domingo, 31 de dezembro de 2023

Inventário de razões para se ser gato

 
Os gatos nunca sonham com impérios,
não trocam nunca uma boa soneca
pela honra de dirigir ministérios
ou pelo direito a usar beca.
 
Os gatos não cambiam um petisco
por um Rolls-Royce ou por um Ferrari.
Se pretendem estender-lhes um isco,
mostrem-lhes um prato de calamari.
 
Os gatos têm ambições modestas:
cama, mesa e roupa bem lavada,
de vez em quando, umas lindas festas,
 
e, de preferência, não fazer nada!
Se o gato em qualquer nicho cabe,
o gato, acima de tudo, sabe!
                31.12.2023
Eugénio Lisboa

Ao domingo Há Música



Quem tente interpretar a Humanidade pelos seus olhos descobrirá muita coisa estranha e que não poderá de deixar de lhe causar perplexidade.
                                        Samuel Bellow, O velho sistema . Contos e Novelas II


No último domingo do ano,  um ano de tantas perplexidades, o convite musical vem cheio de luz e energia. 
O primeiro refere-se  ao universo estelar que se ofusca ao  nosso olhar cru , mas que se desvela em eventos cheios de brilho e luz . Dizem os cientistas que " as supernovas são criadas por estrelas gigantes e podem ocorrer por factores diversos. Uma hipernova é um evento ainda mais energético, caracterizado por uma libertação de energia colossal, até 100 vezes maior que a de uma supernova. As hipernovas são extremamente raras no Universo: estima-se que ocorrem apenas quando estrelas extremamente massivas, superiores a 30 vezes a massa do Sol, chegam ao fim de sua vida. Os processos que podem desencadear uma hipernova são complexos e ainda não totalmente compreendidos, porém, um dos principais modelos teóricos sugere que a morte de estrelas supermassivas envolve a formação de um buraco negro central rodeado por um disco de acreção de matéria que emite poderosos jactos de partículas em direcções opostas. Esses jactos colidem com o material ejectado pela estrela em  explosão, criando um evento ainda mais brilhante e energético que uma supernova convencional, sendo possivelmente a classe de eventos mais energética depois do Big Bang. 
Sejam por colapsos nucleares, colisões, roubo de material ou por tantas outras maneiras, a morte das estrelas sempre gera um espetáculo único. Talvez a estrela mais brilhante no céu não seja uma estrela jovem e sim, uma anciã dando seu último adeus."

Eternal Eclipse, em Hypernova (Official Music Video).Composição de Cyrus Reynold, do álbum Outerlife.


Que 2023 se despeça em definitivo e venha 2024 com um novo  alvorecer !
Eternal Eclipse, em  Awakening (Official Music Video).Composição de  Nathan Whitehead, do álbum Outerlife.

sábado, 30 de dezembro de 2023

2023


Há anos em que não acontece nada, e há anos em que parece que não pode acontecer mais nada!
por José Couto Nogueira
“A actualidade persegue-nos. Mesmo que não queiramos prestar atenção, as situações entram-nos pela porta dentro e é impossível ignorá-las. Não são só os acontecimentos em si, mas também aquilo que os acontecimentos sugerem que vai acontecer a seguir. Um desatino.
Há quem prefira preocupar-se ou entusiasmar-se com “fait divers”, o custo do azeite ou o futebol, para evitar interiorizar o que se está a passar à nossa frente ao vivo e a cores - felizmente, na televisão. para a maioria, por enquanto. Cidades destruídas, crianças ensanguentadas, homens poderosos a quem não demos nenhum mandato a extravasar os seus egos provocando desgraças inauditas; 2023 foi um ano tão repulsivo que até parece que o período imediatamente anterior da pandemia (2019-21) foi um passeio de barco à vela - solitário e confinado, mas com vistas idílicas.
Estou a mostrar-me assustador, exagerado? Digo-lhes já que sou uma pessoa optimista, que ainda tem aquela ilusão utópica de que a humanidade tem futuro e se há-de safar dos seus próprios disparates. As coisas que considero más - ou mesmo más sob qualquer consideração - podem ser vistas como tropeços na caminhada da espécie para um futuro misterioso mas não inevitavelmente catastrófico.
Além disso, definir os eventos que marcaram o ano é sempre uma escolha parcial e deixa de fora áreas que são importantes para uns e inexistentes para outros.
Posto isto, e seguindo o maior número de fontes que me é possível - ainda são bastantes - 2023 foi um ano que interrompeu muitas narrativas do correr dos tempos. Pode ser ou, não ser, um “ano-charneira” entre uma ordem e outra, mas foi sem dúvida um manancial de surpresas.
O pano de fundo, impossível de ignorar, são as catástrofes naturais e as alterações climáticas.
Em Fevereiro, um dos maiores terramotos do século destruiu cidades inteiras no sul da Turquia, matando 56 mil pessoas - e mais 6 mil na vizinha Síria. Em Setembro, outro tremor de terra em Marrocos - o mais devastador na história da cordilheira do Atlas - reduziu a nada uma quantidade ainda não definida de vilas e aldeias e matou pelo menos três mil pessoas. O número exacto, muito maior, nunca se saberá. A incerteza deve-se à resposta miserável das autoridades marroquinas, que recusaram ajuda internacional e não agiram atempadamente, nem sequer para fazer o balanço do desastre. Já no final do ano, e ainda a decorrer, uma série de erupções vulcânicas excepcionais na Islândia obrigou à evacuação de várias localidades. Como a Islândia é um país civilizado e está habituada a grande actividade vulcânica, as evacuações preventivas evitaram vítimas, mas ainda não se sabe o grau de destruição material.
As alterações climáticas manifestaram-se em temperaturas nunca sentidas - no Brasil, 44,8ºC perto de Belo Horizonte 42,5 no Rio de Janeiro e 37,8 em São Paulo; no Mali a temperatura média chegou aos 28,83ºC. No mundo inteiro o calor médio anual foi de  28,83ºCnão parece muito, mais há que notar que é uma média, ou seja, inclui as quatro estações. Outubro como um todo foi 1,7°C mais quente do que uma estimativa da média realizada para o período 1850-1900, ou seja, o período de referência pré-industrial. O planeta ultrapassou os mais de 1,5°C de elevação média da temperatura, um valor que só se esperava para 2050.
A onda de calor provocou estiagem sem precedentes e uma série de incêndios nunca vistos em Rodes e Corfu (Grécia) além de 18 milhões de hectares de floresta no Canada, para só falar nos mais divulgados. O fumo vindo das florestas canadianas chegou a Nova Iorque, a três mil quilómetros de distância! A subida de temperatura nos oceanos provocou o degelo de grandes massas de gelo nas calotas norte e e sul, o que por sua vez provocou uma subida da água dos oceanos. A ilha da Palau, situada na Oceânia, com cerca de 450Km2, já começou a fazer planos para evacuar os seus 21.000 habitantes. Os tufões (tornados), que aumentam de intensidade com o calor da superfície da água do mar, também se multiplicaram este ano. Nos Estados Unidos, o país tradicionalmente mais atingido, contaram-se mais de 1.200.
Não existem mais dúvidas na comunidade científica de que as subidas de temperatura se devem à a acção humana - dai que 2023 seja o terceiro ano de um novo período da Terra, chamado Antropoceno, nome que significa que, pela primeira vez na História do mundo, há um novo período geológico provocado pela acção do Homem.
O grande motor das alterações climáticas é o uso dos combustíveis fósseis - sobre isso também já não há dúvidas na comunidade científica - mas 2023 assistiu à maior palhaçada na pseudo-reacção a essas alterações - o COP28, a cimeira internacional para lidar com um problema que ameaça a extinção da espécie. Como já falei aqui noutra altura, decorreu num país produtor de petróleo, dirigida pelo director da petrolífera nacional, e com a presença de mais lobistas pró-pretróleo do que delegados nacionais. À última hora conseguiu-se uma declaração dúbia em que se fala de “transição” da energia fóssil para outros tipos não poluentes em 2050 - daqui a 27 anos. É a altura de lembrar que todos os objectivos acordados nos COP anteriores não foram alcançados, e assim caminhamos para o abismo com um sorriso hipócrita, incapazes de abdicar dos confortos que os produtos pretolíferos nos proporcionam.
Então, o ambiente é o cenário do espectáculo deste ano. É a altura de passar aos protagonistas. Ao nível internacional, os mais salientes foram, sem dúvida, Vladimir Putin, a sua nemésis Volodymyr Zelensky, o inevitável Donald Trump e o “enfant terrible” Mohammed bin Salman Al Saud. Fora estes, a lista depende muito dos interesses de quem a faça. Basta vasculhar a Internet para encontrar listas para todos os gostos. Por exemplo, uma delas, do site Legit coloca Cristiano Ronaldo em primeiro lugar. A revista Time, fez uma lista dos “100 mais influentes” do ano que inclui pessoas como o actor Michael B. Jordan, o cantor Shervin Hajipour e dezenas de outros que, para a maior parte do mundo, são desconhecidos. E houve figuras que encheram as manchetes durante parte do ano, como o líder russo Yevgeny Prigozhin e depois desapareceram (no caso dele, literalmente) e que para o ano já ninguém se vai lembrar.
Melhor do que avaliar o ano pelos protagonistas, é lembrar os acontecimentos. Como sempre, as guerras são os mais importantes; não há maneira de nos livrarmos delas. Há sempre algumas a decorrer, todos os anos - aliás, todos os dias - mas as duas que marcaram 2023, transitam para 2024 e nunca mais serão esquecidas, são, obviamente, a da invasão da Ucrânia pela Federação Russa e a destruição da faixa de Gaza por Israel. As duas produziram imagens que já não esperávamos ver no mundo - não esperávamos pela ingenuidade de pensar que o Homem tinha evoluído o suficiente para não destruir cidades à bomba, matar pessoas à fome e outras barbaridades à escala industrial.
Nem vou registar aqui os massacres que ocorreram um pouco por toda a parte durante 2023, do Darfur à China (os Uhigur), as guerras civis, os tiroteios que ocorrem diariamente nos Estados Unidos, os genocídios em Mianmar e Ruanda - nada disto será lembrado para o ano, quer continue, que acabe.
Atípica, em 2023, é a coincidência de pelo menos duas guerras com repercussões internacionais. Atípica é a crispação do radicalismo dentro dos países, quer seja por causa dos imigrantes, decadência dos serviços públicos e divergências políticas. Em 2023, todos os dias, quando ligávamos a televisão, acontecia alguma coisa nova e esquisita, senão deprimente, senão terrível. Políticos que venderam a cara para ficar no poder (como Pedro Sanchez em Espanha), dirigentes incompetentes que não se sentiam obrigados a demitir-se (como Kevin McCarthy nos Estados Unidos ou João Galamba  em Portugal, para dar dois exemplos nas antípodas)
Para mim, 2023 foi o ano em que percebi que “isto” - o meu país, o mundo de todos nós - não vai melhorar, só pode piorar. Já devia ter percebido há mais tempo, os sinais estavam todos lá, mas, não sei porquê, aconteceu este ano. Situações que não se podiam imaginar e, pior, não se vê como se poderão resolver. 2023 foi o ano em que o bom senso se extinguiu oficialmente.
Feliz Ano Novo! “
José Couto Nogueira, em Artigo de Opinião , Sapo ( Madremedia), 23.12.2023

