10 Palavras da Língua
Portuguesa que contam na História do Mundo
por Marco Neves
“O dia 5 de Maio é o Dia Mundial da Língua Portuguesa. É uma
boa ocasião para tentar perceber como a nossa língua tem vestígios da história
do mundo. Façamos uma viagem por dez palavras — que servirão de exemplos.
Antes das dez palavras, peço que imagine uma ilha isolada durante
milénios, no meio do oceano, uma ilha onde o povo que lá existe, depois de uma
migração antiga, perdida nos tempos imemoriais dos mitos e das lendas, nunca
mais contactou com nenhum outro povo. Haverá certamente, nessa ilha, uma língua
— nunca se encontrou um grupo de seres humanos que não usasse a linguagem
humana.
Ora, a língua dessa ilha, depois de milénios encerrada sobre si própria,
pouco nos diz sobre a história do mundo. Talvez nos diga muito sobre a história
da ilha. Talvez se tenha dividido em várias línguas, ou talvez haja vários
registos, vários usos da língua. Talvez haja registos de guerras em ditados ou
expressões. Talvez o sotaque das várias áreas da ilha nos ajude a pintar a
sociedade da ilha — mas a história do mundo está fora da língua ou das
línguas desta ilha imaginária.
Há pouquíssimas línguas assim. A grande maioria das línguas vive em
espaço aberto, com fronteiras que são mais ilusórias que reais, e recebe e
transmite palavras e frases como ventos que passam. O português é assim
— e é assim talvez, arrisco dizer, de forma mais marcada do que outros
idiomas. O português não é uma ilha. Nunca foi uma ilha.
Afinal, a área onde a língua se desenvolveu está nos confins do mundo
antigo. O centro desse mundo era aquilo que nós hoje, na Europa, chamamos de
Médio Oriente. Era um mundo que se estendia da China até a estas costas
perdidas, longínquas, encostadas ao Atlântico. Onde é hoje Portugal chegavam
ecos desse centro e chegavam palavras que ficavam nestas praias como destroços.
Depois, este fim do mundo transformou-se, durante algum tempo, no centro
de um outro mundo, um centro de um mundo que já não vivia no eixo terrestre que
passava pela Europa e pela Ásia, mas um mundo que se comunicava pelos oceanos.
Lisboa foi um dos centros e a língua, em vez de receber destroços, deixou
pedaços pelo mundo inteiro, que ainda ouvimos em línguas longínquas.
Mais tarde, o que já era então Portugal tornou-se não o fim do mundo, não
o centro do mundo, mas um lugar da Europa, encostado a um dos cantos daquilo
que foi o centro do mundo e hoje tenta perceber que lugar tem. Portugal ficou
entre o centro e a periferia — e a sua língua com ele. «A sua língua»
talvez não seja correcto. A língua já não é só de Portugal há muito tempo.
Comecemos então uma pequena viagem à história do mundo com base nas
palavras da nossa língua. A primeira palavra será:
1- ÁGUA
Comecemos no início dessa história. Para isso é preciso fazer uma
experiência mental. A escrita surgiu há aproximadamente 5000 anos — quase
tudo o que sabemos sobre a história das línguas e da linguagem humana aconteceu
nesses 5000 anos. É certo que, através do método comparativo, conseguimos
perceber que existiram línguas anteriores, como o proto-indo-europeu, mas mesmo
assim não conseguimos recusar mais do que 1500 anos em relação à invenção da
escrita.
Ora, é certo que, antes da escrita, já existiam muitas línguas humanas.
Aliás, os primeiros registos da escrita são em sumério, uma língua diferente de
todas as outras que se conhecem, uma pequena amostra de tudo o que perdemos de
todos os milhares ou mesmo milhões de anos de história da linguagem. Havia línguas
que se cruzavam, se influenciavam, se dividiam e se misturavam. As línguas já
tinham muito do que temos hoje — e, acima de tudo, já eram substância do
pensamento, canal de comunicação, pintura identitária e material artístico.
