis do movimento perscrutaste, / com paciência e cândido olhar. /Com o mesmo olhar o vasto céu sondaste / humilde mas altivo no ousar.” (p. 41)
Em contraste com o mundo próximo caracterizado pela podridão, fome, conflito e pestilência, surge o espaço do Conhecimento, a “pureza da ciência” que faz a diferença e que faz avançar o mundo como no poema dedicado a Kepler: “O mundo próximo, à volta, apodrece. /Fome, mortal conflito e pestilência / turvam o dia que mal amanhece. /Segura-se à pureza da ciência: o curso aparente das estrelas. / seguindo matemática divina, / deriva, das rigorosas tabelas / do vasto cosmo, a curva sibilina.” (p. 43)
Sibilina é também a curva do Eu de Descartes que existe porque pensa e porque pensa existe: “Se penso que sou, /existo. Pensar / que sou é ser. Vou /ser o que achar / que sou. Inventou / terra, mar e ar / quem nisso pensou.” (p. 45)
O estudo dos problemas do cálculo de probabilidades fará talvez dizer a Pascal pela pena de Eugénio Lisboa: “Não penso, no vasto espaço denso, / encontrar a minha dignidade: / tão só no domínio do que penso. / Ter mundos é pura inanidade:/ qual átomo, o espaço me devora /e anula; e só o pensamento/ que me habita e em mim demora / me dá, do universo, entendimento.” (p. 47)
Alberto Caeiro talvez aceitasse dizer como o Newton de Eugénio Lisboa: “Da qualidade oculta de tudo, / não cuido, nem sei. Não é de ofício / sério sabê-lo: o tudo é mudo / e forçar-lhe a fala é sério vício. / Dos fenómenos, deduzo leis / de movimento e destas derivo / qualidades e acções: vereis / que o saber, assim, avança, altivo”. (p. 49)
A altivez do saber de Newton, mas também o seu contrário:”o tudo é mudo” ver-se-ia mais tarde cerceada pela mecânica quântica e pelos “mistérios” da indeterminação bem como das suas consequências anunciados no poema dedicado a Niels Bohr: “Os corpúsculos e as ondas / são a mesma realidade. / Assim sendo, tu já sondas / o começo de uma idade. (Perscrutar certos segredos / que a natureza escondera / é fundamento dos medos / do frio que nos espera)” (p. 53)
O frio enquanto metáfora da morte por causa natural ou por catástrofe surgirá nos poemas finais do livro . E as portas do futuro abertas pela teoria da relatividade contêm também o germen da desconfiança pelo que virá depois. Assim o lemos no poema de Einstein: “E igual a mc dois / abriu as portas do ignoto:/ o que há-de vir depois / é o frio: aqui o noto.” (p. 55)
Frio este que com Oppenheimer se transformará em fogo já que foi director de Los Alamos, a central onde se preparou a destruição de Hiroshima e Nagasaki: “Olhando o deserto em fogo, / promessa de abismos fundos, / fiz-me sentido do jogo:/ «sou morte que alisa mundos».” (p.57). ”Alisar” é um verbo repassado de ironia trágica: não tem já a conotação de maciez, de suavidade, mas de erosão, de rasura, de morte, de nadificação, nulificação, como se verá em seguida nas duas hipóteses do Epílogo, a primeira das quais, intitulada “Brisas” implicitamente dedicada a Carl Sagan : “(O Inverno Nuclear)”, cogumelo venenoso pronto a explodir sobre a cabeça da humanidade:
“Brandas, as brisas alisam / aquilo que não é vida: / sossegam, calmas, deslizam, / na fria terra despida. / solenes brisas avisam / quem já ouvi-las não sabe: / mas brisas que nada pisam / fulgor de vida não cabe.” (p. 61)
A Hipótese II (O Outro Inverno) será afinal conforme ao sub-título – “O caminho da entropia” que, segundo o modelo de Clausius levaria não à teoria de Tudo, mas ao fim de Tudo: se a entropia tende para o máximo, alcançada a máxima desordem seria nula a produção de trabalho ( morte do universo) :
“Um frio estelar rouba à glória a memória./ Ao mais e ao menos uma fria brisa alisa. / Arrefecido o homem, já da sua história / fica só nada, que o fluir do tempo pisa. / Do que fomos, nem de nos termos esquecido / traço fica. / Inocente, o tempo, liso, flui, / nem sabendo que não sabe. O já ter sido / é nem ter chegado a ser: o passado alui./ Eterno, sem lembrança, o frio acontecido.” (p. 63)
Este belíssimo poema, que se filia na linhagem da “Tabacaria” de Álvaro de Campos e na “Ladainha dos Póstumos Natais” de David Mourão-Ferreira, é, enquanto rasura da memória e do sujeito que pensa a própria existência de improvável memória, um hino ao que poderá vir a ser desejando o poeta que o não seja. É, pois, um pôr em causa da ciência não enquanto ciência mas de algumas das suas nefastas aplicações. É uma revalorização do homem enquanto ser que comanda, para o bem ou para o mal (e não para além do bem e do mal) o seu destino. É talvez a melhor forma de exprimir o desejo de que fique eterno na memória o calor acontecido quando os homens souberem dar as mãos. Na “Conclusão I” o poeta Eugénio Lisboa só poderia apresentar-nos esta belíssima definição poética de linha recta aceitando a vida na sua precaridade, não acreditando nos mitos do eterno retorno, tendo a coragem de a aceitar na sua linearidade, de acordo com a flecha do tempo:
“A vida é o caminho mais curto entre o caos e a noite” (p.67), a organização a partir do caos, uma manhã, uma tarde e um crepúsculo de luz antes que a noite chegue inexorável. Chegue quando chegar que a luz sorvida pela vida terá valido a pena.