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Ser gato


Não é gato quem quer, é só quem pode.
Se nem Leonardo inventou o gato,
o melhor é que ninguém se incomode
a querer entrar nesse campeonato.
 
Ser gato é empresa transcendente,
muito além de qualquer poder humano.
Sonhar sê-lo é sonho de demente,
que ignora as subtilezas do bichano.
 
O mais que se pode é tender pra gato,
mas sem nunca lá se poder chegar!
O percurso a fazer, longo e chato,
 
convida o candidato a meditar:
antes, talvez, evitar as alturas,
do que ficar com nódoas e fracturas.
                       29.12.2023
Eugénio Lisboa

Os inquietos

 
I. O prelúdio de Hammars
        Um mapa da ilha
 
Só podia utilizar mapas imaginários
ou as suas recordações de mapas reais,
mas isto bastavalhe.
John Cheever — «O Nadador»
 
“Ver, recordar, compreender. Tudo depende de onde te encontras. Na primeira vez que fui a Hammars, tinha pouco mais de um ano de idade e nada sabia acerca do grande amor revolucionário que me tinha levado até ali.
Na verdade, havia três amores.
Se existisse um telescópio que pudéssemos apontar para o passado, eu poderia dizer: olha, aqui estamos nós, foi assim que aconteceu. E sempre que duvidássemos se aquilo que recordo correspondia à verdade, ou se aquilo que recordas correspondia à verdade, ou se aquilo que aconteceu de facto aconteceu, ou se sequer existíamos, poderíamos juntar‑nos e espreitar o passado.
Numero, ordeno e catalogo. Afirmo: eram três amores. Tenho agora a idade que o meu pai tinha quando nasci. Quarenta e oito anos. A minha mãe tinha vinte e sete, e na altura parecia em simultâneo muito mais velha e muito mais nova do que era.
Não sei qual dos três amores chegou primeiro. Mas começo com o que surgiu entre os meus pais em 1965 e que terminou antes de eu ter idade suficiente para o recordar.
Vi fotografias e li cartas e ouvi‑os falar do tempo que passaram juntos, e ouvi também relatos de outras pessoas, mas a verdade é que não se pode saber muito sobre a vida das outras pessoas, em especial dos próprios pais, e sobretudo se esses pais fizeram questão de transformar a sua vida em histórias que desde então contam com uma naturalidade que advém de não se preocuparem minimamente com o que é verdade e o que não é.
 O segundo amor é um prolongamento do primeiro e concerne um casal de namorados que se tornaram pais e a rapariga que era sua filha. Amava os meus pais sem reserva e dava como certa a sua existência, como a das estações do ano ou dos dias, ou das horas, um era a noite e o outro era o dia, um terminava onde o outro começava, eu era filha dela e filha dele, mas, tendo em conta que eles também queriam ser crianças, facilmente se percebe que nem sempre era fácil ser sua filha. E há mais uma coisa. Eu era filha dele e filha dela, mas não era filha deles, nunca fomos três, e, quando vejo a pilha de fotografias que tenho à minha frente na mesa, não encontro uma única imagem em que apareçamos os três juntos. Ela e ele e eu.
Essa constelação não existe.
Queria tornar‑me adulta o mais depressa possível, não gostava de ser criança, tinha medo das outras crianças, da sua inventividade, da sua imprevisibilidade, das suas brincadeiras, e, para expiar a minha própria infantilidade, costumava imaginar‑me capaz de me dividir e de me transformar em várias pessoas, de me converter num exército de liliputianos, e nós tínhamos muita força — éramos pequenos, mas éramos muitos. Dividia‑me e marchava de um para o outro, do meu pai para a minha mãe e da minha mãe para o meu pai, tinha muitos olhos e muitos ouvidos, muitos corpos magros, muitas vozes agudas e muitas coreografias.
O terceiro amor. O lugar. Hammars, ou Djaupadal, como se costumava chamar antigamente. Era o lugar dele, não dela, não das outras mulheres, não dos filhos, não dos netos. Durante algum tempo, senti que pertencíamos àquele lugar, que era o nosso sítio. Se é verdade que todos têm um lugar — não é verdade, mas se o fosse —, aquele seria o meu lugar, em todo o caso mais meu do que o nome que me deram, porque passear por Hammars não era tão angustiante quanto passear pelo meu nome. Reconhecia o cheiro do ar e o mar e os rochedos e o modo como os pinheiros se dobravam ao vento.
Dar um nome. Dar e receber e ter e viver e morrer com um nome. Gostaria de ter escrito um livro sem nome. Ou um livro com muitos nomes. Ou um livro onde todos os nomes fossem tão normais que os esqueceriam de imediato, ou que soassem tão semelhantes que fosse impossível distingui‑los uns dos outros. Os meus pais deram‑me (após muita hesitação) um nome, mas nunca gostei desse nome. Não me reconheço nele. Quando alguém me chama pelo nome, sobressalto‑me como se me tivesse esquecido de me vestir e só então me apercebesse de que estava na rua e rodeada de pessoas.
No outono de 2006 aconteceu algo que posteriormente entendi como um eclipse — um escurecimento.
A astrónoma Aglaonice, ou Aganice de Tessália, como também é conhecida, viveu muito antes de o telescópio ser inventado, mas conseguiu, apenas com a ajuda dos seus olhos, calcular com precisão quando ocorreriam os eclipses lunares.
Consigo atrair a Lua até mim, disse ela. Sabia aonde e quando ir.
Sabia o que iria acontecer e quando. Estendia os braços ao céu, e o céu ficava negro.
Nos seus Preceitos Conjugais, Plutarco adverte para o perigo daquilo a que chama bruxas, como Aglaonice, e instiga os recém‑casados a ler, aprender e a manterem‑se informados. Uma mulher que domina a geometria, escreve ele, não sentirá necessidade de dançar. Uma mulher instruída não se deixa ludibriar pela insensatez. Uma mulher sensata e com conhecimentos de astronomia rir‑se‑á à gargalhada sempre que outra mulher a tente convencer de que é capaz de atrair a Lua até si.
Ninguém sabe ao certo quando Aglaonice viveu. O que sim, sabemos, e que Plutarco de algum modo reconheceu, ainda que se lhe tenha referido com tanta condescendência, é que ela era capaz de prever quando e onde ocorreriam os eclipses lunares.
Lembro‑me perfeitamente de onde estava, mas falta‑me a capacidade de prever o que quer que seja. O meu pai era um homem pontual. Quando eu era criança, abriu o relógio de pêndulo que havia na sala e mostrou‑me o seu interior. O pêndulo. Os pesos de latão. Exigia pontualidade a si mesmo e a todos os outros.
No outono de 2006 restava‑lhe pouco mais de um ano de vida, mas eu ainda não o sabia. Nem ele. Esperava‑o junto ao celeiro de pedra caiado de branco e com a porta vermelho‑ferrugem. O celeiro tinha sido convertido em cinema e estava rodeado de campos de cultivo, muros de pedra e umas poucas casas. Não muito longe situava‑se o lago Dämba, um local com uma grande riqueza ornitológica: entre as espécies que o habitavam, contavam‑se os abetouros, os grous, as garças‑reais e os maçaricos‑reais.
Íamos ver um filme. Quando estava com o meu pai, todos os dias víamos um filme, exceto ao domingo, e tento agora lembrar‑me que filme íamos ver nesse dia. Talvez o Orfeu, de Cocteau, um filme tão rico em imagens oníricas e pungentes. Não sei, não me lembro.
«Quando faço um filme», escreveu Jean Cocteau, «é como um sonho, e eu sonho dentro desse sonho. Só as pessoas e os lugares do sonho fazem sentido.»
Tentei uma e outra vez recordar que filme era, mas não me consigo lembrar. Os olhos demoram vários minutos a habituar‑se à escuridão, costumava dizer o meu pai. Vários minutos. Por esse motivo, combinávamos sempre encontrar‑nos às três menos dez.
Nesse dia, o meu pai só chegou às três e sete, ou seja, dezassete minutos atrasado.
Não houve nenhum sinal. O céu não escureceu. O vento não sacudiu as árvores. Não se levantou nenhuma tempestade e as folhas não rodopiaram ao vento. Uma trepadeira‑azul sobrevoou os campos cinzentos em direção ao pântano — de resto, estava tudo em silêncio, o céu nublado. As ovelhas, a que na ilha chamavam sempre cordeiros, independentemente da sua idade, baliam não muito longe  dali, como sempre haviam feito. Quando dou meia‑volta e olho em redor, tudo está como é habitual.
O meu pai era tão pontual que a sua pontualidade vivia dentro de mim. Se cresces numa casa junto à linha de caminho de ferro e acordas todas as manhãs com o comboio que passa a toda a velocidade perto do teu quarto, e que faz tremer as paredes, as pernas da cama e o caixilho da janela, acabas por acordar todas as manhãs com o comboio que passa dentro de ti, mesmo que já não vivas na casa junto à linha.
Não foi o Orfeu de Cocteau. Talvez tenha sido um filme mudo. Costumávamos sentar‑nos cada um na sua cadeira verde e deixar que as imagens, nunca acompanhadas pela música de um piano, flutuassem sobre a grande tela. Ele dizia que se perdera toda uma linguagem com o desaparecimento do cinema mudo. Teria sido A Carruagem Fantasma, de Victor Sjöström? Era o seu filme preferido. Para ele, um só dia equivale a cem anos na Terra. Tem de deambular noite e dia para atender aos assuntos do seu amo. Lembrar‑me‑ia se tivesse sido A Carruagem Fantasma. A única coisa que recordo desse dia em Dämba, além da trepadeira‑azul a sobrevoar o campo, é que o meu pai chegou atrasado. Isso custou‑me tanto a entender quanto às seguidoras de Aglaonice que a Lua tinha desaparecido. As mulheres que, de acordo com Plutarco, não sabiam astronomia e se deixavam ludibriar. Aglaonice disse: Atraio a Lua até mim, e o céu escurece. O meu pai chegou dezassete minutos atrasado e tudo foi como sempre e nada como antes. Atraiu a Lua até ele e o tempo descarrilou. Deveríamos encontrar‑nos às três menos dez, e já passavam sete minutos das três quando estacionou diante do celeiro. Tinha um jipe vermelho. Gostava de conduzir depressa e de fazer muito barulho. Tinha grandes óculos escuros cujas lentes pareciam asas de morcego. Não me deu nenhuma explicação. Não se apercebeu de que chegou atrasado. Vimos o filme como se nada tivesse acontecido. Foi a última vez que vimos um filme juntos.”
Linn Ullmann, in Os Inquietos, Relógio D’Água, 2023
 