Da forma dessas línguas antigas pouco sabemos. Houve quem tivesse tentado
encontrar palavras cuja semelhança em línguas muito distantes apontasse para
palavras primordiais. Uma das hipóteses é a palavra «água», que tem sons
parecidos em muitos recantos do globo. A hipótese é muito frágil e provas não
há. Tenho, porém, quase a certeza de que, sim, há muitas palavras que saem hoje
da nossa boca que descendem directamente de palavras com muitos milhares de
anos, muitos mais milhares de anos do que a escrita. Que fique «água» como
símbolo dessas palavras, seja ou não verdade que é uma dessas palavras.
A segunda palavra do nosso percurso é...
2- MAGIA
Deixemos o mundo da especulação. O que parece mais do que certo é que o
português, tal como o francês, nasceu de uma particular forma de latim vulgar,
influenciada por línguas anteriores, de que pouco se sabe. Esse latim nasceu de
outras línguas anteriores, que surgem do proto-indo-europeu, que terá sido
falado na zona da actual Ucrânia há aproximadamente 6500 anos. Línguas
descendentes do proto-indo-europeu falam-se hoje na Índia, no Irão, na Europa —
e em muitos lugares do mundo, para onde foram transportadas nas expansões
marítimas de vários povos.
A existência de uma língua latina no ocidente da Península Ibérica é já
testemunho da história do Império Romano e da sua expansão. O latim chegou ao
fim da Terra, ao Finisterra, ao Noroeste da Hispânia.
Além das palavras indo-europeias mastigadas na Península Itálica, o latim
trouxe palavras gregas e mesmo palavras de outros lugares do mundo. Por
exemplo, a palavra «magia», a segunda palavra do nosso percurso. É uma palavra
grega, que veio a bordo do latim — e já tinha chegado ao grego a partir do
persa antigo.
O latim que aqui veio dar era o latim vulgar, o falar do povo, que se
misturou com outras línguas, dando a quem vivia nesse Ocidente uma língua com
palavras longínquas e palavras mais próximas. A nossa língua sempre foi feita
de materiais de várias paragens. Ou seja, palavras como «magia» juntaram-se a
palavras que já cá estavam antes da chegada do latim. Pouco sabemos delas.
Talvez «murchar», que poderá ter vindo do latim — mas também poderá vir de
uma palavra mais antiga, que já cá estaria. Estamos ainda em tempos com poucos
ou nenhuns registos.
Chegamos agora à terceira das nossas dez palavras:
3- LUA
O fim do Império Romano está também inscrito na língua. Ainda antes de
«lua», falo de «LUVA», uma palavra de origem germânica que aqui chegou no final
do Império Romano. Era uma palavra da língua gótica, trazida pelos povos
germânicos para a Península. Por cá, a língua gótica ficou apenas numa ou outra
palavra integrada no nosso latim hispânico. Curiosamente, o gótico manteve-se
durante séculos do outro lado da Europa, na Crimeia. A História do mundo é bem
mais complicada do que parece.
Não são muitos os exemplos de palavras destes povos no português, porque
os germânicos que vieram ocupar a Península — os suevos e os visigodos —
assumiram o latim como seu e, provavelmente, não vieram em grande número. Os
habitantes da península continuaram a ser hispanos, romanos, agora em novos
reinos com uma nobreza germânica.
Desses tempos podemos dizer, com alguma segurança: o latim falado no
século VI já não era igual ao latim do apogeu do Império Romano. Algumas
características da nossa língua, como o uso de «segunda-feira», «terça-feira» e
todas as outras feiras, vêm dessa época. É bem possível que também tenha sido
por esta época que começaram fenómenos fonéticos — como a queda do /n/ e do /l/
intervocálicos — que deram forma à língua, mas que só se encontrariam na
escrita muito depois.
A palavra «lua», por exemplo, que não é a «luna» castelhana, mas sim esta
outra palavra mais curta e vocálica. Os falantes começaram a deixar cair os /n/
e os /l/ entre vogais. Porquê? Não sabemos. Foi, se quisermos, um erro que se
cristalizou. Afinal, cada língua é uma colecção de erros de línguas anteriores.
Todos falamos latim deturpado — mas o próprio latim já era uma língua
anterior deturpada. Assim se fazem as línguas da humanidade.
4- AZUL
No século VIII, a Península Ibérica passa a estar, em grande parte, sob
controlo muçulmano. A presença vê-se na língua: há muitas palavras de origem
árabe — e também de origem persa com passagem pelo árabe. Palavras tão
importantes como «açúcar» ou «laranja» ou «azul»... Não há dia que um português
não use palavras de origem árabe.