Na “Conclusão II” saberemos o perímetro e o diâmetro da Circunferência que limita os direitos do homem à vida e à morte: “Na perspectiva da duração do universo, todos os homens são equidistantes do frio final. O conjunto dos homens, é, pois uma circunferência cujo centro é um frio”. (p. 67)
A circunferência é o conjunto dos pontos que unem os homens nivelando-os relativamente a um destino que os ultrapassa. Leio esta definição poética de circunferência, como alusão a “todos os homens nascem livres e iguais” e todos os homens estarão igualmente nivelados no Nada a que a sua Vontade de Poder desenfreado os conduza. Será ainda um apelo à nossa humildade-grandeza de sermos feitos de pó de estrelas - em pleno sentido literal – e que pensamos e, porque pensamos, podemos agir construindo ou destruindo aquilo a que chamamos destino colectivo. Eugénio Lisboa – homem de ciência e humanista – poeta navegador neste Ilimitável Oceano de poesia celebrativa da ciência - não escreve nenhum epitáfio da humanidade, mas antes traça um círculo de equidistância entre os diversos saberes.
A condição do poeta “condenado” a uma incessante procura do Conhecimento, era já particularmente visível no belíssimo poema em prosa inserto em A Matéria Intensa : «Procuro, Exactas, as Palavras» - verdadeira ars poetica - conforme a classificou David Mourão-Ferreira, digna de figurar na mais exigente antologia do género. e que principia do seguinte modo: “Em vão procuro, exactas, as palavras de que preciso: não sei onde estão, não sei sequer se as conheço, se algum dia as vi e se, tendo-as visto, as reconhecerei quando voltar a encontrá-las (...) Procuro, exactas, as palavras de que preciso, isto é, as palavras que não me vão servir. O que preciso é aquilo de que não preciso. Só me serve o que não me serve. Falhar é triunfar. Conseguir é ficar parado. Triunfar é, definitivamente, perder. Pratiquemos, meticulosamente, a arte sinuosa de procurar, exactas as palavras que não são”.[3]
E, porque Eugénio Lisboa é exímio praticante da "arte sinuosa de procurar, exactas, as palavras que não são", será ainda a arte da inteligência revelada na busca do rigor e clareza dos textos, que se constitui também como objecto de arte. Porque rigor e beleza são susceptíveis de coexistência pacífica. Por que razão o binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo? Verso tantas vezes citado e que nunca vi explicado, em termos matemáticos, pelos nossos homens e mulheres de letras. Simples comparação metaforizante do engenheiro Álvaro de Campos? Bem mais do que isso. O binómio de Newton é realmente belo pela harmonia simétrica com que se dispõem os seus elementos, pela elegância da sua construção usando o triângulo de Pascal, onde qualquer desses elementos pode ser obtido de forma simples, à custa das linhas anteriores, juntando assim a simplicidade à beleza visual de serem capicuas as linhas do triângulo de Pascal. A fonte de Castália não é a única fonte onde bebeu energia o engenhoso poeta e ensaísta Eugénio Lisboa, porque, como raros, tem sabido mostrar nas suas obras aquele mesmo esprit de géométrie, mas também de finesse, teorizado por Pascal, em suma, a beleza que existe no rigor da ciência(Q.E.D.)
Teresa Martins Marques
*Conferência no Grémio
Literário - Lisboa, 14 de Março de 2012
[1] Cf. 2ª edição revista e aumentada: Lisboa, Instituto Camões, 1999.
[2]Cit. por David Mourão-Ferreira como epígrafe a Imagens da Poesia Europeia, Lisboa, Realizações Artis, 1972.