Sobre o Livro:
"Os Inquietos é um livro sobre as conversas e recordações que a narradora preservou do seu pai, o realizador e encenador Ingmar Bergman.
Os Inquietos é uma elegia sobre a memória e a perda, a identidade e a arte, e também sobre a linguagem e as narrativas que compõem uma vida. E aceita que «não se pode saber muito sobre a vida das outras pessoas, em especial dos próprios pais».
Ela era a mais nova de nove filhos. Todos os verões, quando era ainda rapariga, visitava-o na sua casa de pedra rodeada de bosques e papoilas, na remota ilha de Fårö, no mar Báltico, onde ele procurara refúgio nos seus últimos anos de vida.
Quando se tornou adulta, ele era já um velho. Bergman considerou a hipótese de escrever um livro sobre os seus últimos anos, porque receava perder a memória e a lucidez. Tentaram escrevê-lo em conjunto. Ela fazia as perguntas e ele respondia, já com dificuldade.
Sete anos depois da morte de Bergman, Linn Ullmann encontrou coragem para escutar as gravações que fizera e preencher as lacunas com as suas memórias, recriando a história do seu pai, da sua mãe e de si própria.

Sobre a Autora:
Linn Ullmann, nascida em Oslo, é autora de seis romances, todos eles premiados, publicados em cerca de trinta línguas.
Os Inquietos, considerado um clássico moderno na Noruega, foi durante vários anos um dos livros mais vendidos na Escandinávia.
Ullmann vive atualmente na capital norueguesa.
Livro: Os Inquietos
Autor: Linn Ullmann
Tradução: João Reis
EAN: 9789897833571
Data de publicação: 22.06.2023
Nº de páginas: 352
Preço: 17,55€
Editora: Relógio D’Água

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Assim escreveu


- Paul Valéry
"Acontece-me como a muitos , mas raramente, anotar o essencial do que assim me vem à ideia. São “ideias”, “assuntos”, como se diz , por vezes duas palavras , um título, um germe. Finalmente, acontece também que, voltando aos meus papéis, me ponha a escrever o que se tinha formado por si só na minha cabeça. Escrevo como se estivesse nisso o começo de uma obra. Mas sei que a obra não existirá, sinto que ignoro a direcção que tomaria, e que me aborreceria se me aplicasse a conduzi-la a algum objectivo bem determinado. Ao fim de algumas linhas ou de uma página, desisto tendo apenas captado pela escrita o que me tinha surpreendido, divertido, intrigado, e não me preocupo em exigir dessa produção espontânea que se prolongue, organize e complete, sob as exigências de uma arte. Aqui, intervém, aliás, a minha sensibilidade excessiva em relação à arbitrariedade."
Advertência aos “Fragmentos Narrativos”

- Marcel Proust
“ Não há talvez dia da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aquele que julgámos passar sem tê-lo vivido, aqueles que passámos com um livro preferido."
O prazer da leitura

- Miguel de Cervantes
"A liberdade é um dos dons mais preciosos que o céu deu aos homens. Nada a iguala, nem os tesouros que a terra encerra no seu seio, nem os que o mar guarda nos seus abismos. Pela liberdade, tanto quanto pela honra, pode e deve aventurar-se a nossa vida."
Dom Quixote

- Raul Brandão
«Não só os sentimentos criam palavras, também as palavras criam sentimentos.(…) São a vida e quase toda a vida – a razão e a essência desta barafunda. É com palavras que construímos o mundo. (…) Mas agora que os valores mudaram, de que nos servem estas palavras? É preciso criar outras, empregar outras, obscuras, terríveis, em carne viva, que traduzam a cólera, o instinto e o espanto.»
Memórias

- Octavio Paz,
“ Pero aquello que vemos com los ojos de la memoria no es idéntico a aquello que vivimos: la vida es irrecuperable”
 Los pasos contados

- Albert Camus
"O  mundo deve hoje escolher entre o pensamento político anacrónico e o pensamento utópico. O pensamento anacrónico está em vias de nos matar. Por mais desconfiados que sejamos (e que eu seja), o espírito da realidade logo nos reconduz a esta utopia relativa. Quando essa utopia entrar na História, como sucedeu com muitas outras utopias do mesmo género, os homens chamar-lhe-ão realidade. É assim que a História não é senão o esforço desesperado dos homens para dar forma aos seus sonhos mais clarividentes." 
Actuais 

- Rousseau
“Essas horas de solidão e de meditação são as únicas do dia em que sou eu mesmo por inteiro e pertenço a mim sem distinção, sem obstáculo, e em que posso dizer de verdade que sou o que a natureza quis."
Confissões de um viajante

- Séneca
"A vida não é esperar que as tempestades passem, mas sim aprender como dançar debaixo da chuva"  
Pensamentos

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Alice no País das Maravilhas

 
Alice's Adventures in Wonderland - Knave of Hearts,  Pas de deux (The Royal Ballet), interpretado  por  Sarah Lamb como Alice e Federico Bonelli como Jack/Knave.

