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Vida dos Livros : «Morte e Democracia» de José Gil
por
Guilherme d' Oliveira Martins
«Morte e Democracia» de José Gil (Relógio
d’Água, 2023) é constituído por um conjunto de ensaios que nos permite
compreender as virtualidades e as fragilidades da organização da sociedade
contemporânea.
PRODUÇÃO
DE VIDAS LIVRES
A procura da
identificação do que torna possível a produção de vidas livres e singulares
numa “democracia imanente” constitui o objetivo primordial do estimulante
conjunto de ensaios, da autoria de José Gil, Morte e Democracia (Relógio
d’Água, 2023). De facto, a necessidade de construir um “plano de imanência” do
campo político ao social é condição primeira para a formação de multiplicidades
singulares que compreendam a complexidade e o pluralismo. Se hoje falamos
justamente de crise de democracia, torna-se indispensável realizar uma reflexão
aprofundada sobre as razões para uma perniciosa tendência para a fragilização
de uma sociedade que se deseja baseada na liberdade e na cidadania. Não se
trata, assim, de reduzir os termos desta reflexão fundamental sobre a
sociedade, sobre o Estado de direito e sobre uma cidadania inclusiva a aspetos
apenas formais, mas antes de considerar a democracia como um sistema de
valores, capaz de integrar e de incluir uma cidadania de respeito mútuo, sem
interferências de fantasmas ilusórios, incapazes de suscitar a compreensão de
quem somos como seres humanos livres e iguais em dignidade e direitos. Compreende-se,
pois, os quatro momentos escolhidos por José Gil, a partir da demonstração dos
paradoxos do pensamento da morte e dos postulados que comprometem a sua
consideração ponderada e complexa: a imortalidade da alma, a natureza dos
espectros que emergem e a noção de Abismo inerente ao termo da vida. O segundo
momento reporta-se ao laço indelével entre a crença da imortalidade, assumida
por certos grupos-tipo de organizações políticas que se afirmam através de
referências da morte, enquanto “experiências do impensável”, reportadas à
violência e ao terror (que Hannah Arendt encontra nas raízes do totalitarismo).
Segue-se a análise das correspondências entre afetos, formações sociais e
políticas e modos de existência dos mortos como referências de negação e de
injustiça. E, chegados à quarta reflexão, temos a exploração da possibilidade
de substituir a transcendência ilusória pela imanência na prática política da
democracia. Nestes quatro pontos, trata-se de situar a vivência democrática,
não na lógica de uma sociedade ancorada em referências de eternidade, de
suposta perfeição ou de infalibilidade, mas na procura de referências baseadas
na concreta relação de pessoas de carne e osso entre si. Para o filósofo,
trata-se de denunciar “a dinâmica política atual que as democracias
conservadoras afrontam constantemente, sob formas novas, por todo o planeta,
ressurgências de velhos e fantasmáticos autoritarismos, fascismos e mesmo
teocracias”. Dir-se-ia que encontramos então a situação inversa do “Dai a César
o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Para José Gil há a verificação de
que as forças que querem a imanência se encontram reprimidas e encarceradas nas
estruturas sociais e políticas estabelecidas”. E tal contração reduz as
possibilidades de autonomia, responsabilidade e autogoverno. Contudo, “o plano
da imanência da democracia tem uma consistência frágil”. Gianni Vattimo, há
pouco desaparecido, chegou a conclusão próxima.
A IMANÊNCIA NA PÓLIS
O que distingue as
democracias formais dos sistemas autocráticos é contraditório. As primeiras
podem favorecer a transcendência do poder do Estado e das instituições, os
segundos procuram a dissolução do Estado na figura do líder que se projeta no
plano social. Daí a necessidade de distinguir uma imanência de “fusão” por
contraponto a uma imanência de “reversibilidade” (o respeito é biunívoco), que
encontramos em Claude Lefort e na consideração por este de que o simbólico se
torna fundamento da democracia representativa. De facto, o simbólico é finito,
está ao nosso alcance. O poder democrático é transitório e efémero na sua
indeterminação. A institucionalização de um “lugar vazio” do poder, confere aos
cidadãos uma igualdade de direitos na participação no poder democrático. “O
vazio criador de possíveis, dispensa a posição da imortalidade”. E Lefort fala,
assim, de “institucionalização do conflito”, ou seja, da superação da violência
do enfrentamento dual do corpo-a-corpo., que obriga a uma “mediação apaziguadora”,
a transformação do conflito aberto em conflito de partidos políticos e de
debates jurídicos. Se a vendetta mediterrânica gera uma
espiral de confronto e de violência, a mediação permite considerar o tempo e a
ponderação. A literatura convoca, assim, os que “partiram”, extraindo daí mais
força para se poder viver. É o que encontramos em Platão, no Górgias e
no Fédon, mas também nas grandes sagas como a Epopeia
de Gilgamesh, a Ilíada, a Odisseia, a Eneida, ou
a Divina Comédia, onde se criam “personalidades espectrais”,
que projetam o passado no presente. E é oportuna a referência nesse tema a
artistas como Lourdes Castro e Jorge Martins nas representações espectrais…
Também em Ésquilo, Sófocles, Shakespeare ou Racine encontramos a atração
poderosa que as figuras do passado exercem sobre os vivos. O “presente
alimenta-se do passado, de um passado móvel, não petrificado”. Os mortos passam
a ter um tempo limitado e tornam-se exemplos. A democracia e a cidadania
reportam-se, deste modo, à vida comum.
A democracia imanente vai, deste modo, buscar os mortos para os trazer à
expressividade da vida. É isso o que encontramos nas tragédias gregas –
representando Antígona o confronto entre as leis eternas e a realidade humana.
E um dos sinais que José Gil encontra na situação caótica em que vivemos é o
desaparecimento de um critério de verdade para o discurso político. As fake
news testemunham a incapacidade de os democratas construírem um
discurso credível, capaz de persuadir e de mobilizar. Desmoronou-se o passado,
os valores da tradição, mas o caos pode trazer possibilidades de criação. O
fantasma de Polinices permite ganhar força para pôr em causa as leis
terrestres, transformando o sofrimento e a revolta em coragem para lutar contra
a injustiça representada por Creonte. Construir a imanência é entrar no mundo e
no cosmos e dar continuidade ao desejo de viver. E esse desejo de viver é
considerado por José Gil nos quatro modos de envelhecer: uns fecham-se sobre si
com medo da morte; outros resignam-se e vão vivendo; outros ainda negam o
envelhecimento e querem viver eternamente jovens, seguindo Falstaff e Fausto.
Mas ainda há o envelhecimento mais raro – nos casos de uma velhice saudável,
não só fisicamente, mas sobretudo espiritualmente. O envelhecimento não quebra
o curso da vida, prolongando-o e transformando. É a imanência ativa que
prolonga o tempo. "
Guilherme d'Oliveira
Martins, artigo publicado no Blogue da CNC (4-10 de Dezembro de 2023.
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