[3]Idem, p. 57
Não é hoje possível estudar, sem passar pelos textos de Eugénio Lisboa , autores como Garrett, Camilo, Eça, Pessoa, Régio, Ferreira de Castro, João de Araújo Correia, Branquinho da Fonseca, Domingos Monteiro, Carlos Queirós, Adolfo Casais Monteiro, Vergílio Ferreira, Eugénio de Andrade, David Mourão-Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, Júlio Conrado, entre os nacionais ou entre ao africanos José Craveirinha, Reinaldo Ferreira, Grabato Dias, Rio Knopfli, Glória de Sant’ Ana, Mário António, Luandino Vieira, Gouvêa Lemos, entre os brasileiros sobretudo Machado de Assis e entre os franceses Montherlant, Gide e Stendhal e tantos outros de língua inglesa ( e ficaríamos aqui muito tempo só para os nomear!) Leiam-se os vários volumes que dedicou ao estudo de Régio e Jorge de Sena, ao Segundo Modernismo em Portugal, à Poesia Portuguesa do Orpheu ao Neo-Realismo ou ainda as colectâneas Crónica dos Anos da Peste I e II, As Vinte e Cinco Notas do Texto, O Objecto Celebrado, Portugaliae Monumenta Frivola, ou os dois recentes volumes de Indícios de Oiro e veremos que não são apenas indícios, mas sim oiro de lei da mais fina crítica e ensaística.
Caso raríssimo nas nossas Letras, só encontrando paralelo em Jorge de Sena, ao conciliar duas grandes vocações - científica e humanística, Eugénio Lisboa revela o esprit de geométrie e o esprit de finesse, entendidos como espírito científico operando por deduções lógicas e a capacidade intuitiva, exercida na observação do real, de ambos deixando abundantes provas em tudo o que escreveu desde o ensaio à poesia. Pascal afirmou no incipit das Pensées que é raro os geómetras serem finos e mais raro ainda que os finos sejam geómetras. Eugénio com rigor e subtileza teoriza a síntese harmoniosa daquelas duas vertentes num texto intitulado «Revisitar as duas culturas» inserto em Portugaliae Monumenta Frivola , seguindo a lição de Snow: “ tão grave pode ser o cientista atómico que nunca teve tempo de ler ou meditar um romance de Dickens, como o professor de literatura inglesa (ou francesa, ou portuguesa) que nunca ouviu falar no segundo princípio da termodinâmica. Ao primeiro faltar-lhe-á alguma dimensão humana e cultural que pode eventualmente torná-lo anestesiado a zonas fundamentais da vida e da decisão profissional que intersectam fundamentalmente o viver e o sobreviver dos outros; ao segundo faltar-lhe-á, para sempre, uma compreensão de outras áreas do conhecimento humano, a qual compreensão (…) o tornariam menos apto a deixar-se passivamente arrastar para aventuras cuja vocação é o apocalipse.''
Eugénio Lisboa, enquanto cidadão, revela a coragem dos que não se demitem. Ele é o vivo exemplo de Honestum conforme Cícero o teorizou na comparação entre Thorius Balbus e Marcus Regulus colocando o cumprimento do dever acima das conveniências, arriscando a liberdade, arriscando a própria vida. Leia-se, neste livro de homenagem o depoimento do jurista Carlos Adrião Rodrigues publicado postumamente, e ficaremos elucidados sobre a actuação de Eugénio Lisboa nos tribunais moçambicanos em defesa dos direitos humanos . Nos tribunais portugueses vi-o eu mesma defendendo a justiça e a decência no caso de um plágio descarado feito a David Mourão-Ferreira. Porque a cultura, segundo a entende, tem de servir para nos tornar melhores:
Num texto daquele mesmo livro pergunta Eugénio: Para que serve a cultura? Que faz ela de nós, que não nos torna melhores? Que faz ela que não nos dá o gosto de um estilo, de uma estratégia de maneiras, que em nós não promove o sentido de uma rigorosa exigência?" E conclui: "Pudesse isto ficar como o emblema do que a verdadeira cultura, fecundando o que em nós há de melhor, deveria afinal produzir: um estilo, uma elegância, um panache, uma bondade, uma doçura de viver. Uma capacidade de desprezar tudo quanto não é essencial. Uma lealdade fundamental para com o nosso eu profundo. Um decidido voltar as costas aos jogos mundanos, aos códigos em voga e às «zonas de influência». E só esse."
"(...) o discurso crítico de Eugénio Lisboa, pelo sólido suporte cultural dos seus juízos, pela fundamentação que os autoriza, pela sua convicção, pela sua honestidade e pela simplicidade do seu enunciado, reúne com grande segurança e longo alcance pedagógico, particularmente relevante num país onde tudo quanto é sério se não lê ou se não ouve, a finura de um Moniz Barreto à argúcia humanística de que Montaigne dera o primeiro grande exemplo nas páginas dos «Essais»".
Se Vladimir Nabokov e Eugénio Lisboa tivessem podido conhecer-se estou em crer que muito teriam para conversar, pois o retrato ideal de leitor, tal como Nabokov o traçou, poderia ter tido por modelo o autor d’ O Objecto Celebrado:
"O melhor que um leitor possa ter ou cultivar é uma compósita mistura de temperamento artístico e de temperamento científico. O artista, só por si, tem tendência, no seu entusiasmo, a ser demasiado subjectivo na sua atitude em relação ao livro, e uma certa reserva científica virá então temperar, muito a propósito, o ímpeto da intuição. Se, todavia, alguém quiser lançar-se na leitura, sendo totalmente desprovido tanto de paixão como de paciência - a paixão do artista, a paciência do cientista -, esse alguém dificilmente poderá apreciar a grande literatura".