Vemos como a língua portuguesa testemunha a respiração dos impérios e a
força das guerras desses tempos. A expansão dos reinos cristãos de norte para
sul, em cinco faixas, traz os vários dialectos latinos de norte para sul,
misturando-os com o moçárabe, língua latina com forte influência árabe, falada
no sul da Península.
O romance do noroeste da Península chega a Lisboa no século XII, com o
Reino de Portugal, e mistura-se com o moçárabe e com o árabe. Há que dizer que
haveria também línguas do Norte de África nesta mistura — muito está por
fazer para saber a influência dessas línguas no português. Há quem diga, por
exemplo, que «azul» não nos chegou pelo árabe, mas tem origem amazigh (as
línguas que chamamos, por vezes, de berberes). Como a atenção dada a estas
línguas pela historiografia portuguesa foi muito vaga, não é impossível que, de
facto, nos tenham escapado muitas palavras do Norte de África na nossa
língua.
5- PORTUGUÊS
O Reino de Portugal assume o romance do Noroeste — a que podemos
chamar galego ou, numa invenção terminológica muito posterior, galego-português
— como língua da administração, com especial força no reinado de D.
Dinis.
No entanto, só no século XV alguém escreve o nome «português» como nome
da língua: o infante D. Pedro, no prefácio de uma tradução de Cícero.
Durante o século XVI, depois da expansão da imprensa pela Europa, o português
ganha gramáticas e começa a padronizar-se lentamente. É também esta a época do
apogeu da influência castelhana, uma das línguas da corte. O castelhano era
língua de prestígio e o português enche-se de palavras e construções dessa
língua próxima. É a primeira das línguas de prestígio que oferecem materiais ao
português; ainda veremos outras duas antes de chegar ao final desta história.
No século XVI, a língua a que chamamos português tem materiais asiáticos
(árabes e persas), norte-africanos, celtas, castelhanos e, certamente, de
outras paragens que não reconhecemos. É um latim já misturado, com tintas de
toda essa massa continental que chamamos o Velho Mundo. Olhando para a
composição química da nossa língua, vemos a história da Antiguidade.
O português começa a sair da Europa na expansão. Este é o segundo momento
da nossa história. A presença do português noutras línguas é o testemunho da
história da Modernidade, com tudo o que tem de bom e mau. A história é longa e
sofrida.
A primeira palavra que trago é de outra língua:
6- PAPIAR
(cabo-verdiano para «falar»)
O português chega a
África, Ásia — e também à América. Comecemos por África: para lá da
presença, crescente, do português em vários países, temos também palavras de
origem portuguesa em várias línguas. Por exemplo, a palavra árabe para laranja,
tal como a palavra turca, grega e em muitas outros idiomas, parece ter origem
no nome de «Portugal».
Mas continuemos para lá
dessas curiosidades. No meio do Atlântico, temos hoje Cabo Verde, com uma
população de origem africana e europeia, que fala o cabo-verdiano, a que
chamamos, sem mais, crioulo, embora haja muitas outras línguas
crioulas. Do outro lado do Atlântico, por exemplo, encontramos o crioulo papiamento,
que parece ter uma relação forte com o cabo-verdiano e é oficial em ilhas das
Caraíbas. O próprio nome parece vir de «papiar», uma palavra cabo-verdiana que
significa «falar».
Os crioulos são
testemunho da cruel história do Atlântico e do seu tráfico de escravos, mas
também — e acima de tudo — da capacidade linguística dos seres humanos: em
situações de transmissão linguística parcial, as novas gerações criaram línguas
novas, com uma gramática diferente e com vocabulário apanhado do que ouviam em
redor. A criatividade linguística dos seres humanos está sempre à espreita para
florescer.
Chegou agora a hora de
atravessar o Atlântico, tal como muitos escravos fizeram, e encontrar a palavra
(quase inevitável)...
7- SAMBA
Na América, a que
chamámos o Novo Mundo, o português transformou-se. Uma primeira fase foi de
imensa modificação, com a língua a recriar-se na boca de indígenas, escravos e
colonos, ao lado das chamadas línguas gerais, de origem tupi-guarani, faladas
por muitos. O português do Brasil ainda tem hoje, na oralidade, muito dessa
primeira fase.