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Ode (insuficiente) ao gato

De bons condimentos, é, de certeza,
feito o gato, emissor de beleza,
inventor de quanto é esbelteza,
descendente da mui alta nobreza,
dotado de altíssima destreza,
com momentos raros de safadeza,
e tiques de inigualável leveza,
mesmo meditando, a cocar a preza,
filósofo, todo ele subtileza,
implacável, mas sempre com fineza,
dado a ademanes de Sua Alteza,
fazendo tal inveja à gentileza,
de cauda perpendicular e tesa,
é tudo isto o gato, de certeza,
pra já não falar da sua esperteza!
                      24.12.2023
Eugénio Lisboa

O Natal


Natal
 
O Natal é uma bonita ficção,
e, como todas as ficções, absurdo:
os condimentos sofrem de inflação
e a música de fundo encanta um surdo.
 
Nada, ali, faz, que se veja, sentido:
uma mãe abençoada e virgem,
um filho com pai que não é marido,
grandes mistérios que causam vertigem.
 
Com tudo isto se faz uma festa,
sem precisar de verosimilhança:
de belos presentes enche-se a cesta,
 
o Pai Natal intruja a criança
e a mentira fardada de verdade
alegra toda a comunidade.
                     26.12.2023
Eugénio Lisboa 

Painel do Infante D. Henrique de Nuno Gonçalves



Painel do Infante D. Henrique de Nuno Gonçalves
(Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa)
Análise de Rui-Mário Gonçalves

"Este painel faz parte de um políptico constituído por seis painéis que foram encontrados em 1882 no Mosteiro de S. Vicente de Fora, em Lisboa. O mestre que realizou tão prodigiosas pinturas deve ter sido Nuno Gonçalves (c. 1438-1481), pintor do rei D. Afonso V, entre 1450 e 1472. Foram concebidas, assim como mais algumas, para o retábulo da capela dedicada ao mártir S. Vicente, na Sé de Lisboa, cerca de 1470, e depois transferidas para o Mosteiro de S. Vicente de Fora, por ocasião da ocupação filipina (1580-1640). Dado o estado de abandono em que foram encontradas, tem sido difícil aos especialistas da arte quatrocentista concordarem quanto à sua seriação e até quanto à iconografia. O painel aqui reproduzido tem sido designado por “o painel do Infante D. Henrique”, pois aí aparece a figura do grande empreendedor das descobertas marítimas, tal como aparecera num livro de Gomes Eanes de Zurara “Crónica da Guiné”, com o seu chapéu de abas largas.
Considerando o conjunto das tábuas, verificamos que constituem uma inovadora conceção de retrato coletivo, apresentando seis dezenas de rostos de forte carácter, perfeitamente individualizados, cobrindo uma vasta gama da sociedade portuguesa, príncipes, guerreiros, pescadores, frades e letrados, em veneração do santo. O historiador francês René Huyghe afirmou que “na arte de Nuno Gonçalves e da sua escola, há, além do contributo do seu génio, a realização de uma nova etapa da alma ocidental que parte à conquista de si própria (…), pela primeira vez o homem moderno define-se antes de mais como indivíduo: o homem moderno nasceu (…)".
Pode portanto afirmar-se que, quando, no século quinze, a Europa erudita construía a sua mais peculiar metodologia da representação do mundo visível, os pintores portugueses davam uma contribuição fundamental, avançando na afirmação do valor da vontade humana. E esta é a mensagem que imediatamente se apreende nas tábuas de Nuno Gonçalves, onde se pode observar que assumiram a continuidade da aposta política de 1385, também esse considerado geralmente um acontecimento histórico de notável modernidade.
A nova metodologia pictural europeia não surgiu inopinadamente na sua totalidade. Foi sendo construída lentamente, etapa por etapa, de Giotto a Rafael, em Itália, e por outros, no centro e norte da Europa: a opacidade das figuras e sua sobreposição, a unidade de iluminação e a sugestão de relevos, a cor local e a diferenciação das texturas, a correção anatómica e as proporções naturais, o desenho minucioso e a perspetiva linear… Tudo isto existe já na pintura de Nuno Gonçalves, mas como montagem dos dados das etapas enunciadas e ainda não completamente como unidade “naturalista”. Assim, pode reparar-se que nos três planos em que aparecem os rostos não verificamos a diminuição dos tamanhos aparentes destes, tal como a perspetiva linear exigiria: são rostos sensivelmente do mesmo tamanho, os que estão “longe” e os que estão “perto”. Compare-se o rosto do Infante com os dos que lhe estão atrás. Há uma separação brusca entre o espaço vazio junto ao chão e o espaço todo cheio na parte superior, onde as personagens se conglomeraram. As roupagens do santo estão rebatidas para a frontalidade, destacando os padrões do tecido, em contraste com as volumetrias e relevos das roupagens dos outros. Em suma: como “montagem”, a pintura adquire a nitidez de uma escrita de imagens que não abdica de algumas características góticas para melhor clareza expositiva."
(Obras de referência da Cultura Portuguesa : projecto desenvolvido pelo Centro Nacional de Cultura, com o apoio do Ministério da Cultura)

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Natal

 

Música ligeira
Grácil melodia 
Que sobes de à beira
Da melancolia
Já foste a primeira, sê-me a derradeira
Liberdade viva da voz prisioneira.
José Régio, Música Ligeira

Andrea Bocelli, Matteo Bocelli , em Holy Night / Cantique de Noël .
"Cantique De Noel” escrito por  Adolphe Adam & Placide Cappeau.  Traduzido por  John Dwight .Arranjos de  William Ross & J. Van Der Saag .
Decca Record / Capitol Record .

  
Andrea Bocelli, em What Child Is This, do Álbum 'My Christmas". Registo extraído do espectáculo ao vivo, em The Kodak Theatre, USA / 2009

domingo, 24 de dezembro de 2023

Ao Domingo Há Música

Sei agora como nasceu a alegria
Como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.
Eugénio de Andrade, Até Amanhã

A música tem sempre a capacidade de redenção. Leva- nos  para um outro horizonte, onde os acordes se fazem eufónicos e harmoniosos. Quando as palavras os acompanham e as vozes  as cantam, a simbiose torna-se perfeita.
Que, neste Natal,  possa nascer um amanhã sem lágrimas.

Sonat Vox interpretam  Die Nacht , de  Franz Schubert (Official Music-Video).

   

Come, Thou Fount of Every Blessing,  pelos  BYU's Choirs BYU Philharmonic Orchestra, 2023.