Partindo do princípio de que não é possível a duas pessoas que não desistem de pensar estarem sistematicamente de acordo, Eugénio teoriza e pratica o respeito ideológico pela diferença, considerando-a como a melhor forma de homenagem que se pode render ao pensamento alheio. A nossa praça literária não está muito habituada a estas formas de homenagem e é por isso que, vozes como a de Eugénio Lisboa, constituem a própria Liberdade por antonomásia. Lemos em O Objecto Celebrado:
Toda a divergência (…)deve ser acarinhada, porque muito simplesmente alarga fronteiras da vida. Unamo-nos, dizia, por tudo quanto nos divide"(p.193-4).
Sentimos nestas palavras uma sagesse que aproxima quem as profere da família de um Cleantes, de um Crisipo, de um Marco Aurélio, citado na epígrafe de abertura deste livro: "Tudo passa num dia, o panegírico e o objecto celebrado". O espírito de divergência sendo aquilo que distingue, será também o que celebriza pela via do desassombro que permite contestar o outro e pela via da humildade e da modéstia que obriga, reciprocamente, a aceitar a contestação do Outro. O discurso crítico escrito sob o signo de todas as certezas pouco terá a ver com o ensaio como acção de pensar e como pensamento em acção, conforme o praticaram Plutarco, Marco Aurélio ou Montaigne. Vem de muito longe a admiração do autor do Objecto Celebrado pelos mestres do ensaísmo. Plutarco é, aliás, o primeiro duma lista de leituras de Eugénio enquanto jovem que nos é fornecida na belíssima crónica intitulada "Antigamente um Quarto” verdadeira poética do espaço e da memória, guia ao mundo iniciático da adolescência, onde a literatura se torna uma apaixonante experiência, feita de segredo e de silêncio, o "solo fértil" como escreveu Glória de Sant'Ana. Solo fértil para a sua própria poesia- A Matéria Intensa- que deu à luz em 1985 sendo coetânea de bom número de ensaios do Objecto Celebrado. A Matéria Intensa é, pois, irmã deste Objecto, filha do mesmo Sujeito, isto é, da mesma voz que em modos diferentes nos revela o Mundo.
A lucidez, a argúcia, o desassombro e o escrúpulo são algumas das qualidades de Eugénio Lisboa enquanto crítico e ensaísta, salientadas justamente por David Mourão-Ferreira na recensão que dedicou à primeira edição de A Matéria Intensa[1] e onde apontou a natureza celebrativa daquele primeiro livro de poesia no qual surgem glorificadas algumas figuras da história romana (Pompeu, Catão, Petrónio, Marco Aurélio), uma, também, da história nacional (Henrique de Sagres), outra da mitologia grega (Atena) vários poetas e artistas (Camões, Pessoa, Sena, Picasso, Reinaldo Ferreira), mas também vultos anónimos e até cidades tomadas nomeadamente como metaforização da condição humana.
Independentemente do modo, a transposição do sujeito para o objecto - celebrado, invectivado ou simplesmente contemplado - é idêntica, o recurso aos lagos não é mais do que o recurso à palavra, ao gosto das palavras transformado em matéria intensa: «os lagos são belos mas indiferentes. Suspeito mesmo que nos fitam sem nos verem. Por fim, penso que sou injusto: o mal não está neles, está em mim. Se só a minha ferida fica imune ao bem que os lagos a tudo fazem, é porque eu a preservo. Lemos mais adiante: Se o meu mal há-de ser a minha morte ele é também aquilo que me enobrece. Por isso o cultivo fingindo que o trato. Do fracasso da cura, acuso os lagos. Que estão, é claro, inocentes.»