Depois, no final do
século XVIII e no século XIX, o português padronizou-se também no Brasil e o novo
Estado assumiu a norma da língua tal como a encontrava nas obras portuguesas;
muito mudou, entretanto, e estas duas formas — uma oral, com origem no
século XVI, e outra escrita, com origem no século XIX, contaminaram-se e pintam
hoje um quadro linguístico muito complexo.
O português do Brasil é
outra história, testemunho da história da América, do Brasil, da Humanidade,
muito, mas mesmo muito para lá deste recanto europeu onde o latim tinha vindo
parar mais de 1000 anos antes.
A palavra «samba»,
entre tantas outras, serve de mostra dessa origem africana, europeia e
americana do português do Brasil.
Naveguemos até ao
Índico. A nossa oitava palavra é, em suaíli, o nome de Portugal:
8- URENO
... uma transformação
da palavra «REINO», a palavra que os habitantes das costas africanas do Índico
ouviam dos navegadores a caminho da Índia.
No Índico, o português
transformou-se em lingua franca, usada por portugueses, mas também
por outros europeus, como os holandeses, e pelas populações locais para
contactar com europeus. Ainda hoje encontramos línguas de origem portuguesa em
países como o Sri Lanka e centenas de palavras portuguesas em línguas como o
indonésio.
Também encontramos
palavras portuguesas no japonês, como sabemos. Não, ao contrário do que se diz,
«arigato», mas a palavra japonesa para «pão», só para dar um exemplo — ou
ainda, para dar outro exemplo, «igirisu», que significa «inglês», mostrando
como os portugueses foram quem apresentou a muitos asiáticos os europeus, agora
vindos do mar e não das longas rotas terrestres.
Olhemos agora para uma
palavra muito diferente, talvez inesperada neste contexto:
9- FETICHE
O português andou pelo
mundo e trouxe de volta palavras ou deu-lhes novos significados. Por exemplo, a
palavra «fetiche», que encontramos com formas diferentes em muitas línguas, tem
origem no «feitiço» português, um velho vocábulo que já tinha vindo do latim
com o sentido de qualquer coisa artificial. Uma coisa postiça, ou seja, feitiça.
Podemos demorar um pouco mais na história desta palavra, porque diz-nos muito
sobre a história do mundo dos últimos séculos.
Os navegadores
portugueses, aportados na Costa do Ouro, um território longínquo que pouco
conheciam, encontraram objectos mágicos, idolatrados por quem ali vivia. Eram
amuletos, que existem em todas as culturas (afinal, os navegadores também
levavam as suas cruzes), mas que, nas mãos dos outros, ganham um ar mágico e
exótico.
Estes objectos pouco
naturais ganharam o nome de feitiços, uma palavra que depois ganhou também o
próprio significado de efeito mágico.
Ora, de regresso à
Europa a bordo das caravelas, ou melhor, das bocas dos navegadores, a palavra
portuguesa foi usada por escritores do Norte da Europa para descrever os
hábitos e costumes da Costa do Ouro.
O primeiro, que se
saiba, foi o explorador holandês Pieter de Marees, que em 1602 usou a palavra
na obra Descrição e Relato Histórico do Reino do Ouro da Guiné —
mas em holandês — para designar os amuletos usados pelos habitantes da zona. Lá
pelo meio da obra aparecia a palavra «fetissos» (não nos queixemos da maneira
como aparece escrita; nem nós tínhamos uma ortografia estável para as nossas palavras,
quanto mais os holandeses).
A obra foi traduzida
para francês poucos anos depois e o tradutor aproveitou a importação
«fetissos». A palavra chegou assim à língua que, à época, era bem capaz de a
espalhar pela Europa toda. Com o tempo, os franceses começaram a escrever
«fétiche» — e os ingleses rapidamente a puxaram para a sua língua, como é
costume, agora na forma «fetish».
Adoptada pelo francês e
pelo inglês, a palavra tinha o futuro garantido…
No final do século XIX,
começou a ser usada para definir uma fixação sexual num objecto ou parte do
corpo — um tipo muito particular de idolatria. A partir deste sentido mais
restrito, alargou-se de novo, num jogo de inspiração e expiração, ganhando
conotações mais gerais — podemos ter um fetiche por livros amarelos, por
exemplo.