 

sábado, 23 de dezembro de 2023

Eugénio Lisboa

 
Eugénio Lisboa:  Esprit de Géométrie / Esprit de Finesse*
por Teresa Martins Marques
"Eugénio Lisboa é um intelectual da mais alta estirpe - “ vário, intrépido e fecundo”  expressão colhida no ensaio de Ernesto Rodrigues sobre o autor, que deu título ao livro de homenagem que recentemente lhe foi dedicado por muitos dos seus amigos, organizado por Otília Martins e Onésimo Almeida (Opera Omnia, 2011).
  Não é hoje possível estudar, sem passar pelos  textos de Eugénio Lisboa , autores como Garrett, Camilo, Eça,  Pessoa, Régio, Ferreira de Castro, João de Araújo Correia, Branquinho da Fonseca, Domingos Monteiro, Carlos Queirós, Adolfo Casais Monteiro, Vergílio Ferreira, Eugénio de Andrade, David Mourão-Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, Júlio Conrado, entre os nacionais ou entre ao africanos José Craveirinha, Reinaldo Ferreira, Grabato Dias, Rio Knopfli, Glória de Sant’ Ana, Mário António, Luandino Vieira, Gouvêa Lemos, entre os brasileiros sobretudo Machado de Assis e entre os franceses Montherlant, Gide e Stendhal e tantos outros de língua inglesa ( e ficaríamos aqui muito tempo só para os nomear!)  Leiam-se  os vários volumes que dedicou ao estudo de Régio e Jorge de Sena, ao Segundo Modernismo em Portugal, à Poesia Portuguesa do Orpheu ao Neo-Realismo  ou ainda as colectâneas   Crónica dos Anos da Peste I e II, As Vinte e Cinco Notas do Texto, O Objecto Celebrado, Portugaliae Monumenta Frivola, ou os dois recentes volumes de Indícios de Oiro e veremos que não são apenas indícios, mas sim oiro de lei da mais fina crítica  e ensaística.
  Caso raríssimo nas nossas Letras, só encontrando paralelo em Jorge de Sena, ao conciliar duas grandes vocações - científica e  humanística,   Eugénio Lisboa revela o esprit de geométrie e o esprit de finesse, entendidos como espírito científico operando por deduções lógicas e a capacidade intuitiva, exercida na observação do real, de ambos deixando abundantes provas em  tudo o que escreveu  desde o ensaio à poesia.   Pascal  afirmou no incipit das Pensées que é raro os geómetras serem finos e mais raro ainda que os finos sejam geómetras.  Eugénio  com rigor e subtileza teoriza a  síntese harmoniosa daquelas duas vertentes num texto intitulado «Revisitar as duas culturas» inserto em Portugaliae Monumenta Frivola , seguindo a lição de Snow:  tão grave pode ser o cientista atómico que nunca teve tempo de ler ou meditar um romance de Dickens, como o professor de literatura inglesa (ou francesa, ou portuguesa) que nunca ouviu falar no segundo princípio da termodinâmica. Ao primeiro faltar-lhe-á alguma dimensão humana e cultural que pode eventualmente torná-lo anestesiado a zonas fundamentais da vida e da decisão profissional que intersectam fundamentalmente o viver e o sobreviver dos outros; ao segundo faltar-lhe-á, para sempre, uma compreensão de outras áreas do conhecimento humano, a qual compreensão (…) o tornariam menos apto a deixar-se passivamente arrastar para aventuras cuja vocação é o apocalipse.''
   Eugénio Lisboa, enquanto  cidadão, revela  a coragem dos que não se demitem.   Ele é o vivo exemplo de Honestum conforme Cícero o teorizou na comparação entre Thorius  Balbus e  Marcus Regulus colocando o cumprimento do dever acima das  conveniências, arriscando a liberdade, arriscando a própria vida. Leia-se, neste livro de homenagem o depoimento do jurista Carlos Adrião Rodrigues publicado postumamente, e ficaremos elucidados sobre a actuação de Eugénio Lisboa nos tribunais moçambicanos em defesa dos direitos humanos . Nos tribunais portugueses vi-o eu mesma  defendendo a justiça e a decência no caso de um plágio descarado feito a David Mourão-Ferreira. Porque a cultura, segundo a entende, tem de servir para nos tornar melhores:
Num texto daquele mesmo  livro pergunta Eugénio: Para que serve a cultura? Que faz ela de nós, que não nos torna melhores? Que faz ela que não nos dá o gosto de um estilo, de uma estratégia de maneiras, que em nós não promove o sentido de uma rigorosa exigência?" E conclui: "Pudesse isto ficar como o emblema do que a verdadeira cultura, fecundando o que em nós há de melhor, deveria afinal produzir: um estilo, uma elegância, um panache, uma bondade, uma doçura de viver. Uma capacidade de desprezar tudo quanto não é essencial. Uma lealdade fundamental para com o nosso eu profundo. Um decidido voltar as costas aos jogos mundanos, aos códigos em voga e às «zonas de influência». E só esse."
Estamos claramente no reino de uma ética que separa inequivocamente as águas das verdadeiras e das falsas riquezas. Apontando a ansiedade de um Robert Frost face aos prémios que não chegaram, corroborando Stendhal no desprezo perante as condecorações, o Autor inscreve-se numa zona de exigência moral estóica que assume os riscos de quem provoca deliberadamente a má consciência nos outros. Abençoado seja o Autor pela sua coragem. Para isto serve também a sua cultura e o seu desassombro que se vêem reiterados no segundo texto dirigido contra os críticos polissémicos que , “são atraídos pelo livro «fascinante» como as moscas são atraídas por aquilo que as atrai.”
O discurso crítico eugeniano, como  apontou Aníbal Pinto de Castro, é marcado pelo desassombro, aliado a uma indiscutível vocação pedagógica, mas não professoral, que sobremaneira o humaniza, tornando-se uma das melhores estratégias de sedução do ensaísta. E cito as suas palavras bem reveladoras do altíssimo conceito em que tinha o autor de Crónica dos Anos da Peste:
"(...) o discurso crítico de Eugénio Lisboa, pelo sólido suporte cultural dos seus juízos, pela fundamentação que os autoriza, pela sua convicção, pela sua honestidade e pela simplicidade do seu enunciado, reúne com grande segurança e longo alcance pedagógico, particularmente relevante num país onde tudo quanto é sério se não lê ou se não ouve, a finura de um Moniz Barreto à argúcia humanística de que Montaigne dera o primeiro grande exemplo nas páginas dos «Essais»".
Se Vladimir Nabokov e Eugénio Lisboa tivessem podido conhecer-se estou em crer que muito teriam para conversar, pois o retrato ideal de leitor, tal como Nabokov o traçou,  poderia ter tido por modelo o autor d’ O Objecto Celebrado:
 "O melhor que um leitor possa ter ou cultivar é uma compósita mistura de temperamento artístico e de temperamento científico. O artista, só por si, tem tendência, no seu entusiasmo, a ser demasiado subjectivo na sua atitude em relação ao livro, e uma certa reserva científica virá então temperar, muito a propósito, o ímpeto da intuição. Se, todavia, alguém quiser lançar-se na leitura, sendo totalmente desprovido tanto de paixão como de paciência - a paixão do artista, a paciência do cientista -, esse alguém dificilmente poderá apreciar a grande literatura". 
É justamente esta mistura compósita de temperamento artístico e científico que faz de Eugénio crítico, ensaísta ou poeta a mais viva imagem da sensibilidade inteligente. Ele conquista a adesão do leitor através da riqueza e originalidade do seu pensamento, matéria intensa de inteligência, servida por uma linguagem sur le vif que, às vezes, se trava de razões com o autor criticado, podendo variar o tom desde a bonomia dialogante até à verdadeira estocada irónica, quando o contendor fez por merecer e não percebe de outra forma. Mestre admirável na arte da citação, esta surge sempre no momento oportuno, ora como forma de homenagem intertextual reforçativa de um ponto de vista, ora servindo suculentamente uma argumentação subtilmente irónica.
A coloquialidade do seu discurso ensaístico , torna-se marca distintiva do texto, chegando por vezes a ouvir-se nitidamente a voz quase "física" do autor.  Como todos os que se atrevem, Eugénio Lisboa sabe que, quando a prudência está em todo o lado, a coragem não está em parte nenhuma e é esse o momento em que Eugénio vai prestar o que, não sem ironia, designa como  homenagem da divergência. 
Partindo do princípio de que não é possível a duas pessoas que não desistem de pensar estarem sistematicamente de acordo, Eugénio teoriza e pratica o respeito ideológico pela diferença, considerando-a como a melhor forma de homenagem que se pode render ao pensamento alheio. A nossa praça literária não está muito habituada a estas formas de homenagem e é por isso que, vozes como a de Eugénio Lisboa, constituem a própria Liberdade por antonomásia. Lemos em O Objecto Celebrado:
 Toda a divergência (…)deve ser acarinhada, porque muito simplesmente alarga fronteiras da vida. Unamo-nos, dizia, por tudo quanto nos divide"(p.193-4).
Sentimos nestas palavras uma sagesse que aproxima quem as profere da família de um Cleantes, de um Crisipo, de um Marco Aurélio, citado na epígrafe de abertura deste livro: "Tudo passa num dia, o panegírico e o objecto celebrado". O espírito de divergência sendo aquilo que distingue, será também o que celebriza pela via do desassombro que permite contestar o outro e pela via da humildade e da modéstia que obriga, reciprocamente, a aceitar a contestação do Outro. O discurso crítico escrito sob o signo de todas as certezas pouco terá a ver com o ensaio como acção de pensar e como pensamento em acção, conforme o praticaram Plutarco, Marco Aurélio ou Montaigne. Vem de muito longe a admiração do autor do Objecto Celebrado pelos mestres do ensaísmo. Plutarco é, aliás, o primeiro duma lista de leituras de Eugénio enquanto jovem que nos é fornecida na belíssima crónica intitulada "Antigamente um Quarto”  verdadeira poética do espaço e da memória, guia ao mundo iniciático da adolescência, onde a literatura se torna uma apaixonante experiência, feita de segredo e de silêncio, o "solo fértil" como escreveu Glória de Sant'Ana. Solo fértil para a sua própria poesia- A Matéria Intensa- que deu à luz em 1985 sendo coetânea de bom número de ensaios do Objecto Celebrado. A Matéria Intensa é, pois, irmã deste Objecto, filha do mesmo Sujeito, isto é, da mesma voz  que em modos diferentes nos revela o Mundo.
A lucidez, a argúcia, o desassombro e o escrúpulo são algumas das qualidades de Eugénio Lisboa enquanto crítico e ensaísta, salientadas justamente por David Mourão-Ferreira na recensão que dedicou à primeira edição de A Matéria Intensa[1] e onde apontou a natureza celebrativa daquele primeiro livro de poesia no qual surgem glorificadas algumas figuras da história romana (Pompeu, Catão, Petrónio, Marco Aurélio), uma, também, da história nacional (Henrique de Sagres), outra da mitologia grega (Atena) vários poetas e artistas (Camões, Pessoa, Sena, Picasso, Reinaldo Ferreira), mas também vultos anónimos e até cidades tomadas nomeadamente como metaforização da condição humana.
A poética do espaço e da memória que o ensaísta põe em relevo na poesia de Glória de Sant'Ana ou de Mário António é também subtilmente revelada no seu poema em prosa «Recurso aos Lagos» . Talvez não passem de simples desejos de espíritos organizadores as comportas de género erguidas por Brunetière e seus descendentes já que os artistas costumam divertir-se a voar por cima delas para continuarem a dar trabalho aos teóricos dos Estudos Literários.
 Independentemente do modo, a transposição do sujeito para o objecto - celebrado, invectivado ou simplesmente contemplado - é idêntica, o recurso aos lagos não é mais do que o recurso à palavra, ao gosto das palavras transformado em matéria intensa: «os lagos são belos mas indiferentes. Suspeito mesmo que nos fitam sem nos verem. Por fim, penso que sou injusto: o mal não está neles, está em mim. Se só a minha ferida fica imune ao bem que os lagos a tudo fazem, é porque eu a preservo. Lemos mais adiante: Se o meu mal há-de ser a minha morte ele é também aquilo que me enobrece. Por isso o cultivo fingindo que o trato. Do fracasso da cura, acuso os lagos. Que estão, é claro, inocentes.»
Poesia feita de lucidez e autognose em palavras bebidas nos lagos "como quem se cura", poção mágica de palavras feita .
José Régio é uma das saudáveis obsessões eugenianas  que não tem cura. É verdadeiramente surpreendente que, por mais que Eugénio escreva sobre Régio, nenhum deles se esgota. Relativamente ao Príncipe com Orelhas de Burro, e a esta leitura que dele faz Eugénio Lisboa, recordo-me de ter ouvido dizer a David Mourão-Ferreira que ela "é a mais fina das leituras desta obra de Régio". Trata-se, com efeito, de uma súmula filosófica sobre o sofrimento como via de acesso - ad augusta per angusta - ao conhecimento, à perfeição inconciliável com a vida que é o seu preço. Círculo em devir, simultaneamente vicioso e salvífico que atinge a perfeição na morte. Como diz Eugénio: "Romance da vida. Da vida que devém morte que devém vida". Será ainda a morte salvífica, "concentração de virtude", que está reservada aos mortos, no poema que abre A Matéria Intensa:
 "Os mortos mais do que os vivos, estão vivos. / Surgem, fortes, intensos, aparecem / depurados e cheios de motivos.Visitam-nos e acham que merecem / todo o rigor da nossa atenção. / A morte deu-lhes, pensam, nova vida; / vê-se neles uma concentração / de virtudes - de vida reflectida. / Os mortos ensinam-nos a viver / dão um valor novo ao que nos rodeia, / dão ao quotidiano acontecer / um brilho vivo que nos incendeia. / Os mortos acendem, em nós, a chama / de uma nova vida. Julgo que pedem / que olhemos fundo a luz que se derrama. / Exigem. Clamam. Os mortos não cedem."
Naturalmente  porque são a perfeição que nós lhes emprestamos ao pensá-los. Os mortos vivem dos vivos, como os textos vivem dos críticos como Eugénio Lisboa, que ressuscita o príncipe Leonel, em cada uma das suas palavras, transformando-as em matéria intensa da poesia que também se faz em prosa. Outra obsessão de férteis consequências é  Fernando Pessoa. Repare-se nomeadamente nas  três leituras  insertas em O Objecto Celebrado: na primeira, intitulada "Uma tranquilidade violenta - Fernando Pessoa e a rotura modernista," escrita aquando do cinquentenário da morte do poeta, Eugénio chama a atenção, desde o primeiro parágrafo, para a sua intenção de examinar criticamente "alguns confortos estabelecidos": O ensaio começa por clarificar o conceito de leitura e cita desde logo Pessoa: "A mór parte da gente não sabe ler e chama (ler) a adaptar a si o que o autor escreve, quando para o homem culto, compreender o que se lê é, ao contrário, adaptar-se ao que o autor escreveu". Subtil diferença, com enormes consequências. Eugénio, em vez de adaptar a si Fernando Pessoa, vai adaptar-se a ele, isto é, tentar perceber a sua zona de penumbra, dizendo desde logo para que não restem dúvidas: «como todo o grande espírito, Fernando Pessoa contradisse-se prodigiosamente». Vai Eugénio demonstrar, como um homem de ciência que é, através de um levantamento de excertos muito completo, que não tem razão de ser o lugar-comum que faz de Pessoa um campeão de uma suposta rotura modernista, procurando mostrar que Pessoa se sentia «herdeiro» e «descendente» de uma herança que renovou e acrescentou, e não pioneiro espantado e deslumbrado de um caminho totalmente desligado dos caminhos que o precederam. Também em Matéria Intensa encontramos em diversos poemas um frequente diálogo com a figura de Pessoa, uma figura humanizada na própria grandeza que não foge às vicissitudes da humana condição. Num desses poemas que ostenta o seu nome no título ele é apresentado como
"Poeta do silêncio e da elipse / assexuado bicho astral / mistério intangível do eclipse / filho da neve que faz mal / anarquista sorrindo em itálico / abúlico gigante encalhado / artesão do verbo metálico / arquitecto do inacabado (...)" Terminando desta forma bem significativa, a qual joga com a ambiguidade da forma verbal "saturo" que marca o fascínio, mas não uma beata devoção: "teus versos leio e me saturo /de seu claro e mortal mistério."
Esta relação Eugénio / Pessoa é realmente das mais curiosas e encontrará o seu cume no terceiro texto inserto neste Objecto que se intitula "Um Estrangeiro na Terra". Trata-se de uma verdadeira obra-prima da arte de recriar uma obra dando-lhe corpo, voz e fabricando em corpo e alma, se posso dizê-lo, um ente compósito feito dos mil pedaços do que, com humor, Eugénio costuma designar a "paróquia heterónima". Este texto, repassado de finíssima ironia, constitui-se como imaginário monólogo interior de um ser trágico, grandioso, afirmando os seus limites, desmistificando o mito em que se tornou, sofrendo a dor de a não sofrer, ou de não ousar sofrê-la. Um ser de excepção, criado por um texto de excepção, construído com trechos de excepção. Um ente estrangeiro, no sentido camusiano do termo, que se confronta com o espanto de que é feito o seu estranhamento, na hora estranha em que estranha morrer o que não viveu, mas que vive e se eterniza sentindo-o quem o lê:
 "Morto, vou finalmente ter uma espécie de vida. Vivo, fui uma espécie de morto. Ser é sempre o contrário de realmente ser. Os deuses riem-se, tirando-nos até o que parece que dão. Na vida, morremos, que é o que viver quer dizer. Na morte, vivemos de uma maneira de que só os outros se apercebem - a nossa morte definitiva é a nossa vida - para - uso - deles."
Esta vida para uso alheio é ainda um duplo ilusionismo de quem diz o que imagina que os outros diriam. Ainda aqui "os ilusionistas do verbo vendem música e sedução por pensamentos". No livro de poesia de Eugénio, que tenho vindo a citar em paralelo, figura um poema intitulado «Marco Aurélio» o qual coloca o imperador estóico naquela mesma situação limite do "fantasma pessoano", todavia em substancial diferença, pois que a angústia deste último é naquele serenidade, "discreta melancolia" de quem sabe que tudo passa um dia, como se lê na epígrafe que abre O Objecto Celebrado. Mas o que poderá ser afinal objecto de celebração se tudo passa um dia? Talvez a consciência crítica dessa passagem possa ser celebrada através da palavra - objecto da Literatura.
O segundo livro de poesia de Eugénio Lisboa com um título colhido em Milton  -O Ilimitável Oceano, sendo poesia do melhor quilate, tem ainda a vocação do ensaio desde logo na sua estrutura conforme os tratados clássicos: abre com um Prólogo, tem o seu desenvolvimento na secção principal - «Os Argonautas», segue-se-lhe o Epílogo e termina com Algumas Conclusões. É acção de pensar, mas é também acção de concretizar experimentando, pondo à prova uma ideia nova: a de historiar - e observe-se a rigorosa ordem cronológica das figuras historiadas -, mas também de celebrar  os vultos canónicos da ciência ocidental, sendo esta uma outra forma de homenagem em Eugénio Lisboa- a homenagem da convergência.
O Ilimitável Oceano  continua A Matéria Intensa não apenas como resultado da procura da palavra exacta, mas ainda como prolongamento da natureza celebrativa referida por David Mourão-Ferreira e transposta agora para as figuras cimeiras da História da Ciência da Civilização Ocidental: Thales de Mileto, Anaxágoras, Pitágoras, Empédocles, Demócrito, Euclides, Teodoro - o Engenheiro-, Arquimedes, Ptolomeu, Bartolomeu Dias, Copérnico, Galileu, Kepler, Descartes, Pascal, Newton, Bohr, Einstein, Oppenheimer e Carl Sagan (subentendido nos títulos dos poemas finais – “O Inverno Nuclear” e “O Outro Inverno Nuclear”). Entre estes argonautas do Conhecimento navega um português – Bartolomeu Dias - a mostrar que o importante na vida é dobrar o “Assombro”, desflorar o mistério, procurar como o astrónomo o“surto de algum medo” (p.17) para afinal descobrir a não-razão do medo, para tomar a coragem como meio e fim: ”Dobrado o Assombro, foi que tu viste / não ser o mar diferente. Então, voltaste. / Desflorado o mistério, não existe /motivo para novo esforço: cessaste.”(p.37)
Do lado da Arte apenas um nome-sinédoque - Van Gogh - símbolo do artista devorado pela sede de infinito, diríamos que a procurar exactas as cores de que precisa nas estrelas, exactamente como o poeta, para lançar mão ao infinito: “Devora-me a sede de infinito./ Que vou fazer? Como resolvê-la?/ Decido: saio para a noite e fito / o espaço nu, a luz duma estrela”.(p.51) A exactidão de Van Gogh assemelha-se à do poeta: não se trata de procurar qualquer fidelidade ao real, mas antes de obter uma transmutação da cor (na tela, no corpo do poema) para a exprimir na plenitude da sua força pictórica e poética. Quadro e poema que não mais obedecem ao cânone do “miroir qu’on promène le long d’un chemin”, conforme a epígrafe de Saint-Réal que abre o cap. XIII de Le Rouge et le Noir (e a senhora de Rênal  não pode ser esquecida, pour cause), mas que inventam um caleidoscópio de espelhos - realidade e virtualidade consubstanciadas. A poesia será, pois, ilimitável oceano, paraíso perdido, prometaico pecado original de quem se arroga o direito de roubar o fogo aos deuses.
O livro de Eugénio Lisboa, enquanto exemplo da interacção entre o pensamento humanístico e o pensamento científico, é poesia, entendida aqui na linha dualista de Octávio Paz – “filha do acaso; fruto do cálculo” (observe-se o rigor métrico destes poemas)[2] Como Thales de Mileto (p. 19) o poeta tenta comprender as leis do universo sem aos deuses recorrer : “descobrir é um reverso”.O desconhecido será o que está do lado oposto ao que se observa, mas também o que reverte, o que volta ao ponto de partida – soma de verso e anverso, soma de poesia e de história da ciência, natureza anfíbia deste livro de Eugénio Lisboa que, como Anaxágoras pergunta “Qual o fim da vida?” e responde: “O sol, a lua, os céus investigar”(p.21). Ainda aqui a metáfora do Conhecimento como busca de exactidão, de procura de sentido – do Noûs da obra do próprio Anaxágoras – algo aparentado com o Infinito, a um tempo pensamento e vontade, inteligência eterna, «everything» como dizem os físicos teóricos, Deus, como dizem os crentes, desconhecido inventável como dizem os poetas, sagrado Tetraktys de Pitágoras, raiz e fonte da criação:
“Do número, tudo nascia / outros números, a verdade, / a curva que o astro seguia, / a beleza, em vida, a cidade.” E como não há bela sem senão: “Só dentro de ti não cabia / raiz de dois ser realidade”(p.23).
Modelo de Lucrécio e Hölderlin, Empédocles, que acreditava no princípio do amor e do ódio, da atracção e da repulsa, é ele mesmo símbolo do poeta romântico, do homem dividido: “Julgava-se um deus? Pensavam que o era? / Com argumentos seus / e o uso de uma esfera, / ao ar deu existência. / Mostrando o invisível, / na sua transparência, / ele disse o indizível: / Crê só na experiência. // E teve morte ardente, / saltando à lava quente.” (p.25)
Crê-se que Demócrito terá dito: «Prefiro entender o que sei / a poder ser, na Pérsia, rei.» (p.27) E se o disse, fez bem em dizê-lo, porque esse seu saber entender fez dele na história do pensamento grego o materialista mais consistente, sendo-lhe atribuída a primeira teoria do atomismo. Diz-se que possuía avultados bens por herança, mas terá acumulado riqueza de maior monta, tornando-se, segundo Diógenes de Laércio, o homem mais culto do seu tempo. Consta que Platão lhe chamou filósofo burlão e os discípulos deste terão queimado as obras de Demócrito na praça pública. Demócrito é ainda considerado o símbolo da incomodidade do pensamento seja ele oriundo de poetas ou de cientistas. A síntese expressa nos dois versos do poema de Eugénio Lisboa não poderia, pois, ser mais apropriada.
É próprio dos poetas perscrutarem os segredos à maneira de Arquimedes: a impulsão da inspiração será igual ao peso do volume da imaginação deslocada? Suponho que ninguém saberá responder, nem mesmo o soube o físico de Siracusa. Sobre ele escreveu Eugénio Lisboa: “Nos líquidos perscrutou /o segredo vertical / de uma força que achou:/ descobrir é casual, / quando muito se pensou. (p. 33)
A busca da “mortalidade adiada”  tem sido um dos principais intentos dos poetas. Assim com o astrónomo Ptolomeu sentindo que se eleva acima da sua humana condição: “Como todos, sou mortal:/ minha vida é um dia./ Mas quando sigo, fatal, / no céu que nos alumia, /a multidão das estrelas, /em seu curso circular, /sinto deslumbrado nelas, /meus pés do chão, levantar”. (p. 35) E para marcar que é a “forma de olhar” que faz verdadeiramente a diferença, diz-se de Copérnico: “O céu que viste era o céu / de Ptolomeu. Mas diferente / foi a forma de o olhar. / No modo de julgar, teu, / a Terra, astro movente, / demitiu-se de pensar /que era o centro do mundo: / assim ver, que abalo fundo!”(p.39) A ousadia, a coragem que implica remar contra a maré, contribuir para a mutação de paradigma encontramo-la nos poetas tal como nos cientistas. É a mesma a humildade e altivez no ousar, idênticas nos objectivos, diferentes nos métodos, as formas de perscrutar o movimento do mundo. É “cândido o olhar” do poeta à semelhança do de Galileu: “As leis do movimento perscrutaste, / com paciência e cândido olhar. /Com o mesmo olhar o vasto céu sondaste / humilde mas altivo no ousar.” (p. 41)