José Régio é uma das saudáveis obsessões eugenianas que não tem cura. É verdadeiramente surpreendente que, por mais que Eugénio escreva sobre Régio, nenhum deles se esgota. Relativamente ao Príncipe com Orelhas de Burro, e a esta leitura que dele faz Eugénio Lisboa, recordo-me de ter ouvido dizer a David Mourão-Ferreira que ela "é a mais fina das leituras desta obra de Régio". Trata-se, com efeito, de uma súmula filosófica sobre o sofrimento como via de acesso - ad augusta per angusta - ao conhecimento, à perfeição inconciliável com a vida que é o seu preço. Círculo em devir, simultaneamente vicioso e salvífico que atinge a perfeição na morte. Como diz Eugénio: "Romance da vida. Da vida que devém morte que devém vida". Será ainda a morte salvífica, "concentração de virtude", que está reservada aos mortos, no poema que abre A Matéria Intensa:
Naturalmente porque são a perfeição que nós lhes emprestamos ao pensá-los. Os mortos vivem dos vivos, como os textos vivem dos críticos como Eugénio Lisboa, que ressuscita o príncipe Leonel, em cada uma das suas palavras, transformando-as em matéria intensa da poesia que também se faz em prosa. Outra obsessão de férteis consequências é Fernando Pessoa. Repare-se nomeadamente nas três leituras insertas em O Objecto Celebrado: na primeira, intitulada "Uma tranquilidade violenta - Fernando Pessoa e a rotura modernista," escrita aquando do cinquentenário da morte do poeta, Eugénio chama a atenção, desde o primeiro parágrafo, para a sua intenção de examinar criticamente "alguns confortos estabelecidos": O ensaio começa por clarificar o conceito de leitura e cita desde logo Pessoa: "A mór parte da gente não sabe ler e chama (ler) a adaptar a si o que o autor escreve, quando para o homem culto, compreender o que se lê é, ao contrário, adaptar-se ao que o autor escreveu". Subtil diferença, com enormes consequências. Eugénio, em vez de adaptar a si Fernando Pessoa, vai adaptar-se a ele, isto é, tentar perceber a sua zona de penumbra, dizendo desde logo para que não restem dúvidas: «como todo o grande espírito, Fernando Pessoa contradisse-se prodigiosamente». Vai Eugénio demonstrar, como um homem de ciência que é, através de um levantamento de excertos muito completo, que não tem razão de ser o lugar-comum que faz de Pessoa um campeão de uma suposta rotura modernista, procurando mostrar que Pessoa se sentia «herdeiro» e «descendente» de uma herança que renovou e acrescentou, e não pioneiro espantado e deslumbrado de um caminho totalmente desligado dos caminhos que o precederam. Também em Matéria Intensa encontramos em diversos poemas um frequente diálogo com a figura de Pessoa, uma figura humanizada na própria grandeza que não foge às vicissitudes da humana condição. Num desses poemas que ostenta o seu nome no título ele é apresentado como
Esta relação Eugénio / Pessoa é realmente das mais curiosas e encontrará o seu cume no terceiro texto inserto neste Objecto que se intitula "Um Estrangeiro na Terra". Trata-se de uma verdadeira obra-prima da arte de recriar uma obra dando-lhe corpo, voz e fabricando em corpo e alma, se posso dizê-lo, um ente compósito feito dos mil pedaços do que, com humor, Eugénio costuma designar a "paróquia heterónima". Este texto, repassado de finíssima ironia, constitui-se como imaginário monólogo interior de um ser trágico, grandioso, afirmando os seus limites, desmistificando o mito em que se tornou, sofrendo a dor de a não sofrer, ou de não ousar sofrê-la. Um ser de excepção, criado por um texto de excepção, construído com trechos de excepção. Um ente estrangeiro, no sentido camusiano do termo, que se confronta com o espanto de que é feito o seu estranhamento, na hora estranha em que estranha morrer o que não viveu, mas que vive e se eterniza sentindo-o quem o lê:
"Morto, vou finalmente ter uma espécie de vida. Vivo, fui uma espécie de morto. Ser é sempre o contrário de realmente ser. Os deuses riem-se, tirando-nos até o que parece que dão. Na vida, morremos, que é o que viver quer dizer. Na morte, vivemos de uma maneira de que só os outros se apercebem - a nossa morte definitiva é a nossa vida - para - uso - deles."
Esta vida para uso alheio é ainda um duplo ilusionismo de quem diz o que imagina que os outros diriam. Ainda aqui "os ilusionistas do verbo vendem música e sedução por pensamentos". No livro de poesia de Eugénio, que tenho vindo a citar em paralelo, figura um poema intitulado «Marco Aurélio» o qual coloca o imperador estóico naquela mesma situação limite do "fantasma pessoano", todavia em substancial diferença, pois que a angústia deste último é naquele serenidade, "discreta melancolia" de quem sabe que tudo passa um dia, como se lê na epígrafe que abre O Objecto Celebrado. Mas o que poderá ser afinal objecto de celebração se tudo passa um dia? Talvez a consciência crítica dessa passagem possa ser celebrada através da palavra - objecto da Literatura.
O segundo livro de poesia de Eugénio Lisboa com um título colhido em Milton -O Ilimitável Oceano, sendo poesia do melhor quilate, tem ainda a vocação do ensaio desde logo na sua estrutura conforme os tratados clássicos: abre com um Prólogo, tem o seu desenvolvimento na secção principal - «Os Argonautas», segue-se-lhe o Epílogo e termina com Algumas Conclusões. É acção de pensar, mas é também acção de concretizar experimentando, pondo à prova uma ideia nova: a de historiar - e observe-se a rigorosa ordem cronológica das figuras historiadas -, mas também de celebrar os vultos canónicos da ciência ocidental, sendo esta uma outra forma de homenagem em Eugénio Lisboa- a homenagem da convergência.