A partir do inglês e do
francês, «fetiche» espalhou-se pelas línguas da Europa e regressou, qual
palavra bumerangue, ao português, vinda dos pérfidos mares do Norte, agora mais
atrevida e sabida — as viagens mudam uma pessoa e mudam as palavras ainda mais.
Como disse, esta
história mostra-nos muito sobre o mundo e sobre as línguas: a forma como as
palavras viajam e mudam; a força do francês, primeiro, e do inglês depois como
línguas da ciência, em substituição do latim; a maneira como as línguas
emprestam palavras umas às outras e como se criam terminologias científicas e
técnicas e como, depois, esses mesmos termos se transformam em novas
palavras.
*
Interrompo agora um
pouco esta nossa viagem por dez palavras. Ainda falta uma última, que nos vai
fazer olhar para o futuro da língua.
Antes disso, volto à
origem, ao Noroeste da Península. Note-se que o romance do noroeste peninsular
é agora a língua de Portugal, mas também da Galiza, onde só foi padronizada nos
últimos 50 anos, mas era falada por praticamente todos até há muito pouco tempo.
Se alguém atravessasse a fronteira entre Portugal e a Galiza no final do século
XIX não encontraria grandes diferenças entre as falas das aldeias de um lado e
de outro.
Entretanto, as línguas
europeias tinham passado por um processo de padronização muito acelerado,
motivado pela expansão do conceito de Estado-nação. Cada Estado escolhe uma
língua e uma forma particular dessa língua como língua oficial. A literatura
nesse padrão torna-se símbolo nacional. A terminologia técnica nessas línguas
também se padroniza, por vezes internacionalmente.
Várias outras línguas
ficaram invisíveis, apesar de faladas, e entre elas o galego. No entanto, foi
também nesta época que algumas destas outras línguas, no contexto do Romantismo
oitocentista, explodiram em vários renascimentos literários que tentavam
recuperar um passado medieval. Também o galego voltou em força à escrita e à
literatura.
Hoje, se andarmos pela
Galiza, vamos também encontrar as velhas palavras portuguesas nas placas, como
recordação que a história começou ali. A fronteira a norte de Portugal é uma
linha que divide o território onde o português surgiu e que mostra como as
línguas dos estados tiveram uma sorte muito diferente das línguas que não são
dos estados.
Também aí temos a
história do mundo: a criação dos padrões das línguas nacionais em paralelo à
defesa das línguas que ficaram de fora dessa história.
Desçamos até Lisboa e oiçamos alguém a conversar entre amigos. Pode ser que
surja a palavra...
10- BUÉ
É uma palavra que é desconhecida dos brasileiros, por exemplo. Quer dizer
«muito». Há várias teorias sobre a sua origem, mas a mais comum diz-nos que veio
de uma palavra do quimbundo, uma língua de Angola.
Terá sido trazida para Portugal no momento da descolonização, por quem
retornou à metrópole e por todos os africanos que vieram para Portugal, sendo
mais um testemunho da História: as independências do mundo durante o século XX
e os grandes movimentos populacionais das últimas décadas.
Esta palavra africana no meio de Lisboa servirá também como lembrança de
que o futuro do português passa por África. A língua está a crescer
tremendamente neste continente e não espantará que seja aqui que resida o maior
número de falantes dentro de algumas décadas.
Foi uma história contada em poucos minutos: vimos, espero, como a língua
portuguesa, tal como é falada hoje, tem vestígios de histórias muito antigas,
desde o Império Romano, a Rota da Seda, a expansão islâmica, a expansão dos
povos ibéricos pelo mundo, o tráfico de escravos, a história do Índico, o
desenvolvimento das línguas nacionais, a importância do francês e do inglês
como línguas da ciência — e, agora, o crescimento de África. Tudo isto está
inscrito nas palavras que usamos, testemunhos da história do mundo.
Esta crónica começou como conferência dada na Universidade de Cartago aos
alunos de Português, a convite da Prof.ª Maria de Lurdes Ferreira, leitora do
Instituto Camões. Dedico-a a Anis Mokni, tradutor tunisino e professor de
Português."
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita.
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