Em contraste com o mundo próximo caracterizado pela podridão, fome, conflito e pestilência, surge o espaço do Conhecimento, a “pureza da ciência” que faz a diferença e que faz avançar o mundo como no poema dedicado a Kepler: “O mundo próximo, à volta, apodrece. /Fome, mortal conflito e pestilência / turvam o dia que mal amanhece. /Segura-se à pureza da ciência: o curso aparente das estrelas. / seguindo matemática divina, / deriva, das rigorosas tabelas / do vasto cosmo, a curva sibilina.” (p. 43)
 Sibilina é também a curva do Eu de Descartes que existe porque pensa e porque pensa existe: “Se penso que sou, /existo. Pensar / que sou é ser. Vou /ser o que achar / que sou. Inventou / terra, mar e ar / quem nisso pensou.” (p. 45)
 O estudo dos problemas do cálculo de probabilidades fará talvez dizer a Pascal pela pena de Eugénio Lisboa: “Não penso, no vasto espaço denso, / encontrar a minha dignidade: / tão só no domínio do que penso. / Ter mundos é pura inanidade:/ qual átomo, o espaço me devora /e anula; e só o pensamento/ que me habita e em mim demora / me dá, do universo, entendimento.” (p. 47)
 Alberto Caeiro talvez aceitasse dizer como o Newton de Eugénio Lisboa: “Da qualidade oculta de tudo, / não cuido, nem sei. Não é de ofício / sério sabê-lo: o tudo é mudo / e forçar-lhe a fala é sério vício. / Dos fenómenos, deduzo leis / de movimento e destas derivo / qualidades e acções: vereis / que o saber, assim, avança, altivo”. (p. 49)
A altivez do saber de Newton, mas também o seu contrário:”o tudo é mudo” ver-se-ia mais tarde cerceada pela mecânica quântica e pelos  “mistérios” da indeterminação bem como das suas consequências anunciados no poema dedicado a Niels Bohr: “Os corpúsculos e as ondas / são a mesma realidade. / Assim sendo, tu já sondas / o começo de uma idade. (Perscrutar certos segredos / que a natureza escondera / é fundamento dos medos / do frio que nos espera)” (p. 53)
O frio enquanto metáfora da morte por causa natural ou por catástrofe surgirá nos poemas finais do livro . E as portas do futuro abertas pela teoria da relatividade contêm também o germen da desconfiança pelo que virá depois. Assim o lemos no poema de Einstein: E igual a mc dois / abriu as portas do ignoto:/ o que há-de vir depois / é o frio: aqui o noto.” (p. 55)
Frio este que com Oppenheimer se transformará em fogo já que foi director de Los Alamos, a central onde se preparou a destruição de Hiroshima e Nagasaki: “Olhando o deserto em fogo, / promessa de abismos fundos, / fiz-me sentido do jogo:/ «sou morte que alisa mundos».” (p.57). ”Alisar” é um verbo repassado de ironia trágica: não tem já a conotação de maciez, de suavidade, mas de erosão, de rasura, de morte, de nadificação, nulificação, como se verá em seguida nas duas hipóteses do Epílogo, a primeira das quais, intitulada “Brisas” implicitamente dedicada a Carl Sagan : “(O Inverno Nuclear)”, cogumelo venenoso pronto a explodir sobre a cabeça da humanidade:
“Brandas, as brisas alisam / aquilo que não é vida: / sossegam, calmas, deslizam, / na fria terra despida. / solenes brisas avisam / quem já ouvi-las não sabe: / mas brisas que nada pisam / fulgor de vida não cabe.” (p. 61)
A Hipótese II (O Outro Inverno) será afinal conforme ao sub-título – “O caminho da entropia” que, segundo o modelo de Clausius levaria não à teoria de Tudo, mas ao fim de Tudo: se a entropia tende para o máximo, alcançada a máxima desordem seria nula a produção de trabalho ( morte do universo) :
“Um frio estelar rouba à glória a memória./ Ao mais e ao menos uma fria brisa alisa. / Arrefecido o homem, já da sua história / fica só nada, que o fluir do tempo pisa. / Do que fomos, nem de nos termos esquecido / traço fica. / Inocente, o tempo, liso, flui, / nem sabendo que não sabe. O já ter sido / é nem ter chegado a ser: o passado alui./ Eterno, sem lembrança, o frio acontecido.” (p. 63)
Este belíssimo poema, que se filia na linhagem da “Tabacaria” de Álvaro de Campos e na “Ladainha dos Póstumos Natais” de David Mourão-Ferreira, é, enquanto rasura da memória e do sujeito que pensa a própria existência de improvável memória, um hino ao que poderá vir a ser desejando o poeta que o não seja. É, pois, um pôr em causa da ciência não enquanto ciência mas de algumas das  suas nefastas aplicações. É  uma revalorização do homem enquanto ser que comanda, para o bem ou para o mal (e não para além do bem e do mal) o seu destino. É talvez a melhor forma de exprimir o desejo de que fique eterno na memória o calor acontecido quando os homens souberem dar as mãos. Na “Conclusão I” o poeta Eugénio Lisboa só poderia apresentar-nos esta belíssima definição poética de linha recta aceitando a vida na sua precaridade, não acreditando nos mitos do eterno retorno, tendo a coragem de a aceitar na sua linearidade, de acordo com a flecha do tempo:
“A vida é o caminho mais curto entre o caos e a noite” (p.67), a organização a partir do caos, uma manhã, uma tarde e um crepúsculo de luz antes que a noite chegue inexorável. Chegue quando chegar que a luz sorvida pela vida terá valido a pena.
Na “Conclusão II” saberemos o perímetro e o diâmetro da Circunferência que limita os direitos do homem à vida e à morte: “Na perspectiva da duração do universo, todos os homens são equidistantes do frio final. O conjunto dos homens, é, pois uma circunferência cujo centro é um frio”. (p. 67)
A circunferência é o conjunto dos pontos que unem os homens nivelando-os relativamente a um destino que os ultrapassa. Leio esta definição poética de circunferência, como alusão a “todos os homens nascem livres e iguais” e todos os homens estarão igualmente nivelados no Nada a que a sua Vontade de Poder desenfreado os conduza. Será ainda um apelo à nossa humildade-grandeza de sermos feitos de pó de estrelas - em pleno sentido literal – e que pensamos e, porque pensamos, podemos agir construindo ou destruindo aquilo a que chamamos destino colectivo. Eugénio Lisboa – homem de ciência e humanista – poeta navegador neste Ilimitável Oceano de poesia celebrativa da ciência - não escreve nenhum epitáfio da humanidade, mas antes traça um círculo de equidistância entre os diversos saberes.
A condição do poeta “condenado” a uma incessante procura do Conhecimento, era já particularmente visível no belíssimo poema em prosa inserto em A Matéria Intensa : «Procuro, Exactas, as Palavras» - verdadeira ars poetica - conforme a classificou David Mourão-Ferreira, digna de figurar na mais exigente antologia do género. e que principia do seguinte modo: “Em vão procuro, exactas, as palavras de que preciso: não sei onde estão, não sei sequer se as conheço, se algum dia as vi e se, tendo-as visto, as reconhecerei quando voltar a encontrá-las (...) Procuro, exactas, as palavras de que preciso, isto é, as palavras que não me vão servir. O que preciso é aquilo de que não preciso. Só me serve o que não me serve. Falhar é triunfar. Conseguir é ficar parado. Triunfar é, definitivamente, perder. Pratiquemos, meticulosamente, a arte sinuosa de procurar, exactas as palavras que não são”.[3]
E, porque Eugénio Lisboa é exímio praticante da "arte sinuosa de procurar, exactas, as palavras que não são", será ainda a arte da inteligência revelada na busca  do rigor e clareza dos textos, que se constitui também como objecto de  arte. Porque rigor e beleza  são susceptíveis de coexistência pacífica. Por que razão o binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo?  Verso tantas vezes citado e que nunca vi explicado, em termos matemáticos, pelos nossos homens e mulheres de letras. Simples comparação metaforizante  do engenheiro Álvaro de Campos?   Bem mais do que isso. O binómio de Newton é realmente belo pela harmonia simétrica com que se dispõem os seus elementos, pela elegância da sua construção usando o triângulo de Pascal, onde qualquer desses elementos pode ser obtido de forma simples, à custa das linhas anteriores, juntando assim a simplicidade à beleza visual de serem capicuas as linhas do triângulo de Pascal. A fonte de Castália não é a única fonte onde bebeu energia o  engenhoso poeta e ensaísta Eugénio Lisboa, porque, como raros, tem sabido mostrar nas suas obras aquele  mesmo esprit de géométrie, mas também de   finesse,  teorizado por  Pascal, em suma,  a beleza que existe no rigor da ciência(Q.E.D.)
Teresa Martins Marques
 *Conferência no Grémio Literário -  Lisboa, 14 de Março de 2012

[1] Cf. 2ª edição revista e aumentada: Lisboa, Instituto Camões, 1999.
[2]Cit. por David Mourão-Ferreira como epígrafe a Imagens da Poesia Europeia, Lisboa, Realizações Artis, 1972.
[3]Idem, p. 57