O Ilimitável Oceano continua A Matéria Intensa não apenas como resultado da procura da palavra exacta, mas ainda como prolongamento da natureza celebrativa referida por David Mourão-Ferreira e transposta agora para as figuras cimeiras da História da Ciência da Civilização Ocidental: Thales de Mileto, Anaxágoras, Pitágoras, Empédocles, Demócrito, Euclides, Teodoro - o Engenheiro-, Arquimedes, Ptolomeu, Bartolomeu Dias, Copérnico, Galileu, Kepler, Descartes, Pascal, Newton, Bohr, Einstein, Oppenheimer e Carl Sagan (subentendido nos títulos dos poemas finais – “O Inverno Nuclear” e “O Outro Inverno Nuclear”). Entre estes argonautas do Conhecimento navega um português – Bartolomeu Dias - a mostrar que o importante na vida é dobrar o “Assombro”, desflorar o mistério, procurar como o astrónomo o“surto de algum medo” (p.17) para afinal descobrir a não-razão do medo, para tomar a coragem como meio e fim: ”Dobrado o Assombro, foi que tu viste / não ser o mar diferente. Então, voltaste. / Desflorado o mistério, não existe /motivo para novo esforço: cessaste.”(p.37)
Do lado da Arte apenas um nome-sinédoque - Van Gogh - símbolo do artista devorado pela sede de infinito, diríamos que a procurar exactas as cores de que precisa nas estrelas, exactamente como o poeta, para lançar mão ao infinito: “Devora-me a sede de infinito./ Que vou fazer? Como resolvê-la?/ Decido: saio para a noite e fito / o espaço nu, a luz duma estrela”.(p.51) A exactidão de Van Gogh assemelha-se à do poeta: não se trata de procurar qualquer fidelidade ao real, mas antes de obter uma transmutação da cor (na tela, no corpo do poema) para a exprimir na plenitude da sua força pictórica e poética. Quadro e poema que não mais obedecem ao cânone do “miroir qu’on promène le long d’un chemin”, conforme a epígrafe de Saint-Réal que abre o cap. XIII de Le Rouge et le Noir (e a senhora de Rênal não pode ser esquecida, pour cause…), mas que inventam um caleidoscópio de espelhos - realidade e virtualidade consubstanciadas. A poesia será, pois, ilimitável oceano, paraíso perdido, prometaico pecado original de quem se arroga o direito de roubar o fogo aos deuses.
O livro de Eugénio Lisboa, enquanto exemplo da interacção entre o pensamento humanístico e o pensamento científico, é poesia, entendida aqui na linha dualista de Octávio Paz – “filha do acaso; fruto do cálculo” (observe-se o rigor métrico destes poemas)[2] Como Thales de Mileto (p. 19) o poeta tenta comprender as leis do universo sem aos deuses recorrer : “descobrir é um reverso”.O desconhecido será o que está do lado oposto ao que se observa, mas também o que reverte, o que volta ao ponto de partida – soma de verso e anverso, soma de poesia e de história da ciência, natureza anfíbia deste livro de Eugénio Lisboa que, como Anaxágoras pergunta “Qual o fim da vida?” e responde: “O sol, a lua, os céus investigar”(p.21). Ainda aqui a metáfora do Conhecimento como busca de exactidão, de procura de sentido – do Noûs da obra do próprio Anaxágoras – algo aparentado com o Infinito, a um tempo pensamento e vontade, inteligência eterna, «everything» como dizem os físicos teóricos, Deus, como dizem os crentes, desconhecido inventável como dizem os poetas, sagrado Tetraktys de Pitágoras, raiz e fonte da criação:
“Do número, tudo nascia / outros números, a verdade, / a curva que o astro seguia, / a beleza, em vida, a cidade.” E como não há bela sem senão: “Só dentro de ti não cabia / raiz de dois ser realidade”(p.23).
Modelo de Lucrécio e Hölderlin, Empédocles, que acreditava no princípio do amor e do ódio, da atracção e da repulsa, é ele mesmo símbolo do poeta romântico, do homem dividido: “Julgava-se um deus? Pensavam que o era? / Com argumentos seus / e o uso de uma esfera, / ao ar deu existência. / Mostrando o invisível, / na sua transparência, / ele disse o indizível: / Crê só na experiência. // E teve morte ardente, / saltando à lava quente.” (p.25)
É próprio dos poetas perscrutarem os segredos à maneira de Arquimedes: a impulsão da inspiração será igual ao peso do volume da imaginação deslocada? Suponho que ninguém saberá responder, nem mesmo o soube o físico de Siracusa. Sobre ele escreveu Eugénio Lisboa: “Nos líquidos perscrutou /o segredo vertical / de uma força que achou:/ descobrir é casual, / quando muito se pensou. (p. 33)
A busca da “mortalidade adiada” tem sido um dos principais intentos dos poetas. Assim com o astrónomo Ptolomeu sentindo que se eleva acima da sua humana condição: “Como todos, sou mortal:/ minha vida é um dia./ Mas quando sigo, fatal, / no céu que nos alumia, /a multidão das estrelas, /em seu curso circular, /sinto deslumbrado nelas, /meus pés do chão, levantar”. (p. 35) E para marcar que é a “forma de olhar” que faz verdadeiramente a diferença, diz-se de Copérnico: “O céu que viste era o céu / de Ptolomeu. Mas diferente / foi a forma de o olhar. / No modo de julgar, teu, / a Terra, astro movente, / demitiu-se de pensar /que era o centro do mundo: / assim ver, que abalo fundo!”(p.39) A ousadia, a coragem que implica remar contra a maré, contribuir para a mutação de paradigma encontramo-la nos poetas tal como nos cientistas. É a mesma a humildade e altivez no ousar, idênticas nos objectivos, diferentes nos métodos, as formas de perscrutar o movimento do mundo. É “cândido o olhar” do poeta à semelhança do de Galileu: “As leis do movimento perscrutaste, / com paciência e cândido olhar. /Com o mesmo olhar o vasto céu sondaste / humilde mas altivo no ousar.” (p. 41)
Em contraste com o mundo próximo caracterizado pela podridão, fome, conflito e pestilência, surge o espaço do Conhecimento, a “pureza da ciência” que faz a diferença e que faz avançar o mundo como no poema dedicado a Kepler: “O mundo próximo, à volta, apodrece. /Fome, mortal conflito e pestilência / turvam o dia que mal amanhece. /Segura-se à pureza da ciência: o curso aparente das estrelas. / seguindo matemática divina, / deriva, das rigorosas tabelas / do vasto cosmo, a curva sibilina.” (p. 43)
Sibilina é também a curva do Eu de Descartes que existe porque pensa e porque pensa existe: “Se penso que sou, /existo. Pensar / que sou é ser. Vou /ser o que achar / que sou. Inventou / terra, mar e ar / quem nisso pensou.” (p. 45)
O estudo dos problemas do cálculo de probabilidades fará talvez dizer a Pascal pela pena de Eugénio Lisboa: “Não penso, no vasto espaço denso, / encontrar a minha dignidade: / tão só no domínio do que penso. / Ter mundos é pura inanidade:/ qual átomo, o espaço me devora /e anula; e só o pensamento/ que me habita e em mim demora / me dá, do universo, entendimento.” (p. 47)
Alberto Caeiro talvez aceitasse dizer como o Newton de Eugénio Lisboa: “Da qualidade oculta de tudo, / não cuido, nem sei. Não é de ofício / sério sabê-lo: o tudo é mudo / e forçar-lhe a fala é sério vício. / Dos fenómenos, deduzo leis / de movimento e destas derivo / qualidades e acções: vereis / que o saber, assim, avança, altivo”. (p. 49)
A altivez do saber de Newton, mas também o seu contrário:”o tudo é mudo” ver-se-ia mais tarde cerceada pela mecânica quântica e pelos “mistérios” da indeterminação bem como das suas consequências anunciados no poema dedicado a Niels Bohr: “Os corpúsculos e as ondas / são a mesma realidade. / Assim sendo, tu já sondas / o começo de uma idade. (Perscrutar certos segredos / que a natureza escondera / é fundamento dos medos / do frio que nos espera)” (p. 53)
O frio enquanto metáfora da morte por causa natural ou por catástrofe surgirá nos poemas finais do livro . E as portas do futuro abertas pela teoria da relatividade contêm também o germen da desconfiança pelo que virá depois. Assim o lemos no poema de Einstein: “E igual a mc dois / abriu as portas do ignoto:/ o que há-de vir depois / é o frio: aqui o noto.” (p. 55)
Frio este que com Oppenheimer se transformará em fogo já que foi director de Los Alamos, a central onde se preparou a destruição de Hiroshima e Nagasaki: “Olhando o deserto em fogo, / promessa de abismos fundos, / fiz-me sentido do jogo:/ «sou morte que alisa mundos».” (p.57). ”Alisar” é um verbo repassado de ironia trágica: não tem já a conotação de maciez, de suavidade, mas de erosão, de rasura, de morte, de nadificação, nulificação, como se verá em seguida nas duas hipóteses do Epílogo, a primeira das quais, intitulada “Brisas” implicitamente dedicada a Carl Sagan : “(O Inverno Nuclear)”, cogumelo venenoso pronto a explodir sobre a cabeça da humanidade:
“Brandas, as brisas alisam / aquilo que não é vida: / sossegam, calmas, deslizam, / na fria terra despida. / solenes brisas avisam / quem já ouvi-las não sabe: / mas brisas que nada pisam / fulgor de vida não cabe.” (p. 61)
A Hipótese II (O Outro Inverno) será afinal conforme ao sub-título – “O caminho da entropia” que, segundo o modelo de Clausius levaria não à teoria de Tudo, mas ao fim de Tudo: se a entropia tende para o máximo, alcançada a máxima desordem seria nula a produção de trabalho ( morte do universo) :
“Um frio estelar rouba à glória a memória./ Ao mais e ao menos uma fria brisa alisa. / Arrefecido o homem, já da sua história / fica só nada, que o fluir do tempo pisa. / Do que fomos, nem de nos termos esquecido / traço fica. / Inocente, o tempo, liso, flui, / nem sabendo que não sabe. O já ter sido / é nem ter chegado a ser: o passado alui./ Eterno, sem lembrança, o frio acontecido.” (p. 63)
Este belíssimo poema, que se filia na linhagem da “Tabacaria” de Álvaro de Campos e na “Ladainha dos Póstumos Natais” de David Mourão-Ferreira, é, enquanto rasura da memória e do sujeito que pensa a própria existência de improvável memória, um hino ao que poderá vir a ser desejando o poeta que o não seja. É, pois, um pôr em causa da ciência não enquanto ciência mas de algumas das suas nefastas aplicações. É uma revalorização do homem enquanto ser que comanda, para o bem ou para o mal (e não para além do bem e do mal) o seu destino. É talvez a melhor forma de exprimir o desejo de que fique eterno na memória o calor acontecido quando os homens souberem dar as mãos. Na “Conclusão I” o poeta Eugénio Lisboa só poderia apresentar-nos esta belíssima definição poética de linha recta aceitando a vida na sua precaridade, não acreditando nos mitos do eterno retorno, tendo a coragem de a aceitar na sua linearidade, de acordo com a flecha do tempo:
“A vida é o caminho mais curto entre o caos e a noite” (p.67), a organização a partir do caos, uma manhã, uma tarde e um crepúsculo de luz antes que a noite chegue inexorável. Chegue quando chegar que a luz sorvida pela vida terá valido a pena.
Na “Conclusão II” saberemos o perímetro e o diâmetro da Circunferência que limita os direitos do homem à vida e à morte: “Na perspectiva da duração do universo, todos os homens são equidistantes do frio final. O conjunto dos homens, é, pois uma circunferência cujo centro é um frio”. (p. 67)
A circunferência é o conjunto dos pontos que unem os homens nivelando-os relativamente a um destino que os ultrapassa. Leio esta definição poética de circunferência, como alusão a “todos os homens nascem livres e iguais” e todos os homens estarão igualmente nivelados no Nada a que a sua Vontade de Poder desenfreado os conduza. Será ainda um apelo à nossa humildade-grandeza de sermos feitos de pó de estrelas - em pleno sentido literal – e que pensamos e, porque pensamos, podemos agir construindo ou destruindo aquilo a que chamamos destino colectivo. Eugénio Lisboa – homem de ciência e humanista – poeta navegador neste Ilimitável Oceano de poesia celebrativa da ciência - não escreve nenhum epitáfio da humanidade, mas antes traça um círculo de equidistância entre os diversos saberes.
A condição do poeta “condenado” a uma incessante procura do Conhecimento, era já particularmente visível no belíssimo poema em prosa inserto em A Matéria Intensa : «Procuro, Exactas, as Palavras» - verdadeira ars poetica - conforme a classificou David Mourão-Ferreira, digna de figurar na mais exigente antologia do género. e que principia do seguinte modo: “Em vão procuro, exactas, as palavras de que preciso: não sei onde estão, não sei sequer se as conheço, se algum dia as vi e se, tendo-as visto, as reconhecerei quando voltar a encontrá-las (...) Procuro, exactas, as palavras de que preciso, isto é, as palavras que não me vão servir. O que preciso é aquilo de que não preciso. Só me serve o que não me serve. Falhar é triunfar. Conseguir é ficar parado. Triunfar é, definitivamente, perder. Pratiquemos, meticulosamente, a arte sinuosa de procurar, exactas as palavras que não são”.[3]
E, porque Eugénio Lisboa é exímio praticante da "arte sinuosa de procurar, exactas, as palavras que não são", será ainda a arte da inteligência revelada na busca do rigor e clareza dos textos, que se constitui também como objecto de arte. Porque rigor e beleza são susceptíveis de coexistência pacífica. Por que razão o binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo? Verso tantas vezes citado e que nunca vi explicado, em termos matemáticos, pelos nossos homens e mulheres de letras. Simples comparação metaforizante do engenheiro Álvaro de Campos? Bem mais do que isso. O binómio de Newton é realmente belo pela harmonia simétrica com que se dispõem os seus elementos, pela elegância da sua construção usando o triângulo de Pascal, onde qualquer desses elementos pode ser obtido de forma simples, à custa das linhas anteriores, juntando assim a simplicidade à beleza visual de serem capicuas as linhas do triângulo de Pascal. A fonte de Castália não é a única fonte onde bebeu energia o engenhoso poeta e ensaísta Eugénio Lisboa, porque, como raros, tem sabido mostrar nas suas obras aquele mesmo esprit de géométrie, mas também de finesse, teorizado por Pascal, em suma, a beleza que existe no rigor da ciência(Q.E.D.)
Teresa Martins Marques
[1] Cf. 2ª edição revista e aumentada: Lisboa, Instituto Camões, 1999.
[2]Cit. por David Mourão-Ferreira como epígrafe a Imagens da Poesia Europeia, Lisboa, Realizações Artis, 1972.
[3]Idem, p. 57
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